prendam os suspeitos de sempre


os olhos azuis de adele h. brilham na noite negra,
ela sempre aguardará por seu amado com lúcida e serena loucura.
— o amor é a mais negra das pestes, mas ninguém morre de amor, e quase sempre passa.

susan alexander kane grita para que forrest gump cale a boca.
norman bates observa deliciado a filha-neta de noah cross.
kowalski acelera seu dodge challenger em direção à luz perdida.
as luvas de gilda ainda evocam seu sexo doce e receptivo.
travis bickle sorri ao sentir o cheiro de napalm no ar.
blanche dubois sempre dependerá da bondade de estranhos.
michael corleone assobia melancólico a canção de nino rota.
norma desmond observa a tudo com olhos boquiabertos.
numa estrada empoeirada john huston orienta o seu elenco:
montgomery clift e clark gable entreolham-se cansados sem nada dizer,
mais uma vez marilyn esqueceu seu texto e ela cheira a mofo.

humphrey bogart morde a nuca suculenta de lauren bacall.
john wayne e steve mcqueen sorriem, sem pressentir o câncer ainda discreto.
pixote dorme, cego e inebriado, no colo de marília pêra.
toshiro mifune faísca estrelas ao manejar sua espada de samurai.
ginger e fred giram pelo salão disfarçando suas aversões mútuas.
bernard hermann assobia para hitchcock a trilha de vertigo.
ao fundo, james stewart personifica com perfeição um velho necrófilo,
devorando com o rabo do olho o decote de kim novak.
na sala do olvido, william holden agoniza, bêbado e solitário.

— nós sempre teremos paris.
aqui em texasville os mortos morrem de verdade, e precisam ser enterrados.
quanto a mim, sou apenas um figurante recortado um céu de celulóide,
que estraga todas as cenas sorrindo em direção à câmera.
(it's a wonderful, a wonderful life.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

tempo 

...........aos meus avós

Ponteiros são nada;
tempo não se ata a números.
Tempo é bicho sem Deus,
livre, deliciosamente livre.
Tudo é a sua morada.

Tempo cura tudo,
tempo não tem cura.
Sem como nem porquê
tempo vai passando.
Tempo, até quando?

Tempo é o verde do broto,
tempo é o verde do mofo.
Tempo é aprendizado e esquecimento.
Tempo é menarca e menopausa.
Tempo é menos.

Tempo é o sangue cicatrizado na pele.
Tempo é a dor de um parto.
Tempo é um filme cujos atores morreram.
Tempo é computador ultrapassado.
Tempo é a chuva e o rosto em silêncio.

Tempo é carro preso no engarrafamento.
Tempo é o pó na fotografia dos pais.
Tempo é a fúria de dois corpos na cama.
Tempo é o som das folhas libertando-se do galho.
Tempo, serpente afirmadora da vida.

Tempo passa passa tempo,
passa rápido passa lento.
Sem trilhos, corre como trem.
Sem asas, voa feito avião.
Sem pena, vai.

Tempo é aceitação.

acalento

Minha mãe acordando às cinco da manhã
Preparando o café para a família
Descascando as frutas
Estendendo as roupas no varal
Lavando os pratos com a água fria
Em dia de inverno
O almoço solitário
A faxina, o pó
Sempre renovado nos móveis
Carregando as pesadas sacolas do supermercado
Depois renunciando à novela
Para preparar o jantar
Mais uma de tantas
Pequenas grandes renúncias
Acordada até tarde, o coração apertado
Até que todos estejam
Seguros em casa.

Meu pai pegando o ônibus lotado das seis
Rugas no rosto, pasta na mão
Outro dia de muito serviço
E pouco reconhecimento
Mais uma vez
Recebendo o salário com atraso
Como em todo final de mês
Depois do trabalho
Indo ao curso preparatório
De mais um concurso
Chegando às onze e meia
Com fome, com sono
Mas encontrando o prato
Ainda quente na mesa.

breves 

Meditações zen
ao som
de um walkman


///

Noite azul.
Deslindo teu corpo
com os olhos das mãos.


///

Inseto esmagado
sob as páginas do livro:
lembrança de Tolstói.

///

Tarde de terror:
preso, ouvindo a musiquinha
do elevador.

///

Consciente.
Mesmo assim, arranco
o cabelo branco.


tartamudeio


Penso em ruivas xipófagas, em guitarras queimando como incensos, em Humphrey Bogart mascando chicletes, no céu iridescente e nos desejos que eu e você sussurávamos um para o outro quando víamos estrelas cadentes relampagueando a noite de um outubro perdido, quando éramos dois adolescentes cercados de espinhas e dúvidas existenciais por todos os lados, receosos do mundo, mas repletos de impulsos juvenis.

