RP – Houve um momento de cantar a felicidade, a alegria (Pequenos séculos e Como um dia come o outro). Depois veio a tristeza (Visão do térreo). E agora?

 

Proença – Sim. Eu não gostaria de perder essa alegria de origem, embora a vida nos conduza por caminhos nem sempre fáceis. Penso que mesmo dentro do sofrimento, do ceticismo, da descrença, do inconformismo, há lugar para a alegria. A alegria é libertadora, nos salva. Então seria interessante buscar uma síntese entre esses dois momentos. Mas a idade vai batendo e de repente me flagro escrevendo poemas sobre a velhice (sem vitimização, com uma leve autoironia).

 

 

RP - Em Visão do térreo, a morte possui uma presença mais forte. A que se deve isso? Para você, qual a relação entre morte e poesia?

 

FW - Visão do térreo é um livro publicado na altura dos seus 50 anos. De fato, há nele muitos poemas sobre doença, desvitalização e morte. À medida que sua obra avança, você identifica nela um espaço maior para a negatividade?

 

Proença – A presença da morte é um tema recorrente em minha poesia. Isso tem a ver com a consciência de que, ao nascermos, já estamos morrendo um pouco a cada dia. Vida e morte caminham juntas. Além disso, a ideia de morte é algo que em princípio se opõe a nosso desejo. Desejamos uma vida repleta de afetos e vivências. Mas às vezes a morte em vida, aquele "cadáver adiado que procria" do Fernando Pessoa, também nos habita. Outra coisa é que não temos muita previsibilidade de quando vamos morrer definitivamente. Bandeira achava que morreria aos vinte e pouco e viveu até os oitenta. Logo, praticamente durante toda a vida conviveu com a ideia de morte. Todos esses aspectos nos afetam, problematizando a ideia de vida e morte, vida contra a morte ou de vida como preparação para a morte. A epígrafe de Como um dia come o outro é "Morrer talvez seja voltar para a poesia" (de Guimarães Rosa, Buriti), isto é, voltar para um estado original.

 

Some-se a isso o fato de na minha experiência pessoal eu ter tido síndrome do pânico dos vinte e um aos trinta e oito anos sem um diagnóstico. Apenas em 1995 comecei a me tratar. O período antes do tratamento, em que a sensação de morte estava sempre presente no horizonte, foi dificílimo. Isso criava um sentido de intensidade e urgência em todas as coisas que fazia e vivia, como se o tempo futuro nunca se revelasse suficiente para minhas realizações. Eu só vislumbrava um plano de voo de curto e médio prazo. Felizmente, com o tratamento, as coisas melhoraram muito.

 

Há ainda mais um fato curioso relacionado à saúde. Eu também tenho a síndrome vasovagal. Por conta disso, já desmaiei umas duas dezenas de vezes durante a vida. Cada desmaio é uma pequena morte que fica gravada no corpo.

 

Mais uma circunstância: em 2006, meu pai foi submetido a uma cirurgia do coração em que praticamente tudo deu errado. Ele sobreviveu quase que por milagre (hoje está para completar 91 anos). No pós-operatório, ficou hospitalizado uns 45 dias até o quadro clínico melhorar e ter alta. Vários poemas da parte final de Visão do térreo foram escritos em ligação com esse acontecimento.

 

Quanto à negatividade, sim, acho que é um aspecto que vem se acentuando em minha poesia. Otto Lara Rezende dizia que conviviam nele um homem exteriormente alegre e outro interiormente triste. Eu me identifico com esse sentimento.

 

Grande parte da boa poesia do século mais recente é eivada de negatividade. Adorno já dizia que após Auschwitz era impossível continuar escrevendo poesia. E, no entanto, apesar da pedra no meio do caminho, prosseguimos nossa caminhada.

 

Comparando a literatura de Graciliano Ramos com a de Guimarães Rosa, Alfredo Bosi diz que a literatura de Ramos nos leva ao inferno ao passo que a de Rosa, ao céu. Embora muitos de meus poemas espelhem as dificuldades, os obstáculos, as desigualdades, os preconceitos do tempo presente, às vezes tenho necessidade de escrever um poema que nos leve ao céu.

