a criança
mãos mais perto do chão
as coisas maiores do que são
lambuza a parede
corre pra baixo da mesa. espia a mãe
 
a mãe estende a mão
liga a máquina de
lavar roupa suja em casa
e vai esperar pelo inesperado
na sala de estar
 
a mancha no assoalho é lavável
e bem sabe quem
se esmerou em
 
o pai não volta tão cedo
é dia de esticar com os amigos
um bate bola talvez um bate coxas
na contramão dos laços eternos
 
o avô assiste e voa
longe deixa o tempo passar
sobre o tempo que passou
esquece o medo da morte
e descobre
o neto seu melhor passa-tempo
 
a casa
lar
gamente furta-cor
acolhe a todos com precisão
 
 
 
 

alheio ao próprio sentido 

 

                aquém de tudo e de todos os poemas

 

um poema

existe além e muito antes

do poeta 

                o poeta rumina um desejo

na

lonjura de um sempre

no

alto de uma profundeza

num

pedaço de sem fim

num

mar petrificado 

                encontrar a letra inaugural

 

que

relê o futuro

antecipa o passado

e faz

as coisas em seu estado original

ausentes de peso 

               poema e poeta

lábios opostos de um mesmo beijo

 

               brincam de esconde-esconde 

 
num céu iletrado
 
 
 
 
 
de onde vem este gosto de vulva em minha língua
essa fala, cheiro de uva que a chuva empresta à vinha
aroma de eros que a letra exala, esse fato
gozo de favo a festa que se derrama enquanto falo
 
 
 
 
 
entre o breu e o brilho
armou o cavalete.
pintava fora do quadro
com os dedos em pleno ar
onde o espaço era amplo
e a tela mais macia.
o que ouvia punha ali.
naquele pedaço
 de céu de chão de sonho
o pio do passarinho
a voz do vendedor de loteria
o apito do afiador de facas
a correria para o recreio.
os gritos no pátio do colégio
a mãe chamando para o almoço
e o gosto do bife de fígado da avó
poria depois, bem depois
quando tudo estivesse esquecido
num momento em falso
em alguma noite sem estrela
sem esperança, sem salvação.
 
pintou pintou e pintou
 
até lembrar
definitivamente
que antes de tudo
toda arte existe pra nada.
 
 
 
 
 
escrever
 
esquecer-se no papel
 
permitir que a página imagine
 
apalpar cada palavra
 
cada silêncio
 
entre um entendimento e outro
 
cada preciosa desimportância
 
como um violão sem cordas
 
um relógio sem ponteiros
 
um poema sem autor
 
 
 
eu queria escrever um poema
mas poema não se escreve
cai na cabeça da gente
como uma maçã
ou um céu bárbaro
ou a lembrança
de um castelo de areia
sempre esquecido
 
eu queria escrever um poema
como quem pinta
ou despinta um grilo
escrever como se inscrevesse
na pele
de uma janela aberta
um caracol
um fóssil
ou um corvo amarelo
no ombro de um leão negro
 
eu queria escrever um poema
um que fosse a festa do sentido
mas poema não se escreve
transborda
como um sonho
uma idéia
uma vontade
 
luz de estrela
 
 
 
 
 
faço versos
sim, faço versos
sou réu confesso
faço versos
quando tropeço
no universo
 
faço versos de bobo
e não há acerto
que me faça
não errar de novo
 
faço versos
porque posso
se não faço
me dá um troço
 
faço versos
por nada
por pirraça
é a minha cachaça
 
faço versos
porque quero
se nesse mundo
tudo tem um número
o meu é zero
 
 
 
 
 
já vou faz tempo
nem sei onde
meu caminho de volta
me leva pra longe
 
já venho faz muito
nem sei ao certo
meu caminho só de ida
me deixa mais perto
 
vou a lugar algum
pra que ir
se tudo aqui significa
 
sou da vanguarda
não de quem vai
mas de quem fica
 
 
lembrei de vovó
canto mais velho que o pó
 
lembrei de esquecer
que às vezes é melhor morrer
 
lembrei de mim
sempre perto do fim
 
lembrei desse defeito
que se tornou perfeito
 
lembrei do mar
e, antes que esqueça,
lembrei de lembrar
 
 
 
 
 
na imensidão branca
do papel, grita
a letra uma escritura
 
(certo silêncio
é audível somente
às orelhas das páginas)
 
a folha vazia, parede fria
de caverna escura
sonha garatujas
de argila e carvão
 
(fina linha desenha o vocábulo
sílaba a sílaba
sublinha, com singeleza de cinzel
uma canção antiga)
 
versos voam sem asas
o paraíso da criatura
é o deserto da palavra
 
 
 
 
 
nunca mais digo nunca
nunca é muito tempo
e sempre também
 
vou dar um tempo
vou dar tempo ao tempo
o tempo engole o tempo
engole tudo
os bons os maus tempos
num gole o temporal
 
vou dar um tempo
até o singular
ficar plural
 
 
 
 
 
o Deus da palavra
é um Deus silencioso
 
cavalga páginas em branco
lacera estruturas neuronais
se entranha na trama celulósica do papel
como um vírus sub-atômico
 
(dá asa ao nada, língua à vida
anima a coisa inanimada)
 
no sal da sua saliva
pulsa aceso o caos de um céu imaginário
onde nasce a flor axial do sentido
 
o Deus da palavra
leva o poeta carinhosamente pela mão
até a beira do abismo
 
 
 
 
 
o guarujá passa
alguma coisa acontece
minha pressa vira prece
e o guaíba desagua na calçada
 
se  o guarujá passa
me vem à cabeça
a balada do pintor
que pintava
de mãos amarradas
 
a imagem daquele louco
que dizia o verdadeiro quadro
nunca estar pronto
 
este é o ponto
a poesia me sabe
quem sabe eu sei?
 
