©rafael sanzio - auto-retrato

 

 
 
 
 
 
 
 

Neste último ano, estou morando em Roma em razão de meu pós-doutorado em história da arte. A princípio, hospedei-me na região vizinha à Estação Termini e à Universidade "La Sapienza", à qual estou ligada, mas fui logo tratando de buscar um apartamento em um local mais pitoresco da cidade, que não estivesse longe das bibliotecas que pretendia freqüentar e que não me obrigasse a pegar ônibus e metrô para me deslocar até elas. O melhor de Roma se aproveita a pé, pois o lugar comum de que a cidade é um museu a céu-aberto é verdadeiro.

 

Por uma série de razões, inclusive afetivas, esse lugar pitoresco para mim não poderia ser outro senão o Trastevere, talvez o único dos bairros do centro histórico de Roma que conservou um modo de vida e características que se assemelham mais às de um vilarejo, do que àquelas da Roma dita barroca, de proporções imperiais, que estamos acostumados a ver nos postais. É verdade que hoje ele é um bairro turístico e que a afluência de novos moradores, a maior parte deles americanos ricos (com o perdão da redundância), inflacionou tanto a vida por aqui, que poucos são os verdadeiros trasteverinos que conseguiram a proeza mais valorizada entre eles: manter as casas em que nasceram. Contudo, até meados da década de 70, havia ainda moradores locais que se vangloriavam do fato de jamais ter cruzado a ponte Sisto, sobre o Tevere, em direção ao centro da cidade! Nada demais, uma vez que eles se acreditavam os herdeiros diretos de César, o qual, segundo reza a lenda, foi quem deu origem ao bairro ao instalar aqui uma comunidade de pescadores de Rimini, responsáveis pela fabricação e manuseio dos toldos que cobriam as arquibancadas do Coliseu em dias de espetáculos. A verdadeira Roma, segundo a mitologia local, continuava a viver no Trastevere, e apenas no Trastevere, pouco tendo a ver com os destinos daquela cidade reconstruída à exaustão nos séculos XVI e XVII pelos papas forasteiros! E mesmo depois de tantas mudanças, sou testemunha viva de que o Trastevere passou praticamente incólume aos festejos da morte do papa Paulo II e à eleição do novo. O que significa isto, a sério, francamente não sei; o mais provável e que não passe de simples incredulidade moderna, sem relação com as velhas lendas locais. De qualquer forma, acredito que poucos trasteverinos saibam que a principal igreja do bairro, a basílica de Santa Maria in Trastevere, que conserva em seu interior obras de arte de valor inestimável — das colunas retiradas das termas de Caracalla, passando pelo piso comastesco e pelos mosaicos de Pietro Cavallini, datados do XIII —, é a primeira igreja católica dedicada ao culto da Virgem. As únicas divindades dignas de veneração por estas bandas, no presente, são o "spaghetti caccio e peppe", o "rigattoni all' amatricciana" e o "carciofi alla giudia"; divindades estas não menos recheadas de tradição e história do que as obras de artes que estão por toda a cidade. Precisamente hoje, dia 15 de agosto, comemora-se em toda a Itália o "Ferragosto", o dia da Assunção da Virgem, mas quase ninguém no Trastevere sabe a razão da comemoração. É festa e basta, com eles dizem.

 

 

 

 

 

figura 1

 

 

A história do bairro, porém, contradiz muito àquela contada e repetida pelo anedotário local. O Trastevere sempre esteve longe de ser um lugar cujo isolamento voluntário de seus moradores, durante o século XX, pôde preservar alguma centelha de uma suposta verdadeira romanidade.

 

Modernamente, o Trastevere ganhou importância durante o pontificado de Júlio II, graças à abertura da Via da Lungara, que ligou diretamente o bairro ao Vaticano, e da Via Giulia, que completa o circuito com o Vaticano pela outra margem do rio, passando pelo Campo dei Fiori. A Via della Lungara, assim como a Via Giulia, que correm paralelamente de ambos os lados do Tevere, foram projetadas e construídas contemporaneamente por Bramante, e foram, durante todo o século XVI, os mais longos traçados retilíneos da cidade. Com essa intervenção urbanística, Júlio II pretendia não apenas atender às necessidades logísticas do imenso número de operários e artífices que trabalhavam nas obras de reedificações e ornamentação da basílica de São Pedro, mas também, recriar um novo centro político para cidade, à semelhança daquele antigo, situado no Fórum Romano. Deve-se a tal intervento a construção, em ambas as margens do rio, de palácios de grande importância artística, tanto do ponto de vista arquitetônico, quanto do da decoração pictórica e escultória. Refiro-me precisamente ao palácio Farnese, situado no Campo dei Fiori, célebre pelo ciclo de afrescos mitológicos realizados entre o fim do século XVI e o início do século XVII pelos Carracci, e à Villa Farnesina, localizada na Via della Lungara, a dois passos da Porta Setimiana, que marca o início do chamado Rione Trastevere.

 

A Farnesina, cuja construção antecede em quase um século o palácio Farnese, não era um palácio citadino, mas uma villa, ou seja, uma residência de campo, pois o Trastevere não só está situado às margens externas do Tevere, mas fazia as vezes de fronteira entre a cidade e a zona rural, que se iniciava na colina do Gianicolo e no imenso jardim da Villa Pamphili. A Villa Farnesina conserva em suas paredes, as famosas cenas mitológicas da fábula de Psique e Galatea, arrematadas pelas graciosas pinturas de "grotescos", realizadas, na primeira década do século XVI, por Giulio Romano, Giovanni da Udine, Baldassare Peruzzi, entre outros discípulos de Rafael Sanzio, com base nos cartões desenhados pelo próprio mestre. O nome "grotesco", que aparece pela primeira vez nos tratados de arte do século XVI, não se refere às figurações fantasiosas tanto criticadas por Horácio em sua Epístola aos Pisões, mas ao fato de que estas eram feitas à imitação das pinturas parietais deste gênero, recém-descobertas nas grutas escavadas por esses mesmos pintores. Escavações posteriores vieram a revelar que estas grutas eram, na verdade, a Domus Aurea, o palácio construído por Nero depois do incêndio de 64 d.C., que foi soterrado por ordens do Imperador Trajano para dar lugar às Termas, cujas ruínas leva hoje seu nome.

