capa da edição nº 17 da série Circuito Atelier da Editora C/Arte, 2002
 
 
 
 
 
 
 

 

 

Há mais de 40 anos, as cores de Rodelnégio — espiritualista, autodidata, "observador nato", que iniciou a carreira artística aos 51 anos de idade — descrevem minuciosamente o cotidiano, hábitos, costumes, festas, tradições e percorrem o inconsciente coletivo brasileiro. Sua presença à frente do Parque de Diversões Capixaba torna sublime um olhar realista, privilegiado e marcante, que visitou com freqüência várias cidades dos estados de Minas Gerais, Bahia, Goiás, Rio de Janeiro, Espírito Santo e muitos outros. Fez da pintura sua alma e celebração de luz. Realiza uma existência migrante. Uma luz que projeta a cultura nacional no firmamento e resplandece os vestígios numa percepção viva, perspicaz, equilibrada e rica em paisagens. A sutileza dos gestos, pinceladas, matizes intensas, ritmo, forma, sentimentos e os "causos" contados em inúmeras viagens revigoram as telas e faz do artista um dos principais expoentes da arte popular em Minas Gerais.

 

As imagens dos seus quadros, biografia e depoimento foram organizados por Janaina Melo na edição nº 17 da série Circuito Atelier da Editora C/Arte (Belo Horizonte, MG, 2002), e são retratos da história, indicadores de travessias. Sintetizam passagens e lembranças da infância, juventude, a saída do Espírito Santo, o encontro e o casamento com uma mineira de Ituiutaba. Em tudo que pinta há um traço singular, a identificação de uma simplicidade e devoção à alma do povo. Nele, o tempo caminha com passos de milagres. Realiza um eterno montar/desmontar lúdico junto ao carrossel do parque de diversões cheio de graças pelos quatro cantos do interior do país: a celebração do homem com a terra e seus personagens festivos, folclóricos, religiosos, trabalhadores e plenos de esperanças.

 

 

Parque Teatro Capixaba, OST Galvanizado, 134x75 cm, 1999, Coleção do Artista

Foto: Adriana Moura

 

 

Rodelnégio Gonçalves Netto nasceu no dia 29 de julho de 1915 em Alegre, no estado do Espírito Santo. Somente em 1953, após as muitas viagens com o parque de diversões, já casado com uma mineira e filhos, decide fixar residência em Belo Horizonte, MG. No início da década de 1960, na capital de Minas Gerais, o futuro pintor conhece o artista plástico Herculano Campos — um nome importante na sua carreira — e encomenda um retrato da esposa. Freqüenta o ateliê do artista, que o desperta a pintar, e conhece outros artistas plásticos — vários, ex-alunos de Guignard —, dentre eles, Álvaro Apocalypse, Chanina e Wilde Lacerda. Foi o início da carreira.

 

Em 1963, estimulado por Herculano Campos, participa pela primeira vez do XIII Salão Municipal de Belas Artes de Belo Horizonte com dois trabalhos — Congada e Ouro Preto. De maneira autodidata, pois não tinha condições de freqüentar o ateliê de Herculano Campos, devido às constantes viagens do parque de diversões, vai tocando o barco e pintando pelo Brasil afora. No final da década de 1960, decide abrir no centro da capital mineira uma barraquinha de tiro-ao-alvo, e lá expõe os seus trabalhos. A jornalista e crítica de arte Maristella Tristão (já falecida e homenageada com o nome de umas das salas de artes plásticas no Palácio das Artes em Belo Horizonte, MG) fica sabendo da notícia e visita a barraquinha, interessa-se pelos quadros e convida Rodelnégio para tomar parte de uma mostra de inauguração da Galeria Capela, em São Paulo, SP. A partir do encontro com Maristella Tristão e a exposição em São Paulo, recebe um novo incentivo na carreira e começa a expor em várias cidades de Minas Gerais e Brasil.

 

Em 1967, recebe o primeiro prêmio no I Salão Nacional do Pequeno Quadro, em Belo Horizonte, MG. Em 1970, participa com vários artistas e artesãos da inauguração da Feira de Arte e Artesanato da Praça da Liberdade, também na capital mineira. No decorrer da década de 1970 realiza várias exposições importantes, dentre elas, organizadas por Maristella Tristão, "O Processo Evolutivo da Arte em Minas — De 1900 a 1970", para a inauguração do Palácio das Artes, Belo Horizonte, MG.

