©hucleux
                         
 
 
 
 
 
 
 
 

Estou no Louvre diante de uma das versões do quadro de La Tour Le tricheur (O trapaceiro). Nele, uma mulher está jogando cartas com dois homens, enquanto a criada lhe serve uma taça de vinho. Um dos jogadores, com a mão atrás da cintura, exibe para o espectador do quadro, duas cartas escondidas, que lhe darão a vitória. Este quadro é a retomada de um tema que foi magistralmente retratado antes por Caravaggio (1594), cuja exposição vi em 1999, em Roma. Só que o título, que é o mesmo, está no plural Les Tricheurs. Aqui um homem espia as cartas que uma mulher tem nas mãos, enquanto seu parceiro exibe nas mãos atrás das costas, duas cartas que lhe garantem ganhar o jogo.

Marcel Duchamp preferia jogar xadrez ao invés de cartas. Chegou a abandonar a pintura por uns 20 anos para ficar participando de campeonatos de xadrez. Sua fissura por esse jogo era tal que chegou a redesenhar-lhe as peças.

Duchamp além de jogador, foi um tricheur. Um magnífico trapaceiro. Como os personagens de Caravaggio e La Tour, teve a audácia de mostrar as cartas com que jogava e com as quais empalmaria o jogo. Como aqueles personagens, ele está virado para o público se denunciando. Basta decodificar suas "cartas", ou seja, textos e obras.

Com efeito, o jogo está, estruturalmente, presente na obra de Duchamp e é estranho que isto não tenha sido analisado. Estranho que não se tenha visto as correlações entre o jogo e a estrutura de sua produção. Não estou me referindo ao sentido geral, que é ver a obra de arte como um grande jogo consigo mesmo, com o mercado, com o público, com os museus.Tomemos, especificamente, dois exemplos concretos: o ready-made de 1964, que é um cupom da "roleta de Monte Carlo", do qual Duchamp se apropriou colocando seu nome; e o cheque que ele mesmo fabricou no valor de $115,00 para saldar uma dívida e que acabou virando moeda de troca verdadeira, que ele recomprou para revalorizá-la. São duas metáforas palpáveis do jogo como tema e como prática em sua obra.  Além disto, consideremos uma outra prática obsessiva de jogo, o jogo verbal que exercitava, fascinado, construindo trocadilhos. Em suas "Notas" deixou registrados 288 trocadilhos, que o divertiam. E assim, gostando cada vez mais de malabarismos mentais decidiu afastar-se dos pintores e ir trabalhar na Biblioteca de Santa Genoveva, dedicando-se, por um longo período, ao pensamento, ao logos, ao jogo dos conceitos.

No jogo de xadrez há uma situação conhecida como xeque-mate, que vem do persa xah mat.  A situação do xeque-mate é aquela em que o rei, sob ataque, já não pode fugir nem se defender. Na verdade, como diria Maurice Lever (Le sceptre et la marotte, Ed. Fayard) "o echec et mat não significa nem a morte nem a captura do rei, mas seu aprisionamento numa rede de alternativas impossíveis, que fazem do jogo de xadrez o único jogo que encontra a sua solução no insolúvel".

Marcel Duchamp deu um xeque-mate na arte há quase cem anos. Desde então ela ficou paralisada, prisioneira, dependente de uma solução que teria que passar pela desconstrução do impasse que ele criou. Duchamp encurralou o conceito de arte da época ao convencer seu auditório, que tudo era arte, desde que alguém assim o quisesse, desde que o artista apusesse em qualquer objeto, modificado ou não, sua assinatura.  No instante em que, atônitos, seus interlocutores e, depois, as gerações vindouras, caíram neste jogo, a arte, como o Rei, ficou imobilizada num oxímoro e numa tautologia, pois se tudo é arte, nada é arte. 

Duchamp, no entanto, estava, como os personagens nos quadros de La Tour e Caravaggio trapaceando e exibindo a trapaça (para quem souber ler & ver). Ele exibia isto, às vezes, cinicamente, como ao dizer que havia jogado na cara dos burgueses uma série de non-sense e eles haviam acreditado naquilo. Mas é na análise da prática teórica de Duchamp que se encontram os sinais da trapaça, que o transformam antropologicamente no grande trickster da arte moderna.

Lacan tem uma análise do conto de Poe que passou a ser conhecido com o título de "A carta roubada". Trata-se de uma estória onde, como no jogo de xadrez, existe a personagem de uma rainha e a de um rei. E a trama se desenrola em torno de uma carta comprometedora, que parece oculta e, no entanto, está o tempo todo à vista sobre a mesa do rei. Por que essa carta tão à vista não é vista? Lacan, curiosamente, usa os mesmos termos que estamos sublinhando e nos fala da "trapaça", do comportamento do "avestruz" e do gesto do "ilusionista", o qual faz na exibição das cartas ao público seu primeiro e ostensivo gesto de engano. E a suprema arte do ilusionista é "fazer-nos um ser de sua ficção".  Exatamente como ocorreu naquela lenda do "rei nu" de Andersen, reincidentemente lembrada em relação à arte de nosso tempo.

Sintomaticamente, como se estivesse dando mais dados semiológicos para nossa interpretação, Duchamp, em 1958, participou da exposição "O desenho na arte mágica", com sua Boite en valise, imitando intencionalmente as valises dos mágicos.

Ilusionista conceitual, Duchamp logrou convencer a muitos que é arte tudo o que alguém diz que é arte. E mais: que se colocarmos uma roda de bicicleta ou um urinol num museu isto passa a ser arte. E assim se passaram quase cem anos em que muitas pessoas olharam esses objetos quase com êxtase. Pois, no picadeiro dos mal entendidos, lamento informar ao distinto público que aquela roda de bicicleta é simplesmente uma roda de bicicleta, e que aquele famoso urinol é um urinol mesmo. A carta está na mesa (para quem quiser ler). 

A chamada pós-modernidade falou muito em "desconstrutivismo" e tachou Duchamp de "descontrutivista". Então, usando o mesmo insidioso veneno como remédio (similia similibus curantur) lhes digo: é  necessário desconstruir Duchamp.

A melhor homenagem que podemos fazer aos mestres contestadores de ontem, é contestá-los hoje. Não para que a arte volte ao passado, mas para que ela se possibilite um futuro.

 

 

abril, 2005

 

 

 

Affonso Romano de Sant'Anna é poeta.

 

 

 

Este artigo foi publicado no Jornal Kislansky Ateliê de Escultura e faz parte de uma coletânea de textos escritos entre dezembro de 2001 e agosto de 2002, publicados originalmente nos jornais O Globo e Estado de Minas e reunidos no livro Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão (Rio de Janeiro: Vieira & Lent Casa Editorial, 2003). Saiba mais aqui.