 

 

RP - "Paulista da gema", a que se deve a presença do mar com seus navios, sereias, piratas? Isso seria de se imaginar em vivências litorâneas…

 

Proença – Pois é, mais precisamente, "paulistano da gema", porém nem tanto "da gema", expressão que tem uma conotação de classe, aquela coisa do paulistano ou do paulista quatrocentão. Mas sim, sou paulistano até a raiz dos cabelos. Nasci no Hospital das Clínicas. Brinco, dizendo que fui um acidente que minha mãe sofreu e teve de ser atendida no Pronto-Socorro do HC. Na verdade, meus pais eram estudantes de medicina, não tinham dinheiro, e os partos de minha mãe aconteciam no Hospital das Clínicas, onde era cuidada por colegas.

 

Brincadeiras à parte, todas as férias de verão, da mais remota infância até o início da idade adulta, eu passava no Guarujá. Nos anos 1960 e 1970, o Guarujá ainda era um lugar muito tranquilo, aprazível. Meus avós alemães tinham um pequeno apartamento no edifício Sobre as Ondas (famoso por sua arquitetura moderna e por ser um dos primeiros prédios a serem construídos na cidade), na praia das Pitangueiras, e uma tia tinha um apartamento na praia da Enseada. Assim, a paisagem marinha, de modo muito intenso e natural, faz parte de meu imaginário. Até hoje, ambientes marinhos me atraem. Gosto de uma praia quase deserta.

 

 

FW - Uma das suas sereias se extravia e vai parar sobre uma mesa de marcenaria, onde ela se automutila. No poema essa automutilação é relacionada à incerteza sobre o futuro do canto. Que dores tolhem o poema? Que dores o fecundam?

 

Proença – Estamos mergulhados na sociedade de consumo, onde a vaidade estética exerce um poderoso papel de mercado. A sereia desse poema quer ser mulher e para isso se submete a uma "cirurgia plástica" (ou se automutila, como você bem disse) com serra elétrica numa mesa de marcenaria. A violência à qual ela expõe seu corpo é tanta, que ela corre o risco de emudecer, sendo que o canto é seu grande atributo, é a essência de sua vida. Creio que o poema fale da dificuldade de nos aceitarmos como somos. A aparência, em termos de valor, sendo colocada acima da essência. Quantas mulheres não morrem em procedimentos de lipoaspiração, por exemplo? O poema foi escrito em meados dos anos 1990. Hoje, com as questões de gênero, a política do corpo é bem mais complexa.

 

 

FW - Você vem de uma família de médicos: pais médicos, irmã médica, filha médica, nora médica. Nos seus poemas às vezes aparece uma visão crítica em relação à mentalidade médica e à tendência a tudo patologizar. Vejo isso, por exemplo, em um poema como "Êxtase", de Como um dia come o outro, em que você contrapõe uma paciente do psiquiatra francês Pierre Janet ao líder religioso hindu Ramakrishna, mostrando como experiências semelhantes podem ser tratadas como loucura ou como êxtase. Já em "Consultório", do livro Caçambas, é descrita uma situação de constrangimento na qual você se vê sendo examinado por seu pai. Qual a origem desses poemas? Você reconhece, no segundo, uma componente edípica?

 

Proença – Exatamente. Em "Êxtase" há esse contraste entre duas maneiras opostas da civilização encarar as experiências de vida que caracterizam um comportamento fora do padrão. Em um caso a condenação como "loucura" e em outro a "beatificação".

 

Já "Consultório" foi escrito a partir de um sonho e de uma memória em que se misturaram alguns cenários: cena sádica de um consultório no filme Ninfomaníaca (2013), de Lars von Trier, cena de um documentário sobre Lacan e memória de infância com relação ao consultório de meu pai, um dermatologista renomado.

 

Cito de memória, e posso estar equivocado: a cena de Ninfomaníaca era a de um médico ou terapeuta chicoteando a paciente deitada de bruços em uma poltrona; a cena do documentário sobre Lacan era o psicanalista atendendo de porta aberta para a sala de espera; a cena de meu pai era, eu pré-adolescente, no seu consultório, minha mãe no papel de enfermeira me segurando na maca, enquanto ele extraía várias verrugas de meu pé.

