A vida com minha família fez-me crescer em países com línguas e culturas diferentes, a ponto de não me sentir pertencer a uma nacionalidade específica. Quando cheguei ao Brasil, freqüentemente perguntavam-me sobre as minhas origens e as minhas respostas deixavam confusos os interlocutores: nasci em Zurique, em 1956, de pai e mãe alemães e nunca vivi na Alemanha. Cresci na Itália, com nacionalidade suíça e sobrenome francês. Minha mãe é de origem bávara e se chama Regina Lippl. Tenho dois irmãos, Nikolaus e Oliver, e um pai adotivo italiano, Gerolamo Gatti (do meu pai biológico falarei depois).

 

Os lugares da minha infância eram os Alpes italianos, com suas montanhas altas e íngremes, invernos ásperos e, constantemente, nevadas de até um metro ou mais. O imenso e estupendo vale, no qual vivia, era totalmente branco e silencioso, porque a neve absorve todo o rumor. Um clima fantástico, que hoje está muito mudado, paisagens de Breugel, Altdorf ou Friedrich, projetadas no presente. O habitat era constituído, principalmente, por agricultores muito pobres, filhos e netos de ex-meieiros, ou seja, agricultores que, até a década dos anos 20-30, trabalharam a terra do patrão com a obrigação de dividir a metade da colheita como contraposição, uma forma de escravidão menos aparente.

 

No verão, ia para o alto da montanha e lá ficava por meses, com um tio, cinco vacas e um cão. O contato com a natureza era um verdadeiro radical-full-immersion, algo que todas as crianças deveriam ter: árvores com frutos deliciosos (dos quais, o gosto desapareceu hoje, infeliz e miseravelmente, devido ao cultivo industrial), animais domésticos e selvagens, jogos simples e antigos e um saudável contato com anciãos, personagens fortes de aparência atávica. Mas nem tudo brilhava. Eu tinha cara de alemão e vivia em uma região, onde as lutas partidárias contra os nazistas eram cruéis. O ódio em relação ao tirano permeava e se infiltrava no relacionamento com os companheiros de escola.

 

Minha mãe, mulher enérgica e de muita criatividade, cresceu em um ambiente culto, era filha do escritor e dramaturgo Alois Johannes Lippl, nascido em Munique, em 1903. Quando eu tinha 10 anos, graças a uma herança que recebeu, ela construiu um restaurante e uma discoteca e nós nos mudamos.

 

A minha vida, de repente, tornou-se mundana e melhorou, por um certo período. Tinha muito trabalho e eu fazia de tudo: entre as coisas belas, fui DJ; entre as coisas menos agradáveis, servente, faxineiro e caixa. Eu tentava manter calmos os clientes mais violentos e arruaceiros do local, embora sem possuir força, nem idade suficiente para fazê-lo. O bem-estar nos trouxe cultura, a arquitetura moderna das casas construídas naquela época onde vivíamos, objetos de design, livros, música e cultura pop. Aos 14 anos, tinha uma motocross, esquiava como um louco, e na escola eu era um desastre.

 

Aos 15 anos, tive que escolher uma profissão. Meu pai, que então vivia na Suíça italiana, me propôs freqüentar uma escola de arte aplicada, em Lugano, uma mini Bauhaus, com ótimos docentes. Com pesar, deixei aquele vale, mas com alegria, iniciei os estudos de comunicação visual e, assim, pude resgatar o meu interesse pelos estudos. A escola era antiautoritária e eu vivia em um ambiente hippie total, um sonho! O professor Bruno Monguzzi, excelente gráfico, homem engenhoso e passional no ensino, marcou profundamente aqueles anos de estudo. Tipografia, fotografia, projetação e paginação gráfica, o estudo da comunicação contemporânea e a arte do século XX, preencheram aqueles cinco anos de estudo. Mas, no final, não escolhi essa profissão. Aos 20 anos, fui viver com meu pai biológico, Leopold Mayer, um mestre da gravura e excelente pintor.

 

Eu o conhecia pouco. Quando criança, durante as férias de verão, ele nos levava para a praia, na Itália ou na França, com a sua Kombi VW-bus, decorada tipo trailer. Fazíamos paradas em aldeias medievais, templos gregos, visitávamos cidades e museus, pulando de um local ao outro, como ciganos. Morei com ele, aproximadamente, sete anos, e fiz um longo aprendizado: desenho, aquarela, gravura. Eu o ajudava em todas as suas questões pessoais e profissionais. Dividíamos uma vida intensa e, nem sempre, ausente de conflitos, afinal, tínhamos 54 anos de diferença. A sua casa-atelier, imersa em um exótico bambuzal com antigos castanheiros, era uma espécie de loft, repleto de bugigangas, com obras de arte pelo chão, penduradas no teto e nas paredes, objetos extravagantes em todas as partes, uma desordem indescritível e, a seu modo, perfeita.

