©sguimas
 
 
 
 

Hamurabi... meu velho amigo e de guerra! Do alto tão baixo da sociedade do embaraço, eu lhe escrevo, tantos anos a perder de vistas depois, para lhe confidenciar uma descoberta ou desconfiança mui personal: a "sua solução", ainda é a "nossa solução". A resposta que perseguimos, procurando a saída do mesmo labirinto, ou identiquíssimo, hoje apenas mais ramificado, acredito.

Um estudo de História nos levará, num caminho cronológico entre nós e você, a cruzarmos com Gutenberg e a sua revolução. Mas não nos detenhamos neles, o papel impresso apenas substituiu os obeliscos, as tabuletas, os papiros. As toneladas de artigos e incisos e versículos, ainda que o seu suporte hoje seja mais leve, equivalem-se proporcionalmente, meu vultuoso amigo.

Arrisco-me a dizer: eles aumentaram exponencialmente! Ano passado não deu certo? Lixa-se as tabuinhas. Recicla-se as escritas gastas. Apaga-se os tipos deitando-os no lixo. É preciso escrever cada vez mais códigos. Derruba-se mais árvores (mais e mais). Deve haver um tipo especial de vegetal para a escrita e impressão do gênero, inacabável, eucalipto, araucária, fibra de cânhamo ou de cactos, quem sabe? Próprio para imprimir (e quem diria: não martelar!), as novas leis, que então julgarmos aprimoradas. Assim como consideramos mais avançados, os códigos do ano anterior, da década anterior, do século antecessor, do milênio mais afastado e do outro e mais outro.

Mas neste justo ano será diferente, por que não? Nos convencemos ou nos anos vindouros tudo dará certo, bastando para isso repetir a receita, embaralhando um pouco mais sofisticadamente, alguns dos mesmos ingredientes.

Meu alvissareiro camarada, Hamurabi, meu bom amigo! Quanta energia, desde a escrita das suas plaquinhas, destinamos a reescrever incansavelmente, ano após ano, as nossas tábuas, a partir das suas primeiras! Gerações sobre gerações, concentradas em pensá-las, ir às ruas exigi-las, instituir câmaras de discuti-las, debater meios de aprová-las, procurar maneiras de sancioná-las, eleger ou entronar representantes para implementá-las, manter forças de polícia para garanti-las a ferro e a fogo.

Gerações dedicadas, por conseguinte a testemunhar, o seu fracasso parcial ou completo, na altura de suas idades mais avançadas. E testemunhar, impotentes, as gerações mais novas, imergirem na mesma busca, década após década, há quatro mil anos, meu poderoso amigo! Desde os seus quase-mandamentos, desde a talião, há quatro mil anos, aproximadamente, meu nobre! Tentando acertar o tempo impossível de cozimento deste pão de fermentação sintetizada.

Já disseram que o feminismo deve ser, antes de qualquer coisa, uma luta antissistema, se se quiser bem-sucedido. Penso que qualquer luta por emancipação, igualdade, liberdade... que se pretenda bem-sucedida, assim deva ser: antissistema. Penso que, possivelmente, vendo o novelo civilizacional se embaraçar, meu velho amigo, você já soubesse disso. E tenha imposto os seus códigos sanguinolentos apenas como um paliativo. Que eles vigorassem até encontrada fosse uma melhor saída — deve você ter imaginado. Sem prever também que, por mero acaso ou interesses terceiros, um provisório tão óbvio, seria posteriormente tomado como solução definitiva.

Segue sendo assim, ruim com eles, pior sem eles. Seguimos para sempre lidando com sintomas, enquanto o sistema (tão criativo!), prossegue irresoluto na cria e proliferação das doenças, que garantem a sua sustentação. Melhor com eles do que sem eles — persistimos. Nos sentindo ao menos justificados, superpopulando as celas onde mantemos inumanísticamente, o amontoado das nossas populações carcerárias. Num olho por olho, dente por dente, só um bocadinho menos brutal.

Definir a diferença entre a justiça e a vingança, o melhor caminho entre a pura punição ou a vida que segue com o menor dos ônus, ainda não nos comove demais. E precisamos das nossas tabuinhas, no meio do alvoroço, pois ainda muito próximos da barbárie, tanto quanto distantes de uma ética humana. Em outras palavras, não nos sentimos capazes de recusar a nossa soma de ganho zero, no fim das contas, pois defini-la seria igualmente reconhecer, a derrocada final do nosso sistema mortal. A desventura inequívoca do nosso experimento quase patético.