 

Certamente há uma componente edipiana no poema. Eu diria mesmo um conflito. Meu pai sempre foi pessoa de personalidade muito forte, organizadora, política, pragmática, dominadora, pedagógica. Uma pessoa com muita energia e voltada para a ação. Sempre foi muito difícil para ele compreender a importância da poesia em geral e, particularmente, na minha vida. Justamente a poesia que era uma atividade mais contemplativa. Em Pequenos séculos há um poema que se chama "René Crevel" que também é edipiano ("E quando morremos/ somos a brasa/ inoportuna/ no terno escuro/ de um deus fumante/ e operante?"). Embora não esteja explícito no poema, para mim esse "deus fumante e operante" simbolizava meu pai, enquanto eu estaria mais para René Crevel…

 

 

FW - Em Tubarão vegano, há um poema que começa com a afirmação de que "Os peixes se assemelham ao sonho". Em "Retrato de família à beira-mar", de Visão do térreo, os pés da família fotografada, invisíveis para a lente do fotógrafo, fogem "como um cardume". Como certas imagens migram de um poema para o outro? No mundo familiar, o que é imobilidade, fixação, e o que pede fuga?

 

Proença – As imagens muitas vezes surgem de insights, sensações que se acendem e se fixam em nossa mente e que são a fagulha que está pedindo para ser escrita em forma de poema. Creio que as coincidências semânticas dependam mais do repertório que está lá armazenado em nossa memória ou em nosso subconsciente.

 

Penso que a imobilidade, a fixação no mundo familiar se prende mais àquilo que é exterior às pessoas, àquilo que está associado à aparência, à máscara social, que pode ser publicamente exposto. Aquilo que tem a ver com os hábitos consolidados, com a moral e a ética pactuada. A parte que pede fuga é a parte mais íntima de cada um, aquilo que precisa ser de alguma forma protegido, que precisa de abrigo, que tem a ver com o desejo particular de cada um, com a "loucura" que molda nossa subjetividade e nos faz diferentes.

 

 

RP - Em Visão do térreo, a realidade imediata se insinua mais claramente, como no poema "Abaixo de zero". Como você articula poesia e tempo presente, mundo presente? Qual a tarefa da poesia nesse campo?

 

Proença – É isso. O "tempo presente" drummondiano passou a ser uma bússola muito importante no meu trabalho de criação. Vejo a poesia como um modo de interrogar o tempo em que vivemos. Um modo de resistir à barbárie que permeia nossa civilização. Alfredo Bosi, em O ser e o tempo da poesia (São Paulo: Cultrix, 1977), nos mostra a função de resistência da poesia moderna. Muitos acontecimentos, grandes ou pequenos, nos impactam, nos sensibilizam, nos espantam. Veja-se por exemplo a questão atual de várias nações indígenas no Brasil, sujeitas a pressões econômicas de todo tipo. É relevante quando conseguimos expressar isso num poema e compartilhá-lo. O espanto ou o inconformismo pode ser uma porta que se abre para a elaboração de certas questões.

 

 

RP - A partir de Visão do térreo, seus poemas passam a abordar mais circunstâncias da realidade atual. A que se deve essa inflexão em seu percurso poético?

 

FW - Em Caçambas, sobretudo na segunda seção, intitulada "Singular coletivo", a temática social-urbana aflora com força. Vemos poemas sobre mobilidade urbana, violência racial ("A noite na coleira"), desabrigo ("Casa e bulldozer na faixa de Gaza") etc. De que maneira você desemboca nessas questões? O que você carrega do trabalho anterior, marcado pela adesão ao fantástico e ao insólito, para esse momento de reflexão acerca da cidade?

 

Proença - Em resposta anterior, comentei que, na segunda metade dos anos 1990, trabalhamos no grupo Cálamo um projeto de escrita a partir de notícias de jornal. Foi então que as circunstâncias da realidade passaram a se constituir mais fortemente como tema de reflexão e matéria para a escrita de poemas.

 

Um poema de Duda Machado, "Carapicuíba" (Margem de uma onda. São Paulo: Editora 34, 1997), foi um dos estopins para essa guinada.