 

Leopold, um homem pequeno de estatura, refinado e elegante, brincalhão e irônico, autoritário, severíssimo, um observador sempre alerta, também deixou uma marca notável na minha vida. Nasceu em 1902, em Frankfurt do Meno, filho de hebreus comerciantes. Estudou arte e foi aluno do pintor expressionista Max Beckman.  No ápice do seu crescimento profissional, recebeu do Nazismo a proibição de exercer sua profissão de artista, o que lhe era uma espécie de condenação à morte. As coisas estavam mudando na Alemanha. Ele propôs a todos os seus parentes (num tempo em que isso era ainda possível) que se mudassem para a Suíça e comprassem terras, mas ninguém o escutou, e ele fugiu sozinho para a França. Minha avó foi fuzilada em algum lugar no bosque, não sei onde, e os parentes desapareceram todos, arrastados pela patológica loucura genocida alemã.

 

Em 1944, depois de mirabolantes fugas, traumas psíquicos e físicos, Leo Maillet (assim o meu pai passara a se chamar) foi ajudado por padres protestantes, freiras e partidários franceses, a refugiar-se na Suíça. Suas histórias de guerra e perseguição me eram contadas durante os nossos longos e tranqüilos cafés da manhã, à mesa da cozinha. Essas histórias foram o único contato com o mundo hebraico que eu tive. Naqueles anos, enquanto eu trabalhava assiduamente, muitos dos meus conterrâneos viajavam pelas Índias e Américas, verdadeiros mochileiros. Eu os invejava um pouco, mas meu percurso seria outro, que não podia imaginar, na época. Realmente, não imaginava que, duas décadas após, eu iria sulcar o oceano e viver no equador brasileiro, em lugares quentes, com territórios virgens e sem confins, no qual ainda sobrevive "entre as linhas" e entre a onipresente civilização contemporânea, a suave doçura da cultura ameríndia. Naquele tempo, as minhas viagens, na maior parte a trabalho, se limitavam a Mitteleuropa, Praga, Londres, Viena, Paris, Budapeste, Berlim, Munique. A chegada do meu irmão Nikolaus, que também foi morar com nosso pai, aliviou-me a carga de trabalho, pois ele nos prestava boa ajuda. Assim, com o auxílio de uma bolsa de estudo, recomecei a estudar em Milão, na Academia de Belas Artes de Brera.

 

Foram anos felizes. Eu me alegrava em passar os dias na Biblioteca Braidense ou Ambrosiana. A cidade pululava de eventos e galerias de arte. Era aproximadamente a metade dos anos oitenta. A minha arte estava crescendo, porém com uma formação às avessas, iniciando com as sofisticadas artes da comunicação visual, projetada no expressionismo das vanguardas históricas, por intermédio de Leo, e, ao final, com o estudo do desenho clássico na academia, onde o professor Beppe Devalle ainda praticava a cópia do modelo vivo. Eu estava estudando os mestres renascentistas e os antigos, num momento em que a pintura e o desenho eram suprimidas pelo mercado de arte, em virtude das novas linguagens e tendências contemporâneas, mas amava desenhar e continuei esta minha pesquisa poética: tradicionalíssima, por um lado, e, paradoxalmente, pelo período histórico no qual eu estava vivendo, anticonformista. O auge deste período se completou com o meu matrimônio com uma elegante mulher italiana, literata e artista, Sabrina Rovati.

 

Meu pai Leo morreu e eu tive que voltar para a Suíça, para organizar o seu loft. O meu trabalho sobre a figura humana e o desenho continuava impávido, também no Cantão Ticino, na casa paterna, onde eu morava. A minha poética, ao longo dos anos, concentrou-se sempre mais sobre o retrato, uma paixão pessoal do passado. Trabalho com modelos vivos, mas na cópia sempre procurei ir além da mera fisionomia, além da pele, ou da aparência do retrato, pois é ali que, para mim, o trabalho se torna interessante. Quando retrato, esqueço totalmente do sujeito, da figura, e me deixo balançar dentro das formas e das cores que o meu olhar percebe, mantendo a fidelidade fisionômica do retratado, surgindo um realismo expressionista com uma conotação objetiva.

