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O pássaro pousou na Água Sumida
O pássaro voou.
Levei a vida carregando na boca
folhas, fios da sua barba,
o desejo de fazer um ninho em seu peito.
Ao cair da tarde, o que sou:
O pássaro cantando o passado no presente.
O que sobra senão essa água toda,
meu corpo,
texto vivo cortado por sua mão imensa.
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Onde dói mais?
nas asas.
Tremo
quando a noite
se avizinha.
Torta
a asa esquerda pendendo
para a terra.
A dor aguda
lateja onde as penas
encontram as escápulas.
Mesmo distante
escuto o terrível
sino da igreja.
Ave-maria nas badaladas do sino
ave-maria no terço
ave-maria numa penumbra de tristeza
e culpa.
Não reparou em minha condição?
Sou mulher
rangia a tábua de madeira.
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Magoada. A pele aberta em feridas.
Janeiro corta, sanguíneo,
com seu excesso de claridade.
O grilhão do recomeço me fere
com sua vocação para a dor.
O suor de janeiro é lâmina na pele.
Luz nas feridas, luz sobre as chagas
Expio no abismo da minha pele
janeiro esfolar.
Para viver janeiro
finjo ter sangue no olho.
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Urrava.
O esforço era sobre-humano.
O gato olhava de soslaio aquele animal
tentando ser bicho.
O Testamento de Maria
O mundo é lugar de silêncio
O céu noturno é vasto
Quando os pássaros se vão.
Nem uma palavra atinge o céu noturno
e o dia permanece indiferente
a qualquer coisa dita.
Ao ver dois homens juntos
esperar crueldade
novos decretos, novas palavras
para designar velharias.
Carregar o mistério do mundo
no âmago da alma
como o corpo carrega, sombrio,
sangue e tendões.
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Dizem
que os mais sensíveis
passaram de loucos mansos
a doidos varridos.
Quando vi o vendaval
pensei:
o mundo vai começar.
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Somos muitas mulheres
que sentiram as mãos do tio, pai, padrasto
entre as coxas
e o sussurro indecente no ouvido:
papai pode
vi o olho roxo da minha amiga
pintado por um murro de seu pai
as que apanharam dos irmãos,
namorados, maridos,
são muitas, são todas,
sou eu e é você
são putas
somos todas putas
e quem não é
está à beira de ser.
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A menina de 12 anos
atacada por um bando
é depósito de esperma.
As mulheres casadas
que abrem sem querer as pernas
são depósitos de esperma.
Nunca esqueçam:
o útero percorre o corpo inteiro.
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A procura por você
foi longa. E ainda não terminou.
Fui ao seu encontro
como quem busca
um velho amante,
sem disfarce.
Como o pássaro que não teme
e se demora a comer
na palma da mão do homem.
A voz é como um rio
Na cabeceira desse rio
a terra firme cede
sob meus pés.
A chuvarada traz
a voz do seu peito
Minha bacia aceita.
Porque chama com gosto
meu nome
oferto meu colo
Entre minhas curvas
suas lágrimas correm.
Nas entrelinhas
a sedição do seu silêncio.
O maior dos perigos
seu torrencial silêncio
conduzindo o arroio
dos meus fonemas.
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Sonhei jorrando leite pelos peitos
sonhei com uma menina
Os filhos
que não tive (mesmo assim, meus)
vêm mamar à noite.
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Todas as noites
teus barcos partem para o mar
A ondulação do teu corpo
sustenta a alma marinha.
São teus olhos humanos e aflitos
que enchem os oceanos
Por toda a escuridão
tu gritas
de barco a barco
voz e abismos.
Tu te arrebentas
morta-viva nas planícies colossais
no relevo acidentado das águas
o talude
tua desolação e isolamento.
Na fossa das Marianas
tu és, dentre todas,
a mais estranha criatura.
[Do livro maturando pernas em rabo de peixe. Organismo, 2021]
março, 2022
Martha Galrão (Salvador/BA), poeta e professora. Autora de A chuva de Maria (Kalango, 2011), Muadiê Maria – Coleção Cartas Bahianas (P55 Edições, 2013), Um rio entre as ancas, Coleção Pedra Palavra, (2013), maturando pernas em rabo de peixe (Organismo, 2021) e do livro para crianças Uma menina chamada Nina (2017).
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