 

Mais tarde, também li um artigo muito interessante de Jean-Michel Maulpoix (Dans les rues de la ville… Réflexions sur le sort moderne de la poésie urbaine. In: Le poète perplexe. Paris: José Corti, 2002; ou www.maulpoix.net/ville.html) que comparava a metrópole atual à Paris do início da segunda metade do século XIX cantada por Baudelaire. Isso e outras circunstâncias da poesia contemporânea e da própria contemporaneidade me motivaram a escrever sobre aspectos da cidade.

 

Penso que nos poemas sobre a cidade, a dimensão do fantástico e do insólito, do extraordinário, se reduz, sem desaparecer totalmente. Ou melhor, aparecendo de outro modo. Quando falo no poema "Maritacas" — "nenhum túnel/ nos fará renascer/ em outro lugar" —, ou no poema "Solidários" — "entro no trem/ […] sob pressão/ amalgamando-me/ tecido contra/ tecido/ à massa/ compacta// sem saber/ se ainda tenho/ braço perna// se os pés/ tocam/ o chão// sem saber/ se ainda sou eu" —, ou mesmo as situações abordadas nos poemas "A noite na coleira" e "Motoboy", me parece que o insólito e o fantástico migraram para o próprio real. Algumas situações reais são tão insólitas, tão inacreditáveis, que passariam tranquilamente por fantásticas. O que permanece na poética creio que seja a linha do humor. Eu arriscaria dizer, da ordem de uma ironia melancólica.

 

 

RP - A expressão "monstruário de fomes" foi retirada do poema "Mineração do outro", do livro Lição de coisas (1962), de Carlos Drummond de Andrade. O neologismo "monstruário" sintetiza em alguma medida boa parte de seu interesse por bichos e plantas, pelo fantástico, extraordinário, as metamorfoses, o monstruoso e o estranho?

 

Proença – O neologismo "monstruário" é maravilhoso enquanto invento. Sim, penso que em boa medida ele sintetiza meu interesse pelo extraordinário e demais aspectos colocados na pergunta.

 

Com relação aos poemas sobre bichos, que poderíamos considerar um bestiário, tive algumas obras de referência: O livro dos seres imaginários, de Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero (São Paulo: Globo, 1996); o livro A criação das criaturas, do Professor Tacus, na verdade, Dionisio Jacob (São Paulo: Ibrasa, 1985), e o livro Subsolo, do poeta Carlos Felipe Moisés (São Paulo: Massao Ohno, 1989).

 

No caso do livro Monstruário de fomes, o neologismo me interessou particularmente como um "mostruário de monstros" mesmo. Já em meu livro Caçambas, Victor da Rosa tinha apontado a importância dos monstros e das monstruosidades em minha poesia (Poemas de escavação da vida urbana. O Globo, 30 jan. 2016, Segundo Caderno). Isso já estava presente em meu livro de estreia, Pequenos séculos. O poema "Mineração do outro", de Drummond, onde aparece o neologismo, é belíssimo. Ele mostra toda a complexidade do ser humano: sedento de amor e afeto, mas cheios de espinhos, carências; poderia ser sintetizado pela imagem de um ouriço-do-mar. Penso que há essa dimensão em muitos de meus poemas: os monstros que nos habitam, que são parte do que somos e que mal controlamos. As questões recalcadas, mal resolvidas, que acabamos transferindo aos outros.

 

 

RP - Parece que você não se dedicou muito à crítica, ao ensaio, à resenha de literatura. Por quê?

 

Proença - De fato, tenho feito algumas apresentações de livros, escrevendo orelhas ou prefácios, mas nunca me dediquei a ensaios ou mesmo a resenhas. Eu tenho algumas limitações com relação a esse universo, talvez pelo fato de nunca ter tido uma formação institucional em literatura. Sempre fui autodidata. Além disso, não organizo o que leio, não ficho minhas leituras, de modo que não consolido um saber sistemático, que possa servir de background, repertório para a escrita crítica. Também não tenho método. Sou mais intuitivo e menos analítico em tudo o que faço. Por outro lado, meu ritmo de leitura é extremamente lento. Então, fazer resenhas também seria uma tarefa árdua para mim.

