A ESPOSA DE
LOT
"Salva-te,
se queres conservar tua vida.
Não olhes para trás, e não te
detenhas
em parte alguma da planície; mas
foge
para
a montanha, senão perecerás".
Gênesis 19, versículo 17.
A mulher do político detesta engarrafamentos. Olha aflita a
calçada, medindo-a até onde pode enxergar, imaginando-se em passos
rápidos percorrendo essa curta distância que se torna enorme por causa
dos carros. Dos outros carros. Dos carros dos
outros.
Em situações irritantes, a mulher do político sempre pensa em
dinheiro. Ou, abrangendo mais, pensa em sucesso. Pensa no seu próprio
sucesso paradoxalmente como uma afirmação do fracasso, porque o
engarrafamento humilhante mostra a ela que roupa-jóia-sapato-bolsa não a
tornam sobre-humana, e antes de ser mulher de político, é apenas uma
mulher.
Pensa nas estantes da biblioteca, nos títulos e nomes
enfileirados. Todas as prateleiras completas, sem pequenos espaços
vazios, como as cadeiras da platéia na entrega do Oscar. Comprar mais um
sempre era um problema, porque implica em substituir outro. A menos que
se comprem vários juntos, ocupando uma prateleira vazia. Se faltarem
alguns centímetros para completar a prateleira com exatidão, compre mais
alguns, querido, não posso deixar a estante assim.
Tantas e tantas páginas impressas e encadernadas e arrumadas na
prateleira e espanadas periodicamente, e nenhuma ali no carro para fazer
passar o tempo.
O tempo. Para a mulher do político, o tempo é uma dimensão que
não existe. Há compromissos e horários, é claro, mas não existe o tempo
como dimensão. É como se vivesse para sempre, mesmo que esse para sempre
seja uma piscina imensa cheia de milhares de dias e noites iguaizinhos.
Se um dia inteiro é perdido, não existe para ela a aflição de quem
perdeu uma porcentagem da vida. Nada aconteceu hoje e o dia já acabou?
Não faz mal, tem uma porção de dias esperando na fila para que eu os
viva.
Mas o engarrafamento não é uma questão de tempo perdido. É uma
questão de cigarras. Diz a lenda que morrem se não cantam. Dê a elas
todo o tempo do mundo, que, se não cantam, não são cigarras. Pois dê à
mulher do político uma vida eterna, que ela ainda vai se irritar com o
engarrafamento, porque está parada. Não se importaria de passar quatro,
cinco horas naquela mesma calçada, andando de um lado para o outro feito
barata tonta. Só não suporta ficar parada. O movimento, qualquer que
seja, balança o berço dos seus pensamentos, fazendo-os ressonar e babar
no travesseiro.
De repente, ela percebe que eles estão ali. Não precisa olhar
para saber a imagem. Ninguém precisaria. Não precisa olhar nem mesmo
para saber que estão ali. Algumas imagens são clichês demais para a vida
real.
Os japoneses e chineses não são, obviamente, todos iguais. Apenas
parecem, para nós, porque estamos do lado de fora. Também por isso, para
a mulher do político, os pobres têm todos a mesma cara. Nem precisa
olhar. Uma mulher no meio de trapos, jornais e caixas. E o bebê, é
claro, não poderia faltar o bebê. Estão ali, sim, com certeza.
Ah, os pobres, esses seres imundos que estragam a paisagem. Pense
assim, mulher do político, faça um esforço para pensar como as suas
amigas. Você sabe porque isso está acontecendo, não é? Por causa do
engarrafamento. Você parou.
Se
não tivesse parado, não saberia deles. Se passasse apressada na calçada,
não os sentiria tão nítidos. Só sente porque está parada. Se fosse
qualquer outra mulher de político, também perceberia, se estivesse
parada, mas não teria essa sua vontade idiota. Essa vontade de olhar.
Pense como elas, são apenas os pobres. Assim como é a chuva, como é o
sol, como são as árvores. Apenas pobres, apenas sendo.
Não vou olhar, não vou olhar, não vou olhar. O engarrafamento ficando pior
ainda — mas não é possível! E se sair do carro? Não adianta, é
tarde. Se sair, o olho vai fugir para onde não deve. Concentrar-se na
nuca do motorista também não adianta muito. As palavras "motorista" e
"ar condicionado" aparecem nos seus pensamentos, recém-despertos, como
soldadinhos guerreando com as palavras "trapos" e "lixo". Soldadinhos,
não. Leões na arena, engolindo sob os aplausos as palavras mais fracas.
E o pior é que você não é apenas a mulher rica, é a mulher do político.
Como se não fosse apenas um romano aplaudindo no Coliseu, mas a dona do
leão.
Talvez eles nem estejam realmente na calçada, no meio do lixo.
Pode ser uma impressão. Pode ser o estresse do trânsito, preciso marcar
hora com a massagista. Ou tentar aquela acupuntura que mamãe falou.
A mulher do
político olhou para trás, para a rua, para eles, e se transformou numa
estátua de
sal.