OS LONGOS CÍLIOS DA VIZINHA

 

Um dia vou até lá pedir uma xícara de açúcar. Ou simplesmente aceitar um dos convites para tomar café. Vou tentar me aproximar sorrateiramente da bolsa dela, abrir e pegar algumas coisas. O perfume dela seria perfeito, mas creio que ela não o carrega na bolsa. Não faz mal, eu pego seus cigarros e já vou me acostumando a fumá-los. Na verdade, queria me apoderar de tudo o que estivesse em sua bolsa. Absorver seu estilo diluído em seus objetos, sugar sua essência como se fosse cocaína. Mas preciso ter calma, começar bem devagar. Tenho sorte de poder vê-la da janela, posso estudar seus gestos e pequenas delicadezas diárias. Sei como faz ginástica. Sei como segura o telefone sem fio entre o ombro e a bochecha. Aquela bochecha tão rosada! Daqui não dá para ver o que é que passa no rosto, mas vou descobrir. A maquiagem dos cílios dela é o mais importante do rosto. Será que são postiços? Não me decido se quero senti-los nos dedos ou puxá-los com força. Mas ainda vou chegar perto desses longos cílios. Terei oportunidades, é só ter calma. Não se pode ter pressa. Tenho que freqüentar a casa dela assiduamente, até que ela desmonte a falsidade inicial e passe a agir naturalmente. Quando eu já tiver a confiança dela, vou saber. É só comparar o seu jeito com o que eu vejo pelo binóculo todos os dias. Preciso prestar atenção nas palavras que ela usa, no tom de voz, nas gesticulações. Quero estudar a maneira com que ela mexe no cabelo, torce a pontinha da orelha. Também é importante investigar as entregas de seus admiradores, que vão denunciar que flores, bombons e presentes que ela gosta. Vou começar a anotar num caderninho as roupas e brincos que a vejo usar. Compro os mesmos CDs e livros que ela tem, ou até mesmo peço emprestado, quando já tiver me aproximado.  Preciso aprender as línguas que ela fala, as gírias que usa.  Vou começar a fotografá-la daqui. Se bem que o ideal seria filmá-la, registrar seu jeitinho de andar, de tossir e espirrar, de rir baixinho e chorar com soluços inaudíveis. Mas não tenho filmadora, só me resta observar. Observá-la flertando seria ótimo, perceber suas táticas. Vou segui-la de novo até o shopping, e fingir que a encontrei por acaso. Assim posso vê-la de novo mordendo o canudinho depois que a bebida já acabou, torcendo as pontas do cabelo no dedinho. Vou estudar tudo a respeito dela, as bebidas e comidas favoritas, as atividades os sonhos. Vou fazer tudo igualzinho a ela. Assim, vou finalmente jogá-la no poço do elevador, e aí vamos ver o que o meu marido acha disso.

 

 

A ESPOSA DE LOT

 

 

                                                                    "Salva-te, se queres conservar tua vida.

Não olhes para trás, e não te detenhas

em parte alguma da planície; mas foge

para a montanha, senão perecerás".

Gênesis 19, versículo 17.

 

 

         A mulher do político detesta engarrafamentos. Olha aflita a calçada, medindo-a até onde pode enxergar, imaginando-se em passos rápidos percorrendo essa curta distância que se torna enorme por causa dos carros. Dos outros carros. Dos carros dos outros.

         Em situações irritantes, a mulher do político sempre pensa em dinheiro. Ou, abrangendo mais, pensa em sucesso. Pensa no seu próprio sucesso paradoxalmente como uma afirmação do fracasso, porque o engarrafamento humilhante mostra a ela que roupa-jóia-sapato-bolsa não a tornam sobre-humana, e antes de ser mulher de político, é apenas uma mulher.

         Pensa nas estantes da biblioteca, nos títulos e nomes enfileirados. Todas as prateleiras completas, sem pequenos espaços vazios, como as cadeiras da platéia na entrega do Oscar. Comprar mais um sempre era um problema, porque implica em substituir outro. A menos que se comprem vários juntos, ocupando uma prateleira vazia. Se faltarem alguns centímetros para completar a prateleira com exatidão, compre mais alguns, querido, não posso deixar a estante assim.

