Coração disperso, décimo sétimo livro do escritor Chico Lopes, revela um autor despreocupado com um único gênero. "Meus temas se repetem, seja em qual gênero for — crônica, confissão, memória, poesia, ensaio — e estou numa altura de minha carreira em que a única preocupação é ser eu mesmo, explorar minha voz, meus fantasmas, acreditando que é possível atingir leitores pela verdade poética, ser universalizante tocando no que é pessoal". Coração disperso é uma publicação da editora Lavra, que lançou, em 2020, Parque dos cães, antologia reunindo contos dos dois primeiros livros do escritor. Esse décimo sétimo livro sai com 130 páginas e tem como capa um quadro do próprio Chico: "Tango del angel". [Silvana Guimarães]

 

 

 

 

Silvana Guimarães – Chico, livro novo, cujo desenho da capa, de sua autoria, chama a minha atenção. O título do quadro é o mesmo de um tango de Astor Piazzola. O que motivou essa capa?

 

Chico Lopes - Exato. Eu amo Piazzola, aquela passionalidade toda argentina, mas com um alcance universal inegável. Tenho certa fixação pela cultura portenha, e isso me vem desde menino, quando ouvia no rádio muitos tangos e aprendia aquelas letras do modo tortuoso que podia, sempre me impressionando com a aura de tragédia. O rádio nos anos 50, quando eu era pequeno ainda, era recheado de tangos e boleros que minhas irmãs mais velhas adoravam cantar, de modo que eu prestava muita atenção àquilo tudo e decorava trechos de impacto. Não tenho muitos sonhos de viagens ao exterior, mas de vez em quando me pego desejando poder ir a Buenos Aires, ouvir tangos in loco e percorrer as famosas livrarias. Ademais, amo a literatura de Borges, Cortázar, Sábato...

 

 

SG - De modo genérico, seu livro pode ser classificado como sendo de crônicas. Mas você afirma haver trechos que são só memórias, confissões, ficções poéticas, ensaios. Afinal, o que a crônica significa para você?

 

CL - A crônica, bem a grosso modo, é aquilo que trata de amenidades em jornais e revistas, um exercício literário meio despretensioso (ao menos em aparência) em que Rubem Braga se mostrou mestre supremo, mas teve muitos imitadores, bons ou não. Eu não penso em termos de amenidade. Minhas crônicas tendem a ter uma densidade dramática e uma pretensão filosófica maior e não estou recebendo imposições de redações de jornais e revistas quanto a temas e tamanhos — de modo que escrevo o que quero. Acho que há cronistas que se esmeram em frivolidades e isso nunca me interessou. O livro percorre vários gêneros, por assim dizer, mas creio que tem uma unidade temática, a de um homem em descompasso com o mundo, interessado em personagens marginalizados, em dramas da sexualidade masculina (especialmente naquela fase de iniciação adolescente), preso afetivamente a lugares ou a sonhos que se desfazem, desenraizado e crítico. O próprio título, Coração disperso, fala de um desenraizamento: o mundo é hostil e imenso e a gente busca nele um coração, um acolhimento, praticando a dispersão até sem querer. Algumas dessas crônicas foram publicadas na Germina, casos de "O silêncio que poucos compreendem", "All the lonely people", "Boina, bengala, cão".

 

 

 

 

SG - No quadro atual de pandemia, isolamento social e crise econômica aguda, está valendo a pena publicar novos livros?

 

CL - De um ponto de vista estritamente comercial, não vale não. Mas este é um quadro permanente na literatura brasileira dos últimos anos, os poucos leitores, as vendas difíceis, as tiragens pequenas de livros em editoras novas, idealistas, que resistem bancando novos nomes sem repercussão financeira maior. Se você se ativer a uma questão econômica estrita, achará insensato seguir publicando. Mas eu tenho — sempre tive — a força da vocação, da obsessão irresistível por literatura, de modo que não pretendo abrir mão de seguir escrevendo meus livros, ainda que meus leitores sejam poucos e as vendas sejam escassas. Estou com 70 anos e publico desde 2000 e nunca tive ilusão alguma quanto ao sucesso financeiro, à fama e outras armadilhas que o Sistema oferece aos incautos. Penso com desprendimento, penso nos encantos da palavra, não nos holofotes passageiros. Quanto à pandemia, acho que os livros em lançamentos apenas virtuais dão um certo desânimo, pois um dos grandes encantos de se escrever é aquela tarde ou noite de autógrafos em que se reencontra os amigos e se conhece novas pessoas interessantes. Em suma, a internet não pode substituir o calor humano a não ser muito precariamente.

