©marcos oriá

 
 
 
 
 
 
 

As palavras estavam inscritas na igual litania da noite anterior, assim como na segunda-feira de chuva, assim como no domingo, também de chuva; como na semana passada, igualmente de chuva, como nos últimos cinco anos e os vários estados d’alma meteorológicos. No exacto lugar, nada mudara desde o primeiro dia da sua partida. E mesmo eu, sensível às condições do tempo, e à cadência sistemática das águas celestiais, continuava irredutível à espera que algo de novo se alterasse na rotina, naquele cenário de entressonho e memórias coladas à pele, de tão vivas.

E por isso a procissão diária àquele local de culto, aos cantos da casa, àquela sala vestida de papel verde nas paredes e móveis de desbotado rústico. Era como se o corpo, autómato, preso a uma reza, a uma rotina, ao cordão de um destino previsível, não mais tivesse sequer direito ao livre-arbítrio, pois força, para contrariar este cansaço, já não havia. Mas todos os dias, santos ou não, lá estava eu na engrenagem desdentada, caótica, presa pela própria vontade de fazer o caminho, num jogo viciado, marioneta em causa própria a fazer eco na sala diminuta.

Seria lugar-comum dizer que a casa cheirava a mofo, a velho, ao passado recente. Sim, cheirava às banais descrições que ouvimos ao longo da vida. Sim, cheirava a este lugar-comum chamado Verdade; onde os aromas divagam pelas paredes reais da casa e entranham-se pelas narinas perante a nossa passividade. Quando ouvimos sobre estes lugares de bocas alheias, imaginamos que de uma forma leviana consegue-se limpar, apagar, esquecer ao jeito despretensioso, o passado que cheira mal, ou que julgamos cheirar mal, quando a casa não nos pertence; até o momento em que a história bate à porta, quando os cheiros migram da casa do outro — que fingimos ver, ouvir e até partilhar da sua enfermidade — e tocam a nossa campainha, e então acordamos para uma realidade que, quando muito, conseguimos sublimá-la noutros espaços-casa que nos rodeiam… quando muito, mas nenhum artifício — obras, arranjos, retoques, pintura nas paredes e até jogar a tralha na rua… passes de mágica inúteis — ajuda, pois há marcas indeléveis, que não desaparecem com a cosmética ou os banhos de loja e de perfumes.

No seu lugar de eleição, a sala, um banquinho servia como mesa e apoio para o grande tabuleiro. O sofá, o trono ideal para o jogo solitário ou para a televisão ruidosa e sem interesse, como nos dias de hoje. Não era preciso que eu e o meu irmão estivéssemos em casa, com o jogo montado ele bastava-se. Isto não significava dizer, contudo, que a nossa presença fosse um estorvo ou que ele não nos amasse; mas o seu grau de alheamento era tanto que, aos poucos, aprendêramos o dom da ubiquidade — já que estávamos por todos os lados na algazarra natural da infância — e o dom da invisibilidade, pois a casa podia ir abaixo que ele não dava por isso, continuava a estudar — com a paciência herdada em Macau e dos chineses —, uma estratégia para derrotar o seu adversário de longa data: ele mesmo.

Tudo estava à medida dos seus hábitos: a televisão, sintonizada no Canal Hollywood (que pela 23ª vez, só neste mês em que me encontro, reprisava As lágrimas amargas de Petra Von Kant... Fassbinder no seu melhor mas, por favor, em doses moderadas); os livros técnicos de gestão e matemáticas, trabalho mas também divertimento; a pequena vareta de madeira com cerca de 45 centímetros, ideal para coçar as costas; o prato com torradas, bem tostadas, bem queimadas e o copo que, em tempos, fora metalizado; agora, restava completamente carcomido e sépia contrastado, fruto da mixórdia de pacotes de chás que nunca saíam do recepiente para dar lugar ao novo pacote. O apuro do sabor, segundo a preferência dele, sempre estava garantido; para além da corrosão do metal, outra das certezas.

