©Fabriano Rocha
 

 

 

 
 

 

 

 

Botas batidas

Suspeitei que falasse da vida toda; e, assim, me conto o que está próximo.

 

 

 

 

 

Este livro tem como ponto de partida a morte de meu pai. Misto de afeto e ficção, nele os textos e os diálogos permitem a possibilidade do que ele diria se estivesse presente. Eu nem sei se terminamos no começo de uma última conversa.

Agora existe um calendário de outra ordem.

 

 

 

 

 

Tem dias que a única urgência é um bom café.

Permita-se um bom café e cinco minutos de atraso.

O mundo vai sentir sua falta. Sempre.

Mas o mundo não sabe que você existe.

 

 

 

 

 

Dedico o livro à Andréa Peccine da Costa que mesmo

eu em queda-livre tem a generosidade de me fazer voar.

 

 

 

 

 

Morrer é mudar-se provisória e definitivamente para a memória dos outros

 

 

Começa como é possível começar. Com uma asfixia contida. São 5 horas esticadas da madrugada de domingo. Sou avisado com um silêncio equilibrado entre os dentes. Em despertar já acordado; o som que não precisou tocar mais de uma vez: Neno, o pai morreu!

Ainda mal posto sobre os pés, de súbito, lembrei como ele me contaria se pudesse. Tenho certeza que ele diria "entreguei a rapadura, bicudinho!". Daria um sorriso idiota depois de uma gargalhada de arrancar lágrimas.

Apenas pensei em minha mãe. Perguntei como ela estava. A Mana descreveu que ela verificava cada centímetro do corpo dele como se fosse possível encontrar um fio solto que a levasse de volta ao labirinto criado por eles ao longo de quase 60 anos. Ela não estava perdida. Tão pouco desacreditada. Mas nada poderia fazer. Eu podia imaginar os seus olhos verdes inundados de um milhão de gotas salgadas que tornavam seu rosto cada vez mais rubro. Eu não podia fazer nada. Ninguém pode.

Perguntei pelo Caco, meu irmão mais velho que durante toda a internação do pai esteve ali pari passu.

Quinta-feira, exatos dez dias antes de sua morte, o Caco fez um vídeo. Gravou o pai respondendo de forma automática. Erguido, sentado na cama ele simulava diálogos e gesticulava com as mãos explicando algo ou fazendo contas em uma máquina imaginária para pessoas imaginárias.

Fiquei emocionado. Pensei que ali se iniciava a recuperação definitiva que aguardávamos.

Ele morreu. Despertou apenas para dizer a hora. E eu não conseguia parar de pensar nele tentando me justificar a sua morte. Como se isso fosse, naquele momento, um diálogo. Dez dias. Dez filhos. Fiz a conta para exercitar a minha obsessão por encontros matemáticos que nunca dizem nada, mas permanecem. Dez dias. Um para cada filho.

Talvez ele tenha partido sem saber. Talvez tenha partido como sempre me confessou: louco. Ele queria morrer louco. "A loucura é uma delícia", dizia em nossas conversas que se estendiam por qualquer que fosse a madrugada. "Nesse mundo torto, ficar velho e perder a consciência não é perder muita coisa". Tomávamos café. Chá. Leite quente. Sorvete. "O de coco é o melhor!". Ouvindo música clássica ou algumas novidades que eu teimava em apresentar. Coisa de filho provocador. Depois ele me surpreendia comentando a música. Sorria muito das letras. Todos que tiveram contato com ele ficavam envolvidos em suas histórias bizarras. Tiradas de uma mente criadora. Como se quase tudo pudesse ser instantâneo; ele surpreendia. E no meio das reticências entrava no quarto fazia uma piada e era tudo uma alegria. Lia alguns trechos de filosofia. Era cômico e pessimista. Admirava o Schopenhauer sem reservas e guardava distância com trechos. Aquilo era um bálsamo. Um desamparo otimista. Trágico. Era bom!

O primogênito colocou junto de seu corpo um martelo. Curioso. Eu lembrei que o pai afirmava que o martelo era a única ferramenta capaz de consertar o seu próprio erro. Fiquei feliz com a presença do martelo. Deu uma incrível sensação de contas zeradas.

Conforme nos fez prometer — feliz e com gargalhadas exclusivas — os dez filhos o levariam ao seu túmulo. Seu tumbão!

Dispensamos o padre pela metade. Erguemos o caixão de cerejeira a dez mãos. Subimos a rampa na direção do terceiro andar. Ele pesava uma tonelada. Eu não comentei na hora. Mas pensei: "Sorrir deveria deixar as pessoas leves" e escutei o que bem poderia ser a sua resposta: "Ninguém fica leve depois que morre. Sobe e fica na tua!".