 

 

Congado, OST, 50x70 cm, 1970, Acervo Museu Mineiro, BH, MG

Foto: Leonardo Lara

 

 

Em 1971, participa da mostra "Artistes Brésiliens", na Cite Internacionale de l'Université de Paris, França. Em 1977, é premiado no IX Salão Nacional de Arte, realizado no Museu de Arte da Pampulha, Belo Horizonte, MG. Convém ressaltar também que, no final da década de 1970, outras pessoas foram importantes na redescoberta, divulgação e impulsão da arte popular mineira, como a falecida crítica de arte Maria do Carmo Arantes, o jornalista, historiador e professor Sérgio Maldonado Vianna e a museóloga Conceição Piló.

 

Na década de 1980, Rodelnégio participa de inúmeras exposições no Brasil e exterior. Na ocasião, é considerado pela crítica Celma Alvim o melhor artista popular do estado de Minas Gerais. Em 1988, é agraciado com o Diploma da Ordem dos Pioneiros, oferecido pela cidade de Belo Horizonte àqueles que contribuíram para o seu desenvolvimento. Em 1994, é convidado especial da Bienal Brasileira de Arte Naïfs, promovido pelo Sesc Piracicaba, SP. Em 1996, recebe o Prêmio de Aquisição na Bienal Naïfs do Brasil, realizada no mesmo local em Piracicaba, SP.

 

Durante as comemorações dos 106o aniversário de Alegre, ES (sua cidade natal), no ano de 1998, é agraciado com o Diploma e a Medalha de Grão-Mestre da Ordem — Mérito Cultural, oferecido pela cidade em reconhecimento à sua relevante contribuição à cultura. Suas pinturas integram inúmeras coleções particulares do Brasil e do exterior, fundações e museus, tais como: Museu Mineiro (BH, MG), Museu de Arte da Pampulha (BH, MG), Pinacoteca do Palácio da Liberdade (BH, MG), Pinacoteca Pública de Sete Lagoas (MG), Museu Dona Beja (Araxá, MG), Funarte (Rio de Janeiro, RJ), Museu de Feira de Santana (BA) e Sesc Piracicaba (SP). Participa do vídeo e do livro do projeto "Um século de História das Artes Plásticas em Belo Horizonte" (Belo Horizonte, MG, Editora C/Arte, 1997). Atualmente, com mais de 90 anos de idade, devido à doença, convalesce em sua residência no bairro Renascença em Belo Horizonte, MG.

 

 

Colheita de Algodão, OST, 22x27 cm, 1978, Coleção Gracinda Gonçalves Ribeiro

Foto: Junhinho Mota

 

 

Uma das características interessantes do livro são os depoimentos que o artista dispõe às interrogações de Janaina Melo. Numa delas, a mais importante na avaliação estética, ponto de equilíbrio e desenvolvimento da carreira, observamos a pergunta/questão sobre as "temáticas realistas" recorrentes nas obras de Rodelnégio, em destaque numa longa resposta:

 

"Janaina Melo: Em suas pinturas percebemos a presença marcante de elementos do cotidiano, bem como de festas e tradições populares. Em que medida as lembranças de experiências vividas no Parque são determinantes para a abordagem desses temas?

 

Rodelnégio: Gosto do cotidiano, pintar coisas que já vi ou que vejo diariamente. Uma das coisas que ficaram em minha memória foram as peladas que, ainda menino, jogávamos na praça Rui Barbosa, em Alegre (ES). Toda a meninada reunia-se na praça para jogar horas e horas sem parar. Fiz vários trabalhos cujo tema foram essas peladas. As manifestações folclóricas de Alegre também estão presentes em minhas pinturas. O Caxambu, que era uma dança muito difundida na cidade, foi tema de um trabalho que participou do Salão de Arte da Prefeitura (BH, MG).

 

Com o parque de diversões, visitei muitas cidades do interior do Brasil; nessas andanças, conheci o dia-a-dia das pessoas, costumes, festas e tradições que hoje habitam minhas pinturas. Não conhecia nada sobre folclore, mas via as festas religiosas e o carnaval. 