 

 

RP - Há poemas e projetos abandonados? Se sim, por quê? Há trabalhos em andamento? E traduções: alguma no forno? Deixe-nos ver um pouco sua gaveta de guardados…

 

Proença - Sempre há projetos abandonados e outros ainda não concluídos. Por volta de 2001, por exemplo, eu tinha um conjunto de poemas reunidos em forma de livro. Esse livro seria uma reunião dos poemas escritos com base em notícias de jornal. Tinha o título de Ponto de pergunta, que era o nome de uma localidade próxima ao município de Cantagalo, no estado do Rio de Janeiro. Acabei abandonando esse projeto após uma conversa com o amigo e poeta Fernando Paixão, que se dispusera a ler o livro, por reconhecer que a maioria dos poemas havia sido escrita de uma forma muito crua, muito colada ao texto original das notícias, sem transfiguração, sem deslocamento. Uma pequena mostra desses poemas saiu publicada na revista artesanal .Doc no 2 (2. sem. 2002), cujo editor era o poeta André Luiz Pinto.

 

Antes disso, houve a tradução de um livro de poemas em prosa de Edmond Jabès que, como disse, ficou na gaveta. E também de duas dezenas de poemas do livro Ferraille ("Sucata") de Pierre Reverdy.

 

De 2015 para cá também escrevi muitos poemas em versos que não entraram em Monstruário de fomes. Alguns foram publicados em periódicos e antologias. Mas ainda não cheguei a organizá-los em livro. Há também as plaquetes de tiragem limitadíssima que fiz, com poemas para crianças e com traduções, que um dia poderiam virar livro.

 

 

MINIANTOLOGIA DE POEMAS

 

 

URDIDURA

 

 

ao ouvir o canto da sereia

o sonâmbulo

pôs-se em posição de aranha

e partiu para invenções

 

atravessando o primeiro espelho

armou-se para uma grande história

deixando o nome

escrito a giz

 

trocando de vida como se troca de roupa

planejou diferentes estradas

mas antes de se lançar

apanhou o teodolito

e topografou os picos e os vales

 

só então começou a descer

liso como um raio de luz

o perfeito homem-aranha

que auscultou no próprio coração

o deslumbramento do infinito instante

 

 

[Pequenos séculos, 1985]

 

 

 

 

 

VARANDA

 

 

a poesia envenenou-me

já não há mais tempo

 

a lua investirá com seus chifres

e as cebolas no escuro despertarão

o olho do coração

 

da cadeira

de balanço

a Paciência contempla a penugem dourada das horas

enquanto um gato dorme

sobre sua cabeça

 

uma tempestade de diamantes

arremessará suas flechas

sobre o Estreito de Magalhães

 

exatamente assim

passará um milênio

 

 

[A lua investirá com seus chifres, 1996]

 

 

 

 

 

EDIFÍCIO DE HERÓIS

 

 

No décimo-terceiro

habita um matador.

Antigo prisioneiro,

matou o touro carcereiro

e fugiu.

 

No décimo-segundo

habita um cego, órfão deste mundo.

Salvou uma cidade inteira de seu martírio.

Mas matou o pai

por sugestão e por falta de informação.

 

No décimo-primeiro

habita um eloquente e narcisista orador.

Por não ter família de renome

atentou contra o poder

num país grande, mas pouco conhecido.

Foi esquartejado.

 

No décimo

habita um astrônomo.

Quis profanar a Terra, roubá-la de onde estava.

Mas depois, sob tortura,

negou suas intenções.

 

No nono

habita um santo.

Em contato com contraventores

desatinou os filósofos da ética.

 

No oitavo

mora um guitarrista incômodo e intransigente.

Quando não está de bad trip, está em êxtase.

Toca guitarra até com o pé.

 

No sétimo

mora um jogador de futebol aposentado.

Foi rei

e soube conviver harmonicamente com as embaixadas.

 

No sexto

mora um trotskista

perseguido pela polícia política.

Passou a usar bigote y sombrero

e tem sempre pesadelos com machados.

 

No quinto

mora um jovem solteiro

filho de carpinteiro.

Não tem profissão.

Vive de fé.

 

No quarto

mora uma modelo.

Morena, é um herói revelador:

já foi capa da Playboy.

 

No terceiro

habita um jornalista louco. Diz que trabalha a sério num diário.

Todos os dias se atira pela janela

vestido indecorosamente com um collant azul

onde se lê: S.

 

No segundo

reside um chimpanzé melancólico e hipocondríaco.

Vive à base de cápsulas. Sempre no mundo da lua.