 

 

SG – Há tempos, percebo o seu desencanto com os livros publicados, em termos de retorno financeiro, etc. Mas reconheço a sua força de vontade, o seu encanto pelas palavras, e isso me deixa curiosa: você já está planejando um livro novo?

 

CL - Eu escrevo sempre, mesmo desiludido com o pouco alcance dos livros publicados. Porque acho que tenho uma vocação inescapável e porque não entendo o mundo e a mim mesmo sem escrever continuamente. A questão do livro é que, quando escrevemos continuamente, chega um momento em que haverá algo a publicar. Creio que aí é um pouco aquela frase do Borges — "a gente publica um livro para não ter que reescrevê-lo indefinidamente". Publicamos um livro para livrarmo-nos dele, ele dizia (risos). Tenho um pequeno número de leitores fieis e penso neles. Gosto do trabalho editorial, dos cuidados de revisão, escolhas de capas, etc. Tenho um romance em andamento. Também tento um novo livro de poesia. Na verdade, tenho sempre algo em andamento e por isso, mesmo quando sinto vontade de parar, creio que haverá sempre, em luta com ela, a pressão de minha vocação.

 

 

SG – Agradecendo-lhe o bate-papo, quero saber quais são as suas referências literárias, quem o influencia na maneira de escrever e quem escreve de modo a lhe causar espanto no panorama contemporâneo da literatura brasileira.

 

CL - Eu leio muito, leio o tempo todo, sou um tanto eclético nos meus gostos, vou da literatura policial a Proust tranquilamente. Depois de tanto tempo e tantas leituras, não sei enumerar influências, porque as coisas todas foram se amalgamando e eu descobri, um dia, minha própria voz. No começo, escrevia contos e me achava muito influenciado por Dalton Trevisan, Kafka, Cortázar. Durante muito tempo, escrevia e rasgava, escrevia e rasgava, e, quando publiquei meu primeiro livro de contos, Nó de sombras, em 2000, escolhi para epígrafe um trecho de A volta do parafuso, de Henry James. James, Julien Green, Graciliano, Clarice Lispector, Borges, Capote, McCullers, Camus, Guimarães Rosa, Poe, tantas coisas foram importantes (e ainda são) pra mim... Outro dia, li os contos de Mario Baggio e fiquei impactado (o livro é Antes de cair o pano). Mas dos que estão aí, na luta, novos ou nem tanto, aprecio Maria Valeria Rezende, Marcelino Freire e outros que não me ocorrem agora. O certo é que sou um leitor voraz e constante e acho, com toda certeza, que sem ler muito não teria tanto apetite por escrever. As duas coisas andam muito juntas.

 

 

setembro, 2022

 

 

Chico Lopes, nascido em Novo Horizonte/SP, desde 1992 radicado em Poços de Caldas/MG. Começou como pintor e jornalista e se dedicou a essas atividades até chegar à publicação de seu primeiro livro de contos, Nó de sombras, aos 48 anos, em 2000, já residindo em Poços. Publicou 18 livros até aqui, incluindo poesia, biografia, ensaios, memórias, crônicas e contos. É também tradutor, tendo traduzido 37 livros de ficção em Inglês. Em 2012 seu primeiro romance, O estranho no corredor, venceu um prêmio Jabuti.

 

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Silvana Guimarães Escritora, nasceu em Beagá/MG, onde vive. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Participou de várias coletâneas e organizou algumas. Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte [www.germinaliteratura.com.br] e do site Escritoras Suicidas [http://www.escritorassuicidas.com.br]. O corpo inútil (2022) é o seu primeiro livro de poesia.

 

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