 

Viajando com o parque, deparava-me sempre com novas paisagens, gente diferente, costumes diferentes e comecei a observar essas coisas. Cada região tem um costume: na Bahia, por exemplo, é um mês inteiro de festas. A festa do Senhor do Bonfim, as feiras, as barracas, as comidas... Enfim, o artista, observando essas manifestações, adquire conhecimentos que depois pode utilizar na hora de produzir um trabalho.

 

Quando pinto, recupero muitas cenas que já aconteceram e que de alguma forma impressionaram-me, ficaram guardadas na memória. Por exemplo, uma vez chegamos numa cidade onde havia chovido muito; após a grande chuva formaram-se poções de água que foram cercados para que as pessoas não entrassem. Quando veio a seca esses poções viravam a única fonte de água da cidade e vi uma pessoa baixada no fundo do poço pegando o resto da água que o sol forte ainda não tinha levado. Mais tarde pintei essa cena.

 

Existe também uma cena que vi nas margens do rio São Francisco e há anos espero para fazer um trabalho. Nós estávamos em Juazeiro e na cidade tem o cais do porto, o navio encosta e descarrega no cais. Eu estava observando o descarregamento, quando vi a meninada reunida, pensei: tem alguma coisa acontecendo ali. Fui observar mais de perto e percebi que as crianças estavam formando uma parede ao redor de uma pilha de sacos de farinha de mandioca. Um dos meninos saiu com um canivete e cortou o saco, e, um a um, revezavam-se para encher os bolsos com a farinha. Eles estavam roubando a farinha do carregamento. Estou com essa cena há anos na memória e agora vou pintar, fazer o porto, o navio e os moleques roubando a farinha.

 

O rio São Francisco é muito importante, toda a população ribeirinha vai até a margem para ver quando o vapor passa. As pessoas que viajam no vapor reúnem-se toda tarde para contar histórias. Acho que como pintor é muito importante registrar esses fatos.

 

No Norte o que impressiona é a miséria, o Brasil é assim, tem uma região que é riquíssima e outra paupérrima. No norte as pessoas compram uma jaca, sentam-se e cada um tira um favo da jaca. Põe na boca com um monte de farinha de mandioca, come e depois cospe o caroço. Todo mundo faz isso, eu ficava olhando e achava aquilo muito impressionante, ver toda aquelas pessoas comendo jaca com farinha. Já pintei uma roda de jaca".

 

 

Procissão em Ouro Preto, OST, 1967, Coleção Gracinda Gonçalves Ribeiro

Foto: Leonardo Lara

 

 

Rodelnégio se expressa essencialmente pela emoção e a tonicidade das cores. O sentimento de pertencimento de mundo e seu "religare" junto ao povo brasileiro são a sua razão, pela qual articula-se com a pintura. Exprime-se através do mundo dos acontecimentos: o cotidiano que aflora. É uma pintura de apelo, envolvimento, reconhecimento temático e público. Não teoriza, leva-se pelo impulso criador espontâneo e a memória privilegiada elaborados com estilo próprio e celebra a identificação simbólica e orgulho civil que dá voz às várias classes sociais representadas. As festas e personagens são exaltadas de maneira realista, todavia investidas de um significado luminoso e eterno. A ressonância interior está em consonância com a ressonância exterior, que almeja e consegue a projeção estética concreta e imaginária — incorporam esses dois extremos e tornam fascinante um sentimento verdadeiro e lúdico de brasilidade.

 

O gesto de identificação formalizado nas telas dá voz ao povo. Em ação, no ato, na presença e no destaque. Trata-se, portanto, de um artista que pinta o ser e o jeito brasileiro compartilhado, vivenciado, celebrado e não oficializado por qualquer instância política partidária. Uma narração fiel da tradição que vem do meio das pessoas, do seio da miscigenação: uma fusão de cores e formas cintilando na terra. O sentimento de grandeza poética de Rodelnégio é a revelação da esperança, sem preocupação com os falsos modismos e sofisticações desnecessárias, da alma popular que constrói a autêntica história do Brasil.

 

 

 

 

junho, 2007