amassava
as empadas com a mão. massa podre. quebradiça
e engasgante. amassava com o indicador e, às vezes, com o polegar.
compunha uma massa amorfa, ora com gosto de queijo, ora de palmito
velho. mas não comia. [metáfora da vida que levava]
embutia vontades nos dedos. a cara de um, o peito de outro, o sorriso
do primeiro, os cabelos do décimo terceiro, a silhueta do último
[quisera fosse o primeiro] não-vontades na palma da mão
pequena. coca-cola gelada e o bolo de empada descia. limpava. e a
alma continuava imunda. era primitiva. só sabia comer com as
mãos, aos nacos, devagar, esquartejando. caçava a empada,
matava, picava, colocava pequenos bocados na boca de carnes vermelhas,
engolia e bebia. enquanto isso, criticava em silêncio a sandália
de uma, a blusa da outra, a cor dos cabelos de uma terceira. e não
estava ali. sozinha que nem número primo. sentia o ar frio.
não tinha consciência da respiração. não
sentia dor. os olhos ardiam um pouco. não ouvia. comia a empada,
o que era o resumo do instante. às vezes o instante é
precário e o resumo é ridículo. é assim
que tem sido.
Lá
fora um vento frio e um tiroteio. dum dum dum dum. Quatro
pipocos no muro. As cápsulas ficaram no chão. Alguém
gritou um palavrão e o carro cantou pneus. Pirelli. Uma risca
preta no asfalto velho do ex-bairro de operários.
De dentro da saleta de três por três, eu via uma moldura
marrom de janela, à moda das casas de mau gosto. Uma montanha
cheia de casas de mau gosto. A amarela era a que mais me chamava a
atenção. E quando o sol batia nela, ela era inteira
luz. E não quero, de forma alguma, parecer adélia prado.
Mas aquela casa me desnorteava. Minha janela virada para o norte e
o fio do telefone enroscado no raque marfim. A voz dele cansada, dizendo
que o Rio é lindo. E uma lágrima quase estalactite me
sulcava que nem navalha. Bisturi de água e sal. Nascente no
olho direito. Delta no útero esvaziado. A voz de gripe despistava
o choro morno. Sonsa. Why you're not here... e ele dizia isso como
se o Rio fosse ficar mais completo com minha presença. E como
se a vida dele fosse ficar mais confortável. E dizia, em português
europeu: perfecta. E o tiroteio rolava na rua. E eu dizia que Belo
Horizonte é mais tranqüila para morar. E ele oscilava.
Mas não é possível que aquela manhã sonolenta
de sábado tenha sido em vão. E nem a fogueira. E muito
menos o ajuste da temperatura da água. E ainda... o solo de
guitarra às oito e dois.