Talvez você já soubesse do paliativo no cuidado que nos receitou, meu frutuoso e profético, Hamurabi! Acho difícil que tenha previsto, no entanto e repito, que o tomaríamos como solução definitiva, persistindo nela depois de quatro mil anos, ainda distraídos com sintomas. Inclusive exterminando outros povos, e seus modos de viver a vida, que seguiram por caminhos diferentes dos nossos. Estes povos a que chamamos originários, cada vez mais raros, que preferimos considerar como santos ou demônios, perpetuando, além dos seus obeliscos, também o seu terrível maniqueísmo, formidável amigo.

Recentemente quase demos cabo de outro desses povos, os envenenando com nossos venenos, moléstias, fomes. E cabo do seu modo de vida mais bem-sucedido que o nosso. Seus mais bem-sucedidos modos de lidar com as curvas fora dos pontos, pois experimentados desde o início dos tempos, no velho método tentativa-erro-tentativa-acerto, tornados culturais lá onde a evolução verdadeiramente acontece, naturalmente adaptados às demandas apresentadas pelo meio e não enxertados com bisturi de corte cego. Desenvolvidos ao longo do tempo no meio bioecológico, que nós expulsamos de nossos centros, para que nunca nos lembremos da verdade incômoda sobre quem somos e de onde viemos, subsistindo entre nós apenas em pequenos cinturões ou em bolsões de atrair o interesse pelo excêntrico a que chamamos planejados.

Nós não queremos dar nossos braços a torcer. Queremos nos sentir únicos, especiais, soberbos, magnânimos... patrões! E para isso repetimos e repetimos a receita. A soma dos mesmos elementos tentando resultado cinco, não o quatro (milênios) que logicamente se repete, da adição dois mais dois. Não queremos saber desses povos, nos inteirarmos sobre os seus modos, nem sequer para tê-los como exemplo, exterminando-os a meio caminho da nossa obstinada marcha, pela manutenção do sistema da nossa iminente extinção.

Ou talvez você desconfiasse, espertíssimo, espirituoso, indigníssimo amigo, meu escravo-irmão, que tomaríamos a sua solução não como um paliativo, mas a suprema resposta. Sentado sobre a sua toga, em trono de papel incrustado de arabescos cuneiformes, um dos poucos detentores até os dias atuais, dos privilégios de se ser servido de comes e bebes e trepadas um pouco melhores — subornos efetivos de se dar como ossos a certos cães — incisivo Hamurabi, quem sabe você até tenha planejado que as gerações posteriores, levassem ininterruptamente pelos milênios subsequentes, a chama da qual os seus obeliscos foram o perfeito protótipo.

Temeroso de que os seus herdeiros diretos contassem, não com a manutenção dos seus "privilégios", mas sim legassem as misérias todas dos escravos mais evidentes, talvez você tenha pensado os seus códigos, justamente para a preservação do sistema, preferindo o status quo, os corredores do labirinto que a todos oprime, mas a alguns poucos como você, meu portentoso ditador, em corredores ligeiramente mais largos. Em correntes menos apertadas que nos tornozelos da grande maioria, mas que mantêm a todos, de qualquer maneira, no esquema escravocrata vicioso. Quase a mesma ilusão fragilíssima que contém, o elefante com a sua imensa força, prisioneiro no circo desde a sua infância.

E, assim sendo, Hamurabi, inimigo meu, antepassado tolo, mas não mais tolo do que eu, cá sentado em minha humilde cadeira antropocêntrica, no alto tão baixo da sociedade do embaraço, por fim, eu me despeço. Nem um pouco saudoso. Sem nenhum apreço. Um gosto amargo na boca e muita revolta. Prometendo-lhe toda a desonra que eu puder lhe conceder in memoriam.

 

 

abril, 2023

Daniel Ricardo Barbosa (Uberaba/MG). Autor dos livros Elo, entrelinhas e alucinações e Os nomes na máquina, participou de várias coletâneas impressas e digitais de poemas. Pode ser contatado em seus perfis no Facebook e Instagram, onde mantém constantes publicações.
 

::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::