         Tantas e tantas páginas impressas e encadernadas e arrumadas na prateleira e espanadas periodicamente, e nenhuma ali no carro para fazer passar o tempo.

         O tempo. Para a mulher do político, o tempo é uma dimensão que não existe. Há compromissos e horários, é claro, mas não existe o tempo como dimensão. É como se vivesse para sempre, mesmo que esse para sempre seja uma piscina imensa cheia de milhares de dias e noites iguaizinhos. Se um dia inteiro é perdido, não existe para ela a aflição de quem perdeu uma porcentagem da vida. Nada aconteceu hoje e o dia já acabou? Não faz mal, tem uma porção de dias esperando na fila para que eu os viva.

         Mas o engarrafamento não é uma questão de tempo perdido. É uma questão de cigarras. Diz a lenda que morrem se não cantam. Dê a elas todo o tempo do mundo, que, se não cantam, não são cigarras. Pois dê à mulher do político uma vida eterna, que ela ainda vai se irritar com o engarrafamento, porque está parada. Não se importaria de passar quatro, cinco horas naquela mesma calçada, andando de um lado para o outro feito barata tonta. Só não suporta ficar parada. O movimento, qualquer que seja, balança o berço dos seus pensamentos, fazendo-os ressonar e babar no travesseiro.

         De repente, ela percebe que eles estão ali. Não precisa olhar para saber a imagem. Ninguém precisaria. Não precisa olhar nem mesmo para saber que estão ali. Algumas imagens são clichês demais para a vida real.

         Os japoneses e chineses não são, obviamente, todos iguais. Apenas parecem, para nós, porque estamos do lado de fora. Também por isso, para a mulher do político, os pobres têm todos a mesma cara. Nem precisa olhar. Uma mulher no meio de trapos, jornais e caixas. E o bebê, é claro, não poderia faltar o bebê. Estão ali, sim, com certeza.

         Ah, os pobres, esses seres imundos que estragam a paisagem. Pense assim, mulher do político, faça um esforço para pensar como as suas amigas. Você sabe porque isso está acontecendo, não é? Por causa do engarrafamento. Você parou. Se não tivesse parado, não saberia deles. Se passasse apressada na calçada, não os sentiria tão nítidos. Só sente porque está parada. Se fosse qualquer outra mulher de político, também perceberia, se estivesse parada, mas não teria essa sua vontade idiota. Essa vontade de olhar. Pense como elas, são apenas os pobres. Assim como é a chuva, como é o sol, como são as árvores. Apenas pobres, apenas sendo.

         Não vou olhar, não vou olhar, não vou olhar.  O engarrafamento ficando pior ainda — mas não é possível! E se sair do carro? Não adianta, é tarde. Se sair, o olho vai fugir para onde não deve. Concentrar-se na nuca do motorista também não adianta muito. As palavras "motorista" e "ar condicionado" aparecem nos seus pensamentos, recém-despertos, como soldadinhos guerreando com as palavras "trapos" e "lixo". Soldadinhos, não. Leões na arena, engolindo sob os aplausos as palavras mais fracas. E o pior é que você não é apenas a mulher rica, é a mulher do político. Como se não fosse apenas um romano aplaudindo no Coliseu, mas a dona do leão.

         Talvez eles nem estejam realmente na calçada, no meio do lixo. Pode ser uma impressão. Pode ser o estresse do trânsito, preciso marcar hora com a massagista. Ou tentar aquela acupuntura que mamãe falou.

         A mulher do político olhou para trás, para a rua, para eles, e se transformou numa estátua de sal.

 

 

 

       

 

SEU DESEJO É UMA ORDEM

 

 

        No início, era como se as visitas freqüentes insistissem em mantê-la viva, em não subtrai-la da nossa família. Mas logo cada um de nós percebeu a inutilidade dessa atitude, mas continuávamos indo porque não sabíamos se os outros tinham percebido também. Isso para os adultos, claro. Para mim era diferente. Eu tinha doze anos quando vovó entrou em coma. Ia visitá-la para brigar mentalmente com ela, reclamar da sua ausência, exigir que acordasse imediatamente. Quando ela começou a perder a aura humana, as minhas visitas perderam o sentido.  Nós sentávamos todos ao redor da cama e falávamos com ela como se conversássemos com uma planta que insistia em não florescer.