Cada filho jogou uma pá de cimento para selar a pedra. Um gesto que muito repetiu em nossa casa para reformar e que terminou por nos ensinar tantas coisas.

Foi um domingo ensolarado de céu azul intenso. Não poderia ser outro dia. Saiu-se bem.

Foi o que pensei.

 

 

 

 

 

Perseguir a noite é também morrer o dia

 

 

No domingo seguinte, nos reunimos na casa dos pais. Era aniversário do sexto filho. Jamais ficaria sozinho aquele que fizesse o aniversário no mês em que o pai faleceu. (Ninguém que faz aniversário no mês em que o pai morre deveria ficar só). Um acordo automático. Proposto por ninguém, mas entendido por todos. Como quase tudo é — eu imagino — em uma família numerosa.

 

 

 

 

 

Para cada um cabem as aspas que possui

 

 

Ele procurava uma amplidão. Com olhar suspenso. Exílio diferente. Perto e querendo ser longe. Como se estivesse pronto para zarpar e nunca chegar! Mas acabava em achados e estreitos revelados pelo fio lacrimal que cobria os olhos. Senti a obrigação de perguntar mesmo sabendo que poderia disfarçar.

— Tudo bem, pai?

No último compasso repousa e cai.

— Bonito isso.

Quando eu morrer tu vais sentir saudade de mim.

— O senhor estava pensando em seu pai?

Ele era um bolaço. Tu irias gostar dele.

Falei que sim, de costas, já na direção da cozinha para servir um chá e deslizar o nó na garganta. Que sensação terrível ver o pai com aquele pesar e não ter possibilidades de mudar o rumo da conversa. Julgar o futuro que para ele, naquele instante, era passado, em nada me aliviaria. Pensei: por que esse assunto agora? De repente, pouco a pouco eu percebi que o pior da morte seria não ter com quem partilhar a memória. É para isso que serve a fotografia?

Ele abriu aspas e seguiu contando as mesmas histórias com alguns pontos de novidade inventada de última hora para exercitar a sua relação com seu pai e dar algumas risadas. Limpou os olhos com o lenço como quem enxuga a alegria mal misturada com o aceite. Fechou aspas.

 

 

 

 

 

A mão da morte é a última a abandonar o corpo: dentro de todo luto reside asfixiada a incerteza

 

 

A qualquer momento, ainda que não seja possível definir saber aonde vamos, resta-nos exigir do imaginário apenas uma boa companhia. Quem agora? Onde agora? Quando agora? Apesar de tudo, continuaremos. Prometidos de muita satisfação. Desertos. Com a mesma gentileza ao alcance.

Na tentativa de cancelar o mundo ou sair do lugar, trataremos, por vezes, os dias tempestivos como memória de peixe – vagar uma sonambulice tola de nuvens ralas a cada três segundos. Um modo sem pressa. Sem pressa. Afinal para que a pressa se nunca saberemos o lugar das coisas? Acabam ficando por ali, mas acabam não ficando. O fim é mesmo recorrente e bem-sucedido sem o qual desesperadamente desistiríamos da linha de partida.

 

 

 

 

 

Cada noite de tempestade tem sua maneira de falar

 

 

Morrer bem poderia ser dormir um sono breve de escapatória leve. O périplo esgota as forças e faz da cadeira do tempo, onde pesa o corpo para descansar, uma estrutura desconjuntada e convertida em diário. Agudiza o mau conforto da ausência, o mal-estar qualquer que seja; cada um por si. O vazio atinge firme e forte. Tem sua própria hora. Não é algo para ser resolvido: nunca será. Talvez, apenas visitado em certos dias que parecem sem bordas.

 

 

 

 

 

A gente inventa o silêncio na tentativa de nos ouvir dizer o que é preciso para de lá sair pelo caminho mais curto ou fazendo desvios aos fiapos

 

 

— Pai, deu uma saudade esquisita de desenhos hidrocolores em páginas de livros cobertos de textos serifados. Acho que fui eu quem coloriu alguns dos livros da enciclopédia lá de casa.

— Não sei se foste tu. Vocês eram terríveis. A infância é uma época em que a gente tem a capacidade de engolir o Sol e não se queimar.

— Bacana esta figura para a passagem do tempo.

Já te disse que tu és feliz?

— Sim. Mesmo eu não entendendo muito bem.

Pouca gente pode engolir o Sol filho... pouca gente.

 

 

 

 

 

Extravio

 

 

A memória de qualquer coisa nunca é a mesma porque nosso modo de ver muda, nossa maneira de sentir muda. Como um palimpsesto sobre o qual se registra cada lembrança de maneira apropriada ao seu tempo acrescida ou subtraída de detalhes assumidamente ficcionais que dão lugar a outros detalhes mais ficcionais ainda. Circunstâncias por mais intensas sempre correm o risco de se tornarem verdadeiramente bufas.