Foi à Lua antes de qualquer outro homem.

 

No primeiro

não mora ninguém.

Na porta há esta placa:

ALUGA-SE.

 

 

[A lua investirá com seus chifres, 1996]

 

 

 

 

 

OS 4 ELEMENTOS

 

 

O corpo longo e escamoso de serpente

construído meticulosamente ao longo dos anos

anel por anel

apoiado em sólidas patas de lagarto.

 

A engenharia da cabeça comprida, maciça,

com dispositivos de permanência subaquática;

o crânio achatado, as pálpebras móveis

e as mandíbulas enormes de jacaré

entrevendo-se a grade de caninos.

 

A língua bífida, mística, com retoques bíblicos,

ativa como um metrônomo hipnotizante.

 

Asas de gigantesco morcego, quase blindadas,

interligadas eletricamente com os olhos sanguíneos

e com as garras pontiagudas de águia.

 

As ventas semioblongas no focinho de monoceronte

aperfeiçoadas com precisão genética

para expelir à máxima potência

o fogo de suas turbinas.

 

Nome: dragão.

 

O menor atrito ou ruído

pode desencadear sua natureza bélica.

Contudo, uma berceuse de Fryderyk Franciszek Chopin

o fará adormecer como uma joaninha.

 

 

[Como um dia come o outro, 1999]

 

 

 

 

 

A SEREIA

 

 

deitou-se longitudinalmente na mesa da marcenaria

e ligou a serra elétrica

 

a barbatana de aço

principiou a queimar-lhe a cauda

 

seus olhos começaram a destilar

longos novelos de corais

 

rangente

roía as cordas de um paraquedas

 

noiva a se modelar

mutilava as estrelas da carne

 

muito iria lhe custar

compor a próxima ária

 

e nem bem tinha certeza

de que ainda seria capaz

 

 

[Como um dia come o outro, 1999]

 

 

 

 

 

ÊXTASE

 

 

Madeleine

pretendia subir aos céus.

 

Só caminhava

na ponta dos pés

pois acreditava que Deus

a conduzia para cima

pelas axilas.

 

Ramakrishna

desde adolescente

gostava de vestir-se de mulher.

 

Tinha compulsão por doces

como se estivesse grávido.

Seu corpo ficava tão quente

que a terra em volta

restava calcinada.

 

Madeleine

deu entrada num sanatório

em 1896.

 

Seu médico

Pierre Janet

pesava-a com frequência

sem convencê-la entretanto

de que não levitava.

 

Dizia-se possuída por Deus

e em certas ocasiões

apresentava em várias partes do corpo

chagas de Cristo.

 

Ramakrishna tornou-se

um famoso místico.

 

Deu entrada nos céus

efusivamente

em 22 de maio de 1886.

 

 

[Como um dia come o outro, 1999]

 

 

 

 

 

A INVISÍVEL CICATRIZ

 

 

nascer

é ser novinho em folha

e já deixar cicatriz

 

viver

é cobrir os outros

de cicatrizes

e ser coberto

 

mas nem tudo

são cicatrizes

 

algumas incisões

definitivamente

não se fecham

 

por isso

aliás

morremos

 

 

[Visão do térreo, 2007]

 

 

 

 

 

ABAIXO DE ZERO

 

 

Não peço esmolas,

eu olho carros.

Lá todo mundo me conhece.

 

Estava me olhando

no espelhinho.

 

Daí o Cabral veio

me pegou pelo braço

me levou pra geladeira.

 

Antes de me colocar na geladeira

perguntou prum funcionário do supermercado

que arrumava umas frutas:

 

– Que é que eu faço com ele?

O cara falou:

– Coloca ele no freezer.

– Quanto tempo?

O outro:

– Meia hora, que ele é fortinho.

 

 

[Visão do térreo, 2007]

 

 

 

 

 

RETRATO DE FAMÍLIA À BEIRA-MAR

 

 

A beira do mar é grande.

 

Nela cabe

toda a família (uns vinte)

posando para a foto

em trajes de banho

– costelas e barrigas,

coxas e joelhos.

 

Menos os pés.

 

Os pés

são preciosos demais

para se mostrar em público.

 

Por isso

foram deixados sob a água.