Hoje, tal e qual o dia em que partiu, reinava o silêncio na sala, nos quartos, na casa de banho, na mobília e nos discos de vinil; as vozes também se calaram nos livros, adormecidas; na frente de batalha, cada peça, macabramente, parecia estudar a sua semelhante, em negativo: O Rei branco, a Rainha, da mesma cor, fitavam olhos nos olhos os adversários, espelho ao contrário. Da torre de vigia espreitava-se qualquer movimentação invulgar; da cavalariça tudo a postos para mais um revide; os mortos e feridos, principalmente soldados da linha da frente, jaziam fora das quatro linhas, enquanto os demais benziam-se na capela do condado local. Reinava o silêncio no palco mimético. O exército continuava de prontidão, no terreno, a aguardar, ordeiramente, o toque da corneta insonora para avançar ou bater em retirada.

O seu retrato, tão novo como há trinta anos, inalterado, sorria para mim de frente. Aonde quer que eu estivesse, em qualquer ponto distinto daquela sala oblíqua, quase cubista, quase abstracta, sempre presente, lá estava aquele sorriso a perseguir-me. O que mudava, conforme o ângulo, era somente a quantidade de pó: o insólito que incidia sobre a sua imagem e talvez este facto bastasse para que a passagem do tempo estivesse latente.

Uma bela fotografia, não reste dúvida, mas que não escondia a ausência de um dos dentes do lado inferior direito. Entanto, o seu a vontade ao posar, desmentia qualquer possibilidade de vergonha, de acanhamento; ao contrário, sorria com quantos dentes detinha, com posse, com a boca cheia de dignidade e de franqueza; sorria também com uma pontinha de malícia de canto de boca. Assim interpretava eu com a sabedoria do meu olhar passional.

Mas como terá sido possível na minha peregrinação diária à casa que também fora minha, e que nunca a perdera, não me ter apercebido de tão flagrante ausência? Convenhamos, um dente é algo que se nota ao longe quando falta ao seu quadro. Tão flagrante agora, nítido, a combinar com a estranheza da sala, mas que não maculava, em nada, a aura que por ali pairava. Eu nunca dei pela falta do dente, quer na fotografia, quer na vida real (como se houvesse uma vida irreal); o seu sorriso foi sempre maior do que qualquer moldura.

Eu não tinha bem presente qual era o enredo à volta daquele retrato. A única certeza é que se tratava de um daqueles dias em que ele se aprumava todo com os banhos intermináveis… ou melhor, que duravam o tempo preciso do LP da Ella Fittgerald, o lado A e o lado B completos; o gira-discos e as colunas de som eram arrumadas no pequeno banco de fórmica vermelho — tão feio, meu Deus; seguia-se o único cigarrinho diário — prazer e não vício; a sanita a constatar intestinos cronometrados; a barba escanhoada com a precisão do dia anterior, do dia seguinte e dos restantes… outro banho, agora, o de perfume, sua marca ou rastro pelos lugares que passava. Um ritual; era disso que se tratava, quando o assunto envolvia jogar xadrez. Nos dias normais, a rotina era a mesma só que o jogo de xadrez seguia para a casa de banho para cima de mais um banco de fórmica vermelho; que piroso, meu Deus!

Teria ganho algum importante jogo e por isso o ar da sua graça na fotografia; a final do torneio do Dramático ou a passagem a uma nova fase no mesmo certame? A alegria pela derrota de um qualquer adversário, desses por quem nutrimos, carinhosamente, os nossos pequenos ódios de estimação ou algo de moral mais razoável? Uma mulher, por exemplo, sedutora por detrás do fotógrafo?

Era por demais evidente que a sua alma estava contente na fracção de segundo do instantâneo; sorria para a posteridade, está claro, para algo que eu nunca conseguirei decifrar e também não sei se quero. Para mim, tamanha felicidade exposta e não-datada só fazia crescer o fosso da sua ausência física, do seu cheiro inconfundível à lavanda Ach. Brito, do filhinha filhinha, dito a uma mulher com mais de trinta e que nos seus braços nunca deixara de ser criança. Aquele retrato caçoava particularmente da minha liberdade ao fazer-me lembrar, dia sobre dia, que a ferida residia no mesmo apartamento, aberta e exposta às recaídas, dentro de mim.

