Neste
último ano, estou morando em Roma em razão de meu pós-doutorado em
história da arte. A princípio, hospedei-me na região vizinha à Estação
Termini e à Universidade "La Sapienza", à qual estou ligada, mas fui
logo tratando de buscar um apartamento em um local mais pitoresco da
cidade, que não estivesse longe das bibliotecas que pretendia freqüentar
e que não me obrigasse a pegar ônibus e metrô para me deslocar até elas.
O melhor de Roma se aproveita a pé, pois o lugar comum de que a cidade é
um museu a céu-aberto é verdadeiro.
Por
uma série de razões, inclusive afetivas, esse lugar pitoresco para
mim não poderia ser outro senão o Trastevere, talvez o único dos bairros
do centro histórico de Roma que conservou um modo de vida e características
que se assemelham mais às de um vilarejo, do que àquelas da Roma dita
barroca, de proporções imperiais, que estamos acostumados a ver nos
postais. É verdade que hoje ele é um bairro turístico e que a afluência
de novos moradores, a maior parte deles americanos ricos (com o perdão
da redundância), inflacionou tanto a vida por aqui, que poucos são
os verdadeiros trasteverinos que conseguiram a proeza mais valorizada
entre eles: manter as casas em que nasceram. Contudo, até meados da
década de 70, havia ainda moradores locais que se vangloriavam do
fato de jamais ter cruzado a ponte Sisto, sobre o Tevere, em direção
ao centro da cidade! Nada demais, uma vez que eles se acreditavam
os herdeiros diretos de César, o qual, segundo reza a lenda, foi quem
deu origem ao bairro ao instalar aqui uma comunidade de pescadores
de Rimini, responsáveis pela fabricação e manuseio dos toldos que
cobriam as arquibancadas do Coliseu em dias de espetáculos. A verdadeira
Roma, segundo a mitologia local, continuava a viver no Trastevere,
e apenas no Trastevere, pouco tendo a ver com os destinos daquela
cidade reconstruída à exaustão nos séculos XVI e XVII pelos papas
forasteiros! E mesmo depois de tantas mudanças, sou testemunha viva
de que o Trastevere passou praticamente incólume aos festejos da morte
do papa Paulo II e à eleição do novo. O que significa isto, a sério,
francamente não sei; o mais provável e que não passe de simples incredulidade
moderna, sem relação com as velhas lendas locais. De qualquer forma,
acredito que poucos trasteverinos saibam que a principal igreja do
bairro, a basílica de Santa Maria in Trastevere, que conserva em seu
interior obras de arte de valor inestimável — das colunas retiradas
das termas de Caracalla, passando pelo piso comastesco e pelos mosaicos
de Pietro Cavallini, datados do XIII —, é a primeira igreja católica
dedicada ao culto da Virgem. As únicas divindades dignas de veneração
por estas bandas, no presente, são o "spaghetti caccio e peppe", o
"rigattoni all' amatricciana" e o "carciofi alla giudia"; divindades
estas não menos recheadas de tradição e história do que as obras de
artes que estão por toda a cidade. Precisamente hoje, dia 15 de agosto,
comemora-se em toda a Itália o "Ferragosto", o dia da Assunção da
Virgem, mas quase ninguém no Trastevere sabe a razão da comemoração.
É festa e basta, com eles dizem.
figura 1
A
história do bairro, porém, contradiz muito àquela contada e repetida
pelo anedotário local. O Trastevere sempre esteve longe de ser um lugar
cujo isolamento voluntário de seus moradores, durante o século XX, pôde
preservar alguma centelha de uma suposta verdadeira romanidade.