E é provável que

na hora da foto

 

tenham fugido

como um cardume.

 

 

[Visão do térreo, 2007]

 

 

 

 

 

CONSULTÓRIO

 

 

afinal

meu pai se tornou

um dermatologista

heterodoxo

 

só atendia

de porta aberta

 

pedia ao paciente

antes de mais nada

para cantar uma canção

ou declamar um poema

 

depois

para relaxar de bruços

emborcar

sobre uma poltrona

 

da sala de espera

eu assistia a tudo

e intuía:

na hora h

saberei resistir

 

até um amigo íntimo

bastante formal

pude ver de bruços –

e me constrangi

com a cena

 

quando fui para a maca

minha mãe

também médica

(ginecologista e obstetra)

fazia as vezes

de enfermeira

 

tentava me convencer de algo –

mas eu era

invencível

 

 

[Caçambas, 2015]

 

 

 

 

 

A NOITE NA COLEIRA

 

 

sou

da cor do asfalto/

da noite

 

noite/ antiquíssima/

terei quinze?

 

não sei falar –

não sei pensar?

obscuro

cuspo

 

eu

(posso dizer eu?)

não tenho pai

não sei de mãe/ avó não quer

não tenho teto/ certidão/ cordão

 

eu/ nu

preso

ao poste

pelo pescoço

 

uma tranca

de bicicleta/ a coleira

de ferro

 

doem

estrelas/ vergonha

tatuadas

na carne

 

para mim

vida e sol

se põem

na contramão

 

sou

a própria noite

no pelourinho

 

 

[Caçambas, 2015]

 

 

 

 

 

CARTÃO-POSTAL

para Ana Cristina Cesar

 

 

minha terra tem palmeiras. não quero morrer sem ter ido ao zoo com você numa tarde de verão (quem sabe soltamos os animais?), ao planetário numa tarde de inverno (quem sabe soltamos as estrelas?). saio do pensamento e vou a todos os lugares do mundo. a gente sempre acha que é Fernando Pessoa. ou seu avesso. sou de um tempo em que viajar é partir. Pedra Sonora, Uruguai, Amsterdã, Londres, Irlanda, País de Gales, Espanha, Estados Unidos, Paraguai, Maranhão, Bahia, Pernambuco, Ceará, Bariloche, Buenos Aires, Búzios, Brasília, Campos do Jordão, Roma, Paris, Santiago, São Paulo, Portsmouth e, principalmente, Rio e Niterói, onde nasci. esse o meu pequeno mundo, meu exílio. minha terra é onde não estou. vivo. vivo fingindo. finjo que vivo. a poesia é uma mentira. não quero morrer antes de ver meteoros jamais vistos se beijarem impotentes. não quero morrer sem experimentar óculos para daltônico. não quero morrer antes de preencher meu caderno terapêutico. não quero. e se morrer antes disso não verei a lua de perto. sobrevivo. sobrefinjo. parece que há uma saída exatamente aqui onde pensava que todos os caminhos terminam. uma saída de vida. agora que você está chegando, não preciso mais me roubar.

 

 

[Monstruário de fomes, 2019]

 

 

junho, 2024

 

 

Ruy Proença (1957) nasceu na cidade de São Paulo, onde vive. É poeta e tradutor. Autor dos livros de poesia: Pequenos séculos (Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007), Caçambas (Editora 34, 2015) e Monstruário de fomes (Patuá, 2019). Publicou também os livros de poemas infantojuvenis Coisas daqui (Edições SM, 2007), Tubarão vegano e outros elementos (Espectro Editorial, 2018) e Um ninho na ponta do nariz (Galileu Edições, 2021). Traduziu os poetas franceses Boris Vian, Paol Keineg e Henri Michaux.

 

Mais Ruy Proença na Germina

> Poesia 1

> Poesia 2

 

 

Fabio Weintraub é psicanalista, editor, doutor em Letras pela USP e autor, entre outros livros de poemas, de Novo endereço (2002), Treme ainda (2015) e Quadro de força (2019).

 

 

Ronald Polito (Juiz de Fora, 1961) é poeta e tradutor. Seus últimos livros de poesia foram Ao abrigo (Belo Horizonte: Scriptum, 2015) e Rinoceronte (São Paulo: Quelônio, 2019).

 
::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::