 

 

 

 

 

Capítulo 1

 

 

Um homem está no trigésimo andar de um esqueleto de concreto; um desses horrorosos obeliscos deixados em sua concretude como um fantasma de obra inacabada. Sem paredes, só escadas, lajes e estruturas. O homem senta em uma cadeira dessas de café parisiense do início do século 20. Aquele século que prometia tantas mudanças e progressos, mas que ao cabo mutilou mais de duzentos milhões de pessoas em guerras estúpidas e imorais. Ele senta a dez centímetros da beirada do lado norte do edifício ainda sem parapeito. Venta. Um vento que passa por dentro do corpo que agora está equilibrado apenas sob os dois pés traseiros da cadeira. Inclinada ela está apoiada em um pilar. Nada abaixo de seus pés. Suspensos eles se projetam para fora do prédio, cem metros acima do chão e alguns quilômetros de nuvens.

Todas as terças-feiras ao final da tarde, ele sobe quinhentos e vinte e um degraus para ver o pôr do sol de um ponto onde o silêncio desafia as paredes num diálogo com o ar em movimento cada vez mais forte à medida que vence andar por andar.

Abre a sua pasta de couro tipo envelope com fechamento simples de corda enrolada em um botão. Retira uma pilha de folhas. Faz algumas anotações com seu lápis jumbo preto 365. Lê quatro a cinco páginas. Como quem tenta despistar as próprias memórias solta, a bailar violentamente, algumas páginas. O sol parece se movimentar mais depressa para quem o faz perguntas tolas. Ele faz perguntas tolas. Não sobra tempo para muitas páginas. Recolhe tudo. Guarda as folhas, o lápis. Cada qual em seu compartimento. Desce lentamente da cadeira inclinada. Na borda do abismo fecha os olhos. Respira. Quebra a bússola imaginária e se resigna a descer os quinhentos e vinte e um degraus.

 

 

 

 

 

Capítulo final

 

 

Trastes, objetos e outros fatos atados e desatados. O homem é um funcionário público destes que morre a conta gotas, frequenta os departamentos para cumprir seu penoso horário e receber o seu salário. Detesta e não aguenta mais carimbos e burocracias e papeis e cafezinhos aguados feitos pela vaquinha dos colegas que preferem cafés com grãos misturados e farelos e soja. Colegas mal lapidados, sem qualquer refinamento. Insuportáveis como as câmaras de pneus sem ar ou os elevadores barulhentos do trabalho, ou os fios desencapados das tomadas expostas aguardando uma empresa terceirizada que provavelmente e indiretamente pertence a uma colega ou amigo do colega terceirizado político. Mais um que engrossa a fila das licitações e dos editais que dia a dia é obrigado a ajustar desde as questões jurídicas até o péssimo português escrito por outros funcionários tão ou mais asfixiados por tedioso trabalho que só cutuca a alma em busca de fazer outra coisa de que gosta. Sem ao mesmo tempo saber agora do que gosta. Para sair dali e se refugiar em algum lugar que faça sentido.

O homem está sentado no meio fio da calçada aos pedaços. A mesma calçada que nos últimos anos decorou a batida dos pés sobre as lajotas frouxas. E daquelas lajotas que espirram água em dias de chuva. Do outro lado da rua. Fita o prédio antes da implosão iminente. O esqueleto esquálido com tudo o que ele viveu em cada terça-feira vem a baixo. Doze onze dez nove oito sete seis cinco quatro três dois um. Tudo e nada e pó.

Nas notas iniciais de Promenade (Allegro giusto, nel modo russico, senza allegrezza, ma poco sostenuto) da suíte Quadros em uma exposição, feita em 1874 por  Mussorgsky para homenagear seu amigo morto; congela.

Agora, com respiração em código morse e envolvido pela nuvem de restos minerais só consegue esboçar o que pensa sobre a morte: "Como não conseguimos ver que é tão frágil e simples a vida a ponto de perder tempo com pequenas nulidades e coisas sem paladar algum. A vida deve ser sempre um ato de bom gosto". Dá ao Setter irlandês, confortavelmente acomodado ao seu lado, o nome de terça-feira.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Vitor André Rolim de Mesquita é formado em Artes Plásticas — História, Teoria e Crítica de Arte — pela UFRGS, e pós-graduado em Economia da Cultura pela Faculdade de Economia da UFRGS. Designer gráfico e editorial, crítico de arte e especialista em Economia da Cultura. Atua no segmento editorial há 25 anos e foi membro do Conselho de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, gestão 2019/2 até 2023/1. É parecerista do Ministério da Cultura. É editor da Pubblicato: www.pubblicato.com.br.

 

 

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