amor é droga pesada
não é melhor em pasárgada
mas se o guarujá passa
antes fosse amigo do rei
 
a vida é já
tudo passa
passa o guarujá
 
 
 
 
 
o mármore grita:
— homem ao mar!
 
pendurada na parede
a moldura vazia
nada diz
nem uma pista
nenhum sorriso de Monalisa
enigma algum a decifrar
 
é feito de silêncio e sal
o cerne de um talvez
 
ossatura de sonhos
mó de redemoinho
lá se foi a besta
cravar sua letra
na pele de uma página
na bala de um obus
no lombo de um desassossego
 
montar um cavalo
sem doma em pelo foi o que fez
 
quem escreve
recebe não um santo
mas mil demônios de uma vez
 
o som da neblina chega 
com sabor azul de silêncio
 
       algo ilegível paira
quase ausência, pura vacuidade
 
       aloja-se entre as frestas o odor
de uma sílaba translúcida
 
       elo entre horizontes improváveis
tátil é o que não se vê mas se sabe
 
       a lâmina de uma idéia
corta o verso por dentro 
 
       eriça o pêlo da alcatéia 
extingue a certeza incontroversa
 
       o motor da criação gira suas hélices
oca é a matéria escura da imaginação
       com a chuva vem o granizo
perto do fim o descomeço
 
       antes da letra a linha
antes da linha o gesto
 
       nexo is sexo in the léxico
 
 
 
 
 
I
 
ora direis
em minhas memórias
fazer o quê?
 
o amanhã
despertou mais cedo
o coração mudou de endereço
só me acho quando me perco
esqueço a letra quando não devo
meu outro nome é medo
e se quando era nem mesmo
um sonho distante
no ventre de minha mãe inascida
e meu avô paterno salgava couro e carne
ao passo que o materno
plantava árvores nos campos da Redenção
tudo convergia para este ápice
onde o globo pára
o tempo inexiste
e o espaço
tomado pelo êxtase imóvel
de um instante ínfimo
desiste
 
 
II
 
sois um diluidor
disse o verbo ao criador
parto sem dor neve no equador
naco de metalíngua na boca do trovador
o verso no alpendre a letra no quarador
a palavra a lida a palavra lida
poesia de invenção
berrando estranhamentos paradigmáticos
ao  futuro do século passado
reinventando a canção
recriando sintaxes
anunciando
o apocalipse das artes
 
 
III
 
no alto da escada
sem degraus ou corrimão
brilha a luz de um sol extinto
celebração das cerebrações
encho de vinho a taça de um crânio vivo
e bebo à saciedade
 
batuque de pano e couro
samba de engraxate
 
 
 
 
 
poemas
 
p/
outros
p/
poucos
p/
doutos
p/
loucos
p/
todos
 
 
 
 
 
escrever
seguir o curso
entre a surpresa e o susto
 
ler as entrelinhas
como o vento nos arbustos
 
 
 
 
 
sempre corri atrás de mim
como uma criança
atrás de um balão levado pelo vento
 
eu era o vento e não sabia
 
 
 
 
 
sim, pretendi ser mais do que sou
 
desejei
a estatura da araucária
a sombra da figueira
os braços verdes do guapuruvu
 
mas que fazer!?
 
meu caule tem pêlos
os galhos, cotovelos
folhas de papel na ponta dos dedos
 
e meu fruto
semente feito letra
 
 
 
 
 
escrever
 
orar
obrar
soçobrar
 
obra
é o q
sobra
 
 
 
vem de viés esse ninguém
dentro de mim.
— de acordo?
mas não firmo contrato.
mal acordei e já estou sonhando
acordado.
 
máximas insignificâncias
 
— troco um velho infame por uma lâmpada queimada!
 
essa noite não dormi nada,
me perguntava:
 
— onde fui parar que não me acho?
— dei um godô em mim mesmo, acho.
— diacho! e daí!?
— e daí que eu não tenho nada a ver com isso
— como não!?
— não tendo.
 
quando se tem o melhor de uma mulher
quem quer ser outro?
 
que o vinho aguça a sensibilidade eu sei
mas que amplia a percepção dos
feromônios femininos descobri agora.
 
— vai um Pera Manca aí!?
 
 
(imagens ©sara roitman)
 
 
 
Alexandre Brito é poeta, músico, letrista, produtor cultural, editor da ameop — ame o poema editora. Nascido em Porto Alegre, começa sua trajetória como poeta nos anos 80, em Belo Horizonte. No ano de 1986 publica Visagens pela Editora Arte Pau Brasil. Em São Paulo, juntamente com o poeta e jornalista Fred Maia, participa ativamente da "Edições Nômades", editora que publicava poemas em vários suportes (livro, poster, cartão, postal, camiseta) usando a técnica da gravura serigráfica. Com os poetas Paco Cac e Samaral (Rio de Janeiro), publica uma série de Jornais poéticos 1990, 1991, 1992. Idealizou e coordenou como editor a Coleção de poesia Petit-Poa (em sua primeira fase; formato das caixinhas) para a Coordenação do Livro e Literatura da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, quando foi publicado Zeros. Também produziu eventos como o 2° Poetar (1991/SMC-POA) e a 1ª Semana da Fotografia de Porto Alegre (1993/SMC-POA). Tem poemas publicados em diversas antologias e revistas especializadas. Integrou a Banda Os Três Poetas com Ricardo Silvestrin e Ricardo Portugal.  Integra a banda os poETs com os poetas/músicos Ronald Augusto e Ricardo Silvestrin, desenvolvendo trabalho de letrista e compositor. os poETs acabam de lançar pela YB Music o Cd Música legal com letra bacana.