ambulância

 

Dá pra melhorar.

 

         O nariz?

 

         O nariz e o queixo, afino a ponta do rosto, fica pronta em dois dias.

 

         Quando o senhor me interna?

        

         A senhora já está internada.

 

         Doutor Gilberto, só vim fazer orçamento.

 

         Aqui é assim o orçamento. Zilda, prepare a sala e chame o anestesista, em quarenta minutos iniciarei os trabalhos. A senhora não se lembra dos retratistas que primeiro fotografam e depois passam o preço?

 

         Doutor Gilberto, meu marido está na ante-sala, ele vai explicar, nem convênio médico temos. Vim orçar porque todo mundo está procurando o senhor.

 

         Zilda, encaminhe o marido dela para a sala ao lado, notei que ele tem uma testa estreita, quero diminuir a bochecha para alargar em cima.

 

         Mas, doutor, ainda estou resolvendo; e outra, deixei um curau fora da geladeira.

 

         A senhora quer ou não quer? Não se preocupe com o pagamento que até os miseráveis estão operando. Zilda, leve esta senhora e dê um sedativo à ela.

 

         Nestor? Nestor, me responda.

 

         Senhora, queira me acompanhar, seu marido vai dormir um pouquinho.

 

         Doutor Gilberto, o casal está pronto. Falta só um rapaz pra fechar o bairro.

 

         Sucesso.

 

Olha, doutor, as coisas não estão boas, as pessoas não se reconhecem mais nas ruas. Se comenta na igreja que o doutor está roubando o rosto do povo.

 

         No início é esse alvoroço, depois adoram. O padre está resistente, mas já quer orçar a papada. A encomenda é clara, o prefeito quer a cidade homogênea, uma Suíça.

 

         Doutor, o que faremos com os capilares cortados? Já são sacos e sacos.

         Guarde-os, botamos nos porcos, põe uma fita, criança adora ursinho.

 

 

trama apertada

 

Pêlo longo, olhos vermelhos e a fêmea primordial, eu e ela na mesma tapeçaria. Quem pode com isso? Talvez o marido da Tamara de Lempicka. Mas ele morreu, a Tamara morreu, o talco fúnebre jogado no México, dentro do vulcão. Depois dela, ninguém me olhou tanto. Quando vinha sozinha chorava porque eu não existia. Secava a lágrima e ajeitava a casquete. Queria ser eu, um unicórnio de crina sedosa. 

 

         Um dia apareceu um estudante vestindo bege. Ficou sentado na minha frente sem me dirigir os olhos. Anotava num caderno qualquer coisa que começava com "chapéu". É isso. Prefere a cabeça coberta, escondendo a hipófise e o hipotálamo. Grande coisa, perfuro qualquer fronte.

 

         Pudesse enrolava o cadáver de Tamara, eu, esse tapete pesado. Mas a quiseram cremada. Toparia arder com ela, ir primeiro sendo a casca, queria contar que o marido cochichou serenata no ouvido de outra aqui no museu. Diria tudo enquanto acendiam a pira. Que saíram sorridentes, que a moça esqueceu o cachecol em cima do banco.

 

         Tamara quando vinha sem ele, vinha só. Não me traía nem com o amante, que ela deixava onde se deve, na alcova sem quadros nem outra distração. Cortina e assoalho é do que ela gosta, o que não quebra não pede acolchoado.

 

Deitada no meu felpo ia amar com cócega, seguiria o corpo dela e do homem que escolhesse pela sala, iríamos os três pela madeira encerada até que uma parede nos escorasse. Depois ela montava o cavalete e deixava as tintas pingarem.

 

Estendam-me onde o homem pisa que saio do tear do poeta, me tire da parede, do museu, tire essa gente me anotando. No piso caem gotas de vinho da terceira taça. Cinzas da cigarrilha, polvilho das senhoras, fios de cabelo. Cansei da cor, quero sardas tintas, que caiam os restos vermelhos, sejam eles quaisquer. Da uva ou da veia. Estivesse eu no chão, ela levantava minha ponta e com o pé empurrava o ódio por baixo.

 

Lá vem a funcionária, apagar a última lâmpada. Sorrio sempre, procuro disfarçar. Sou o unicórnio do tapete medieval. Nas costas, entre meu sizal e a parede há uma carta, Tamara quem deixou. Borrifou água de laranja e no sono do guarda botou o envelope atrás de mim. A carta foi escorregando, agora está sob as patas, onde é lugar de amor assim.

 

 

pináculo da tentação

 

         Chorei feito mulher em despedida. Era despedida, estava claro, aquilo não ia dar mais em nada.

Queria partir de um amor e pra isso teria que partir da cidade. Não conhecia ninguém. Sem família, cresci num orfanato, lá pros lados de Alagoas.

Quando cheguei aqui, trazida pela razão de minha vida, primeira coisa que me capturou foram essas protuberâncias sem pudor.

Aquele homem de quem precisava me despedir era como essa cidade, essa Rio de Janeiro quente e úmida; parece mansa, mas te faz perder as horas, os limites da decência.

Sem o amor do homem, sem destino, sem nem bagagem de viajante, fui, essa marmanja que você está vendo, bater na porta de um orfanato.

Ver se me queriam para ajudar nas coisas em troca de moradia.

Tinha experiência nos castigos, ia saber repetir exato por exato o que fizeram comigo. Fizeram bem.

— Com essa idade, minha senhora, só te resta um convento.

Foi quando me converti em mulher de Jesus.

Na cozinha do convento, lambuzada com creme de ovos, ouvi um zunzunzun vindo da despensa. Era a Madre Superiora revelando um segredo à outra irmã.

Estavam à procura de um pedestal naquela cidade para colocarem uma enorme estátua do Senhor. Diziam que eram ordens do Cardeal Arcebispo.

Não sabiam qual morro escolher para receber o Nazareno, se o Corcovado, o Pão de Açúcar ou o Morro de Santo Antônio.

Foi nisso que me veio a revelação, com as gemas açucaradas pela borda da boca, senti um troço nas pernas.

Disse à Madre que poderiam colocar-me no lugar do Senhor. Poupar a imagem dele e colocar a de uma mulher como eu, que, por não dar conta de um amor sem retorno, se doou para um amor com retorno, mas sem carne.

Ela sugeriu-me vinte ave-marias e quarenta pai-nossos.

Então escrevi uma carta para a Ordem Arquidiocesana sugerindo meu sacrifício, ficaria ali, sol nascendo sol se pondo até o fim de meus dias.

         Uma crucificação sem madeira nem pregos.

         Disse ainda que, se fosse inconveniente eu ali no lugar do Nazareno, me contentaria morando numa caverna construída no interior da obra de pedra.

Já tinha ouvido falar nos cristãos eremitas.

Queria eu agora isolar-me de vez, abrigada no coração do Cristo Redentor. Naquela maciça aparência, meu coração bateria ali dentro, uma mulher no oco de Jesus. Bem no peito dele.

Pintaria de vermelho seu interior, onde eu seria sangue do seu sangue, poeira de sua poeira, monumento de seu monumento, iluminada pelos holofotes de Getúlio Vargas.

 

 

 

("Pináculo da Tentação" faz parte do livro Minto enquanto posso)

 

 

 

(imagens ©tamara de lempicka / topo ©dibuix e petit)

 

 

 
 
Andréa del Fuego é autora de Minto enquanto posso (O Nome da Rosa). Está nas antologias Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial), Uma Antologia Bêbada (Ciência do Acidente) e + 30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira (Record). Mais em seu blogue.