Modernamente,
o Trastevere ganhou importância durante o pontificado de Júlio II,
graças à abertura da Via da Lungara, que ligou diretamente o bairro
ao Vaticano, e da Via Giulia, que completa o circuito com o Vaticano
pela outra margem do rio, passando pelo Campo dei Fiori. A Via della
Lungara, assim como a Via Giulia, que correm paralelamente de ambos
os lados do Tevere, foram projetadas e construídas contemporaneamente
por Bramante, e foram, durante todo o século XVI, os mais longos traçados
retilíneos da cidade. Com essa intervenção urbanística, Júlio II pretendia
não apenas atender às necessidades logísticas do imenso número de
operários e artífices que trabalhavam nas obras de reedificações e
ornamentação da basílica de São Pedro, mas também, recriar um novo
centro político para cidade, à semelhança daquele antigo, situado
no Fórum Romano. Deve-se a tal intervento a construção, em ambas as
margens do rio, de palácios de grande importância artística, tanto
do ponto de vista arquitetônico, quanto do da decoração pictórica
e escultória. Refiro-me precisamente ao palácio Farnese, situado no
Campo dei Fiori, célebre pelo ciclo de afrescos mitológicos realizados
entre o fim do século XVI e o início do século XVII pelos Carracci,
e à Villa Farnesina, localizada na Via della Lungara, a dois passos
da Porta Setimiana, que marca o início do chamado Rione Trastevere.
A
Farnesina, cuja construção antecede em quase um século o palácio Farnese,
não era um palácio citadino, mas uma villa, ou seja, uma residência
de campo, pois o Trastevere não só está situado às margens externas
do Tevere, mas fazia as vezes de fronteira entre a cidade e a zona
rural, que se iniciava na colina do Gianicolo e no imenso jardim da
Villa Pamphili. A Villa Farnesina conserva em suas paredes, as famosas
cenas mitológicas da fábula de Psique e Galatea, arrematadas pelas
graciosas pinturas de "grotescos", realizadas, na primeira década
do século XVI, por Giulio Romano, Giovanni da Udine, Baldassare Peruzzi,
entre outros discípulos de Rafael Sanzio, com base nos cartões desenhados
pelo próprio mestre. O nome "grotesco", que aparece pela primeira
vez nos tratados de arte do século XVI, não se refere às figurações
fantasiosas tanto criticadas por Horácio em sua Epístola aos Pisões, mas ao fato
de que estas eram feitas à imitação das pinturas parietais deste gênero,
recém-descobertas nas grutas escavadas por esses mesmos pintores.
Escavações posteriores vieram a revelar que estas grutas eram, na
verdade, a Domus Aurea, o palácio construído por Nero depois do incêndio
de 64 d.C., que foi soterrado por ordens do Imperador Trajano para
dar lugar às Termas, cujas ruínas leva hoje seu nome.
figura 2
O
Trastevere, contudo, não era apenas o cenário bucólico de incontáveis
obras de arte, hoje reunidas sob a noção de renascentistas, entre as
quais não posso deixar de mencionar a pequena e graciosa obra
arquitetônica, conhecida como Tempietto di Bramante, situada no claustro
da Igreja de San Pietro in Montorio. Muitas das histórias anedóticas da
vida de alguns artistas do período ambientam-se aqui, como é o caso de
Michelangelo Buonarroti e Rafael Sanzio. A fonte primeira destas
anedotas, reelaboradas à exaustão pelos românticos e pelos historiadores
da arte, é, sem dúvida, a monumental Vite dei più eccelenti pittori,
scultori e architetti, escrita por Giorgio Vasari e publicada em
duas versões, em 1550 e em 1568.
Conta
Vasari, na vida dedicada a Rafael Sanzio, que a afeição e o amor do
artífice por uma mulher e a "necessidade contínua de deleites carnais",
quase o fez abandonar as pinturas que realizava na Villa Farnesina.