         Minha última visita foi no final do terceiro ano do coma, depois de meses sem vê-la. Levei as costumeiras flores que ela não podia ver, cheirar, nem pegar. Comecei a tecer a ladainha, falei dos meus estudos, de como está a mamãe, como está o papai... cada vez mais esses monólogos se pareciam com cartas censuradas pelo regime militar, sobrando nelas só o descartável e superficial. E na própria ladainha eu me censurava, mentia, escondia, aumentava. Disse a ela que eu ia à missa todos os domingos.

         Foi precisamente no meio dessa mentira que eu resolvi rezar. Já não tinha mais graça mentir, não agüentava mais dar notícias da família. Todo o meu egoísmo infantil voltou à tona. Decidi que nunca mais iria visitá-la enquanto ela estivesse em coma e, se Deus não quisesse destruir a família, então era bom que Ele a curasse e já.

         No meio da primeira Ave-Maria, percebi que orações pré-fabricadas são tão vazias e vegetativas quanto minha avó, então comecei orações personalizadas, com as minhas próprias palavras.

         Juntei as mãos simbolicamente e fixei o olhar no rosto dela. Pedi a Deus que mexesse uma pálpebra que fosse, por enquanto era um bom começo. Lembrei que Jesus trouxe Lázaro de volta à vida, e um coma perto disso é nada. Curou o cego, curou os leprosos... Eu desenterrei tudo que aprendi no catecismo. Foi a única vez em que não rezei da boca para fora, eu realmente conversei com Eles, pedi para Jesus, Maria, José e o Espírito Santo, os anjos da guarda, os meus ancestrais mortos. Tentei me lembrar do máximo possível de pessoas celestes. Apelei para promessas. Ofereci rezar um terço; conforme não ia funcionando, aumentei para um rosário inteiro. Vovó não se mexia. Ousei garantir que iria à missa todo domingo até morrer. Nem um milímetro diferente.

         Ela deixara de ser uma pessoa muito tempo atrás. Nem com um vegetal podia ser comparada, porque não mostrava o menor sopro de vida. A imagem mais próxima seria a de um faraó mumificado. Desisti de apelar para o céu. Deitei a cabeça no colo dela e fiquei lembrando de quando ela estava viva, mas viva de verdade. Tive uma quase saudade, porque era um desejo de voltar para lá, para aquela realidade onde isso tudo era possível, mas não um desejo de reproduzir tudo isso no presente, naquela coisa estranha que dormia. Era tudo mórbido e fúnebre demais agora.

         Levantei a cabeça e vovó estava de olhos abertos. Nunca vi nada tão horrível e grotesco como aqueles olhos que apareceram do nada no meio da cara dela, aquele par de bolas arregaladas que claramente não pertenciam mais àquele contexto. Fiquei congelada, como se tivesse visto uma múmia piscar para mim. Ela inspirou o ar como se fosse falar comigo, mas eu comecei a gritar feito louca e pulei para longe. Quase pensei em saltar da janela para não ter que passar pela cama. Corri até a porta, mas antes de chegar lá, vovó estendeu um braço na minha direção. Gritei mais alto do que sabia que era capaz.

         Segundo a enfermeira, não houve nenhum sinal de mudança na situação da minha avó, que morreu anos depois. Nunca mais fui visitá-la, com medo. Não dela. Não sei de quem. Pode ser medo de Deus, que precisa ser mais criterioso nos pedidos a que atende. Medo porque não cumpri nenhuma das promessas. Mas acho que é medo de mim mesma, porque, ao passar correndo pela cama, pensei seriamente em puxar todos aqueles fios.

 

 

 

(imagem ©nino mascardi)

 

 

 

 
 
 

Ana Carolina Almeida nasceu em 1982 e é estudante de Letras. Escreve o blogue Histórias do Grotesco e do Arabesco.