Lilás
Ele está olhando pra cá. Disse a minha
amiga. Acabávamos de chegar no bar e de pedir uma mesa perto da janela,
pois fazia um muito calor. Uma cerveja e uma porção de bolinhos de
aipim, a metade deles recheados com carne seca e a outra com catupiri.
Odeio catupiri. Fingíamos conversar, enquanto analisávamos a freqüência
do lugar.
Não foi difícil encontrar um alvo. Ele estava
ali, bem na nossa frente, com toda a sua magnitude. Minha amiga percebeu
o meu interesse e concordou.
— Ele tem olhos claros e nem
precisava.
Ficamos uma eternidade esperando o momento
certo. Eu sorria, ele retribuía. Ele falava com o garçom, eu pedia mais
bolinhos. Até que ele veio.
— Posso sentar com vocês?
Feito! O nome dele é Cristiano.
Advogado. Fomos para minha casa. O melhor ainda estava por vir. Quando
acordamos, eu não conseguia mais imaginar a minha vida sem o perfeito
derivado de Cristo.
— Você não tem medo de trazer
desconhecidos pra tua vida?
Meu coração tremeu. Ele estava me
chamando de leviana. Existe algum zero oitocentos para esse tipo de
emergência? Eu precisava reverter o
jogo.
— Eu sinto quando posso
fazer isso...
— Como assim, sente?
— É um assunto delicado, mas pra você eu
posso falar...
Fico em silêncio para criar um certo
suspense.
— Eu vejo a aura das pessoas.
— Tá brincando?
— Não. É um dom que pouca gente
tem.
— E que cor é a minha?
Olho por cima de sua cabeça por alguns
instantes.
— Lilás.
Assim começou o meu relacionamento com
Cristiano, que resultou em uma casa, dois filhos e um lindo jardim com
as cores do arco-íris. Depois daquela noite, virei o seu talismã.
Ficamos, durante horas, conversando sobre os meus poderes divinos e
sobre como poderíamos utilizá-los para ganhar algum dinheiro. Eu
expliquei a ele que não deveríamos utilizar um dom para explorar as
pessoas e sim para ampará-las. Era uma questão moral. Tivemos a nossa
primeira discussão. Ele contra-argumentava, dizendo que precisávamos
sobreviver.
Ele falava tudo no plural. Nós isso, nós
aquilo. E eu flutuava sobre os móveis da casa. Chegamos ao seguinte
acordo: eu ajudaria em seus negócios, como uma espécie de guru,
indicando quem era culpado ou inocente.
Para isso, resolvi
estudar direito, pois poderia orientá-lo com maior conhecimento de
causa. Criamos alguns códigos para identificar os clientes e começamos a
trabalhar.
Vermelho representava fogo e vitalidade, laranja
significava ambição e pensamento lateral. A aura turquesa queria dizer
que a pessoa tinha muita imaginação e poderia estar inventando algum
dado importante. Pessoas com as auras azul, verde ou lilás eram dignas
de total confiança. Coincidência ou não, passei a decifrar a alma humana
como ninguém.
Já estávamos com um certo nome
no mercado, quando o Senador veio nos procurar. Acusado de ter
assassinado a esposa, jurava inocência. Sua aura me dizia o
contrário.
Cristiano queria pegar o caso, pois
renderia uma boa publicidade para o escritório. Ele sonhava com carro
importado, lancha e compras em Miami. Eu fui contra, mas voto
vencido.
O depoimento do cliente era duvidoso e
com muitos furos. Comecei a investigar. A casa do Senador era parecida
com a minha, embora fosse muito maior. Cores pastéis nas paredes,
toalhas bordadas à mão, plantas e uma luz muito acolhedora. Além de
adorar a casa, simpatizei, de cara, com os filhos da falecida, duas
lindas crianças, da idade das minhas.
Puxei um assunto com Consuelo, a
empregada do casal. Elogiei a organização da casa, pedi algumas receitas
e fiz perguntas. Ela não queria se comprometer, mas adorava o
patrão.
— Até que ele agüentou muito. Ela não largava o
outro... Não tem homem que suporte uma
traição...
Após essa conversa, pedi a Cristiano que
marcasse um encontro meu, a sós, com o Senador. Eu precisava deixar tudo
bem claro, antes de continuarmos no caso.
—Não vou questionar os seus motivos.
Mas, sei que foi você e vou defendê-lo mesmo assim.
Ele ficou surpreso com a minha
sinceridade.
— Como você pode ter tanta
certeza?
— É um assunto delicado... Mas pra você
eu posso falar... Eu vejo a aura das pessoas.
— E que cor é a minha?