Segundo Vasari, ele só conseguiu terminá-las, graças à intervenção
de Agostino Chigi, o proprietário da villa, que conseguiu que esta
mulher viesse morar na mesma casa que Rafael. Não sei exatamente como
a anedota foi se enriquecendo de detalhes que Vasari não nos dá, mas
hoje, na suposta casa de Rafael, situada ao fim da Via della Lungara,
logo à entrada do bairro, funciona um restaurante, Romolo a Trastevere,
cujo principal atrativo turístico é o jardim supostamente partilhado
pelos amantes (figs.1 e 2).
Não
sei, igualmente, como a mulher misteriosa à qual se refere Vasari
foi, posteriormente, identificada como Margherita Luti, a filha de
um padeiro de Siena, a qual Rafael teria retratado à maneira de uma
cortesã, no quadro conhecido como a Fornarina, ou seja, a Padeirinha
(fig. 3). O caso é que a discussão a respeito de quem seria a mulher
do quadro ainda suscita polêmica entre alguns historiadores da arte,
em especial, entre aqueles que se ocupam da divulgação da arte para
o grande público. Recentemente, li o comentário da curadora de arte
americana, Mia Fineman, a respeito da exposição itinerante dedicada
exclusivamente ao quadro da Fornarina, que percorreu a Frick Collection,
em Nova York, o Museum of Fine Arts, em Houston, e o Indianapolis
Museum of Arts, durante o primeiro semestre de 2005. De acordo com
relato de Fineman, a exposição foi organizada preponderantemente em
torno das últimas hipóteses interpretativas a respeito de quem seria
afinal a Fornarina. A hipótese considerada pela mostra como a mais
verossímil é a levantada por Cláudio Strinati, superintendente dos
Museus de Roma, que identifica a Fornarina com Francesca Ardeasca,
que se casou com Agostino Chigi, em 1519. A sustentar a hipótese,
Strinati nos dá duas supostas evidências: o acabamento muito cuidado
do quadro, que demonstraria que ele não teria sido feito para prazer
pessoal do artista, e as análises dos raios X da obra, que revelaram
uma aliança numa das mãos da figura. Ou seja, a identificação da Fornarina
com a filha do padeiro, nascida da descrição um pouco libidinosa que
Vasari faz de Rafael, deu lugar a uma interpretação presumivelmente
mais séria da sua figura, baseada na história do mecenato na arte.
Pergunto-me se esta não seria apenas o início de uma nova anedota
para o quadro que, como a anterior, pouco esclarece a respeito das
obras de Rafael, mas muito a respeito de uma atual tendência da história
da arte de descrever as obras de artes através delas.
figura 3
O
interesse desta discussão para mim, relacionando-a com a mitologia
popular trasteverina, é destacar algumas questões de teor
historiográfico e crítico que acredito serem bastante problemáticas
dentro do âmbito da história da arte. Uma parte considerável dos
esforços críticos dos historiadores da arte, durante o século XX,
centrou-se na necessidade de compor para a própria disciplina um campo
metodológico que distinguisse e respeitasse as particularidades de seu
principal objeto de estudo: as obras de arte. Os esforços para criar um
método que lhe fosse único parecem ter sido cumpridos além do ponto de
equilíbrio. Tanto é assim
que, nos anos 90, historiadores como Henri Zerner ou Hans Belting viram
nisso o fim eminente da disciplina, ensinada e praticada apenas como
mera rotina acadêmica. E pior, acrescento eu, uma rotina que, no caso da
arte italiana do século XVI, freqüentemente empreende seus esforços
formais, iconográficos, sociológicos, psicanalíticos, filológicos,
apenas para pretender dar sustentação — mais ou menos científica,
segundo a orientação mais ou menos positivista — a uma história
anedótica da arte, que, de um lado, está distante de toda a questão
contemporânea da crise da estética, e, de outro, é muito mais saborosa
quando entregue a si própria, como ocorre, por exemplo, numa pequena
visita guiada ao Trastevere. Ao menos aqui, se os casos não colarem,
sempre se pode dourar a fábula com um fabuloso "linguini al
limone".
agosto,
2005