 

 

 

figura 2

 

O Trastevere, contudo, não era apenas o cenário bucólico de incontáveis obras de arte, hoje reunidas sob a noção de renascentistas, entre as quais não posso deixar de mencionar a pequena e graciosa obra arquitetônica, conhecida como Tempietto di Bramante, situada no claustro da Igreja de San Pietro in Montorio. Muitas das histórias anedóticas da vida de alguns artistas do período ambientam-se aqui, como é o caso de Michelangelo Buonarroti e Rafael Sanzio. A fonte primeira destas anedotas, reelaboradas à exaustão pelos românticos e pelos historiadores da arte, é, sem dúvida, a monumental Vite dei più eccelenti pittori, scultori e architetti, escrita por Giorgio Vasari e publicada em duas versões, em 1550 e em 1568.

 

Conta Vasari, na vida dedicada a Rafael Sanzio, que a afeição e o amor do artífice por uma mulher e a "necessidade contínua de deleites carnais", quase o fez abandonar as pinturas que realizava na Villa Farnesina. Segundo Vasari, ele só conseguiu terminá-las, graças à intervenção de Agostino Chigi, o proprietário da villa, que conseguiu que esta mulher viesse morar na mesma casa que Rafael. Não sei exatamente como a anedota foi se enriquecendo de detalhes que Vasari não nos dá, mas hoje, na suposta casa de Rafael, situada ao fim da Via della Lungara, logo à entrada do bairro, funciona um restaurante, Romolo a Trastevere, cujo principal atrativo turístico é o jardim supostamente partilhado pelos amantes (figs.1 e 2).

 

Não sei, igualmente, como a mulher misteriosa à qual se refere Vasari foi, posteriormente, identificada como Margherita Luti, a filha de um padeiro de Siena, a qual Rafael teria retratado à maneira de uma cortesã, no quadro conhecido como a Fornarina, ou seja, a Padeirinha (fig. 3). O caso é que a discussão a respeito de quem seria a mulher do quadro ainda suscita polêmica entre alguns historiadores da arte, em especial, entre aqueles que se ocupam da divulgação da arte para o grande público. Recentemente, li o comentário da curadora de arte americana, Mia Fineman, a respeito da exposição itinerante dedicada exclusivamente ao quadro da Fornarina, que percorreu a Frick Collection, em Nova York, o Museum of Fine Arts, em Houston, e o Indianapolis Museum of Arts, durante o primeiro semestre de 2005. De acordo com relato de Fineman, a exposição foi organizada preponderantemente em torno das últimas hipóteses interpretativas a respeito de quem seria afinal a Fornarina. A hipótese considerada pela mostra como a mais verossímil é a levantada por Cláudio Strinati, superintendente dos Museus de Roma, que identifica a Fornarina com Francesca Ardeasca, que se casou com Agostino Chigi, em 1519. A sustentar a hipótese, Strinati nos dá duas supostas evidências: o acabamento muito cuidado do quadro, que demonstraria que ele não teria sido feito para prazer pessoal do artista, e as análises dos raios X da obra, que revelaram uma aliança numa das mãos da figura. Ou seja, a identificação da Fornarina com a filha do padeiro, nascida da descrição um pouco libidinosa que Vasari faz de Rafael, deu lugar a uma interpretação presumivelmente mais séria da sua figura, baseada na história do mecenato na arte. Pergunto-me se esta não seria apenas o início de uma nova anedota para o quadro que, como a anterior, pouco esclarece a respeito das obras de Rafael, mas muito a respeito de uma atual tendência da história da arte de descrever as obras de artes através delas.

 

 

 

figura 3

 

O interesse desta discussão para mim, relacionando-a com a mitologia popular trasteverina, é destacar algumas questões de teor historiográfico e crítico que acredito serem bastante problemáticas dentro do âmbito da história da arte. Uma parte considerável dos esforços críticos dos historiadores da arte, durante o século XX, centrou-se na necessidade de compor para a própria disciplina um campo metodológico que distinguisse e respeitasse as particularidades de seu principal objeto de estudo: as obras de arte. Os esforços para criar um método que lhe fosse único parecem ter sido cumpridos além do ponto de equilíbrio.  Tanto é assim que, nos anos 90, historiadores como Henri Zerner ou Hans Belting viram nisso o fim eminente da disciplina, ensinada e praticada apenas como mera rotina acadêmica. E pior, acrescento eu, uma rotina que, no caso da arte italiana do século XVI, freqüentemente empreende seus esforços formais, iconográficos, sociológicos, psicanalíticos, filológicos, apenas para pretender dar sustentação — mais ou menos científica, segundo a orientação mais ou menos positivista — a uma história anedótica da arte, que, de um lado, está distante de toda a questão contemporânea da crise da estética, e, de outro, é muito mais saborosa quando entregue a si própria, como ocorre, por exemplo, numa pequena visita guiada ao Trastevere. Ao menos aqui, se os casos não colarem, sempre se pode dourar a fábula com um fabuloso "linguini al limone".

 

 

 

 

agosto, 2005

 

 

 

 

 

cristianemarian@yahoo.com.br