Penso em Thelonius Monk morando em uma casa de Lego, em metáforas despojadas e versos sobre abóboras flutuantes, em Cheech e Chong cantando sem sucesso as garotas de um videokê, e que depois da torrente de nãos recebidos terminavam a noite masturbando-se um ao outro. Penso nas gargalhadas gostosas que demos imaginando a cena, na sua risada crepitante que alimentava o fogo das estrelas, em você sentada de cócoras acendendo um cigarro atrás do outro, enquanto eu via a fumaça subir ao céu desenhando efígies de presidentes cassados e trompetistas mortos.

Penso em avestruzes enterrando suas cabeças no deserto australiano, no destino dos siriris depois que perdem as asas, na fúria dos meteoros e no medo de viver. Penso em tonéis de azeite, nos afluentes do Amazonas, na catadupa de idéias desconexas que vêm como uma enxurrada, rompendo os diques da clareza num mar de interrogações. Penso no uniforme do Coringa, na maleta xadrez do Gato Félix, no Linus esperando a noite inteira pela Grande Abóbora como se fosse Godot, nos robôs de Isaac Babel, nos filmes inacabados de Orson Welles. Penso em filmes iugoslavos com legendas em sânscrito, e em nós dois socando pregos.

Penso na raiz cúbica de 270773, no significado de "klaatu barada niktu", na escalação do Guarani em 1978, na cabeça de Robespierre depois da decapitação, no brilho dos olhos de James Joyce ao encontrar a calcinha suja de Nora. Penso em amoras amassadas, em vinicultores chupando uvas e deixando-as secar ao sol, para vendê-las depois como passas. Penso no último mergulho de Jeff Buckley, em Thelma e Louise dando-se as mãos antes de voar para o nada, na cadela Laika latindo para a surdez das estrelas.

Penso no medo que tenho de dançarinos irlandeses e contorcionistas de circo, em quadrinhos velhos de Carl Barks, em melodias tonitruantes, no silêncio de John Cage. Penso em você pedindo provas de amor, na risada que dei ao ler que um homem foi flagrado trepando com um frango congelado, em minhas tergiversações dispersas, em seus olhos dardejando indiferença, em Ian Curtis pendurado pela corda que o enforcou, na etiqueta presa ao dedão de Marilyn Monroe no necrotério de Los Angeles, em carpideiras sorridentes e nas piadas bestas que sempre extraíam um sorriso do seu rosto, mas que já não tinham o mesmo efeito.

Penso em Pasárgada, em Hiroshima, em Yoknapatawpha, em Cracatoa, em Atlântida, em Patópolis, em São Paulo. Penso no encontro de Kublai Khan com Marco Pólo. Penso em olhos de ímã e versos que rimam. Recordo você: tudo penso, e nada falo.

 

Pequeno Tratado Sobre a Mortalidade do Amor

Todos os dias morre um amor. Quase nunca percebemos, mas todos os dias morre um amor. Às vezes de forma lenta e gradativa, quase indolor, após anos e anos de rotina. Às vezes melodramaticamente, como nas piores novelas mexicanas, com direito a bate-bocas vexaminosos, capazes de acordar o mais surdo dos vizinhos. Morre em uma cama de motel ou em frente à televisão de domingo. Morre sem beijo antes de dormir, sem mãos dadas, sem olhares compreensivos, com gosto de lágrima nos lábios. Morre depois de telefonemas cada vez mais espaçados, cartas cada vez mais concisas, beijos que esfriam aos poucos. Morre da mais completa e letal inanição.

Todos os dias morre um amor. Às vezes com uma explosão, quase sempre com um suspiro. Todos os dias morre um amor, embora nós, românticos mais na teoria que na prática, relutemos em admitir. Porque nada é mais dolorido do que a constatação de um fracasso. De saber que, mais uma vez, um amor morreu. Porque, por mais que não queiramos aprender, a vida sempre nos ensina alguma coisa. E esta é a lição: amores morrem.

Todos os dias um amor é assassinado. Com a adaga do tédio, a cicuta da indiferença, a forca do escárnio, a metralhadora da traição. A sacola de presentes devolvidos, os ponteiros tiquetaqueando no relógio, o silêncio insuportável depois de uma discussão: todo crime deixa evidências.

Todos nós fomos assassinos um dia. Há aqueles que, como o Lee Harvey Oswald, se refugiam em salas de cinema vazias. Ou preferem se esconder debaixo da cama, ao lado do bicho papão. Outros confessam sua culpa em altos brados, e fazem de pinico os ouvidos de infelizes garçons. Há aqueles que negam, veementemente, participação no crime, e buscam por novas vítimas em salas de chat ou pistas de danceteria, sem dor ou remorso. Os mais periculosos aproveitam sua experiência de criminosos para escrever livros de auto-ajuda, com nomes paradoxais como "O Amor Inteligente", ou romances açucarados de banca de jornal, do tipo "A Paixão Tem Olhos Azuis", difundindo ao mundo ilusões fatais aos corações sem cicatrizes.