Não esquecemos jamais a galeria de mortos que coleccionamos; a dor não se extingue nunca; decresce, hiberna, mas lá está no bater do relógio, às vezes brando e generoso com a nossa sanidade física e mental, às vezes opressivo e taquicárdico, binário em tic-tac-tic-tac-tic-tac, quase a rasgar o peito. Cada ausência vale o seu peso em silêncios, aqueles que conseguimos carregar.

E sentei-me na outra extremidade do sofá, que agora me parecia muito maior do que os seus pouco mais de dois metros e meio… e perfilei todos os livros da estante com o meu olhar… e lá estavam kasparov, karpov e uma data de enxadristas, de outras nacionalidades, que dividiam apertadamente a prateleira com nomes da gestão, do marketing, da matemática e com um Fernando Pessoa, edição brasileira, como que perdido em meio à exactidão das ciências… e apressei-me a ler o rio da minha aldeia… e acendi um cigarro para o meu bel prazer… e procurei o Esteves sem metafísica num outro poema… e acendi mais um cigarro para alimentar o vício… e ainda na estante, dos torsos de cavalos suportavam uns tantos livros sem importância no meu enredo… e acendi mais um, sem dar por isso… e liguei a vitrola… e fiz uso da Ella… e cantei blue moon como ele… e improvisei umas maracas com latas de cerveja unidas por esparadrapo e grãos de arroz por dentro… e acompanhei el maniceiro junto à orquestra de Edmundo Ross, enquanto o quinto ou sexto cigarro queimava algures no meio do fumo… e sentei-me solenemente no seu lugar que cheirava à lavanda após tantos anos… será coisa da minha cabeça?... e estudei, demoradamente, o próximo passo, pois a vez me pertencia… e acendi, sem prazer, sem prestar atenção, mais um prego para o meu caixão… e toda aquela sala era uma nuvem de tabaco… e o seu retrato, meio oblíquo, meio cubista, quase abstracto, quase fantasma, estranhamente sorria… e por um instante apenas, um fragmento deste instante, acreditei que aquele sorriso era para mim… e também sorri… e então avancei para a única jogada que restava ao exército branco... sentindo o seu sorriso paternal sobre a minha nuca… sentindo o seu sorriso adversário à minha frente… tombei o Rei.



[Do livro Só agora vejo crescer em mim as mãos
de meu pai. Edições Pasárgada]



março, 2022



Ozias Filho. Natural do Rio de Janeiro, é poeta, fotógrafo e editor. Autor de Poemas do dilúvio, Insulares, Páginas despidas e O relógio avariado de Deus, entre outros textos. Como fotógrafo, tem vários livros publicados, e exposições, onde se destaca Ar de Arestas, no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, no Brasil; e integrou a iniciativa Passado e Presente — Lisboa Capital Ibero-americana da Cultura 2017, com o ensaio Quasinvisível. Vive em Portugal desde 1991. É editor nas Edições Pasárgada. Assina a coluna Quem eu vejo quando leio, para o Jornal Rascunho, e colabora com a Revista Caliban. É integrante do coletivo Mapas do Confinamento.


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Marcos Oriá (Fortaleza/CE, 1971).Trabalha com arte contemporânea. Desde 2003, tem participado de mostras no Brasil e no estrangeiro: Portugal e França. Suas obras são produzidas em diversos suportes (tela, papel e papelão, desenhos em nanquim e posca, além de tinta acrílica e spray). Seus temas prendem-se ora a partir da abstração, ora da des-abstração. Outros temas versam sobre a fertilidade, a criação, ou a gênese. É também escritor e ilustrador de livros infantis, como Janinho, o elefante amarelinho sonhador e Janjão, o carneirinho azul, pela editora Armazém da Cultura. É o autor da ilustração desta página.
 

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