Existem os amores que clamam por um tiro de misericórdia: corcéis feridos.

Existem os amores-zumbis, aqueles que se recusam a admitir que morreram. São capazes de perdurar anos, mortos-vivos sobre a Terra teimando em resistir à base de camas separadas, beijos burocráticos, sexo sem tesão. Estes não querem ser sacrificados, e, à semelhança dos zumbis hollywoodianos, também se alimentam de cérebros humanos, e definharão até se tornarem laranjas chupadas.

Existem os amores-vegetais, aqueles que vivem em permanente estado de letargia, comuns principalmente entre os amantes platônicos que recordarão até o fim de seus dias o sorriso daquela ruivinha da 4a. série, ou entre fãs que até hoje suspiram em frente a um pôster do Elvis Presley (e, pior, da fase havaiana). Mas titubeio em dizer que isso possa ser classificado como amor (Bah, isso não é amor. Amor vivido só do pescoço pra cima não é amor).

Existem, por fim, os amores-fênix. Aqueles que, apesar da luta diária pela sobrevivência, das contas a pagar, da paixão que escasseia com o decorrer dos anos, da mesa-redonda no final de domingo, das calcinhas penduradas no chuveiro e das brigas que não levam a nada, ressuscitam das cinzas a cada fim de dia, e perduram: teimosos, e belos, e cegos, e intensos. Mas estes são raríssimos, e há quem duvide de sua existência. Alguns os chamam de amores-unicórnio, porque são de uma beleza tão pura e rara que jamais poderiam ter existido, a não ser como lendas. Mas não quero acreditar nisso.

Um dia vou colocar um anúncio, bem espalhafatoso, no jornal.

PROCURA-SE: AMOR-FÊNIX
(ofereço generosa recompensa)

 

 

ALEXANDRE INAGAKI já foi analista de câmbio, gerente de locadora de vídeo, escritor de mangás e garoto de programa, tendo anunciado seu corpo com a alcunha de "Samurai do Amor". Hoje, está finalmente recuperado para o convívio com a sociedade, após ter freqüentado reuniões dos Mentirosos Anônimos. É o (ir)responsável pelo blogue Pensar Enlouquece, Pense Nisto, e ainda ousa despejar suas letrinhas em mais um monte de páginas encontráveis nas melhores Googles do ramo, dentre elas o Burburinho, o Virunduns. Colabora com a revista Flashback e tem uma página no Multiply. Enquanto não concretiza seus planos de ser mais desejado do que o Brad Pitt, organiza todos os seus sonhos em fila mais ou menos indiana, tangendo-os vida afora feito o Flautista de Hamelin. Em tempo: é leonino, fiel, torcedor do Guarani e cinéfilo, mas não acreditem em tudo que lhes diz.


jogo

Se fosse alpinista seria filósofo
Se fosse filósofo seria caólogo
Se fosse logo seria logro
Se fosse tristeza seria segunda
Se fosse paixão seria coca-cola
Se fosse síntese seria dispersão
Se fosse discurso seria etcétera
Se fosse arabesco seria trocadilho
Se fosse Scorcese seria Ozu
Se fosse ácido seria delicioso
Se fosse átomo seria quasar
Se fosse Maryyah seria Maria
Se fosse talvez seria postulado
Se fosse pós-moderno seria prafrentex
Se fosse pebolim seria xadrez
Se fosse lobby seria aprovado
Se fosse casado seria fiel
Se fosse romantismo seria à beira do abismo
Se fosse esperança seria Papai Noel
Se fosse fel seria fel
Se fosse urna grega seria faca cega
Se fosse lâmina seria bisturi
Se fosse Simenon seria Saussure
Se fosse sibilante seria catchup
Se fosse amendoim seria lactiluz
Se fosse a seria u
Se fosse dodecafônico seria forró
Se fosse ignorante seria irônico
Se fosse irônico seria inteligente
Se fosse pulquérrimo seria a sua mãe
Se fosse ético seria dietético
Se fosse hermético seria modorrento
Se fosse definitivo seria falso
Se fosse fácil seria por um triz
Se fosse sangrento seria normal
Se fosse tropical seria cartão-postal
Se fosse ptyx seria pitanga
Se fosse alicerce seria cupim
Se fosse nação seria dividida
Se fosse metáfora seria a vida
Se fosse amar-te seria a morte
Se fosse câncer seria sêmen
Se fosse palavra seria onomatopéia
Se fosse personagem seria Holden Caulfield
Se fosse narrador seria Morelli
Se fosse gago seria fanho
Se fosse careca seria capilarmente diferenciado
Se fosse de comer seria duro feito pedra
Se fosse mito seria impotente
Se fosse consenso seria aborto
Se fosse jogo seria de montar
Se fosse escombros seria redenção
Se fosse ação seria bem melhor