 

O meu casamento com Sabrina estava se desfazendo. Mas, se uma porta se fechava, um "novo mundo" se abria. Eu escutava bossa-nova e praticava a biodança, com Rolando Toro. Então, fui convidado a participar de um congresso de biodança na Bahia e, assim, fiz minha primeira viagem à América do Sul.

 

Fiquei encantado com Salvador, aquele pedaço da África importado à força, e por sua gente. Eu deveria permanecer três semanas, mas fiquei cinco meses. Aprendi a língua por jogo, com um pequeno vocabulário, repetindo os sons das pessoas, falando durante os meus longos trajetos em ônibus. Fui recebido, não como turista, mas como se sempre tivesse feito parte daquele lugar. Uma amiga ceramista, Rita Vinhas, me empurrava para esculpir a argila, mas eu recusava a oferta: eu era somente pintor. Um dia, provei e, por encanto, consegui, sem fadiga, modelar os alineamentos fisionômicos de um rosto. Eu me dei conta que, sabendo desenhar, bastava copiar as formas tridimensionais que via. Aliás, a operação era mais simples que pintar, porque não devia conceitualizar o trabalho para rendê-lo bidimensional. Assim, descobri-me também escultor. Nesta "fase tropicalista", conheci, na Suíça, a minha atual mulher Márcia, brasileira de Curitiba, que é a primeira pessoa, em três gerações de emigrantes vênetos originários de Agordo, que retornou à Itália. Em 1996, nasceu a nossa filha e isso me trouxe impulsos inovadores e vitais em todos os efeitos.

 

Os brasileiros, quando vão ao exterior, ou não querem mais retornar, ou, depois de um tempo, sentem bater a "saudade brasileira". Foi o caso de Márcia. Como eu também tinha vontade de mudar de ambiente, para ter mais tempo disponível para as minhas pesquisas artísticas, em 2001, mudamos-nos para o Nordeste do Brasil, no Ceará.

 

Em Fortaleza, as minhas obras sofreram a clássica metamorfose estilística que contaminou muitos pintores que se mudaram para países quentes, tropicais ou equatoriais. A pincelada recebeu calor e cor. Como não sou um gestual instintivo, mas um controlado, eu pondero cada linha, gosto de aproximar conscientemente cores complementares, com ênfase em pigmentos fluorescentes, observo as refrações luminosas sobre a epiderme, sem falsear no realismo exagerado. Em parte, estou retornando às minhas origens expressionistas, mas sem distorcer as formas como faziam os "Brücke". Nesta melting-pot equatorial, retrato ameríndias, caboclos, cafuzos, mulatos e mestiços, nos quais não se consegue mais reconhecer as origens pela nova fisionomia deles, que se formou ao longo dos séculos. Freqüentemente, penso em Paul Gauguin e suas haitianas, com roupas floridas. As minhas ameríndias vestem jeans e têm celular. No rosto, um olhar que parece deixar transparecer a triste história de assimilação, onde não se vê nada daquela vida pura e alegre das florestas, nem a memória daquilo que existiu.

 

As minhas esculturas de figura inteira e tamanho real possuem um background ligado à cerâmica dos anos 1400, lombarda e toscana, mas não só. Quando trabalho, quer queira ou não, uma multidão de bonecos estão presentes na minha memória visual: mármores de Nicoló Pisano, aqueles de Fídia ou do período arcaico, um Nicolaus Gerhard von Leyden, Gil de Siloé, os anônimos do Duomo de Colônia ou de Naumburg, e outros, ainda. É quase impossível me afastar mentalmente desses refluxos de imagens. Ao contrário do que acontece na pintura, na terracota, reencontro a doçura e a harmonia, talvez devido à maleabilidade do material e, seguramente, em razão das transposições de atmosferas locais, ou de um rosto brasileiro, no qual, costumeiramente, se misturam fisionomias de populações provenientes dos quatro continentes. Para um artista figurativo, o Brasil é uma grande fonte de inspiração, e não apenas isso. É um país em plena evolução, sob todos os aspectos. Nas atitudes de vida simples, não existem esquemas fossilizados de costumes milenares, tudo é recebido com abertura.

 

Não obstante, sob outros aspectos, é também difícil viver aqui. Ainda se sentem e se vêem chagas abertas. Em todas as partes, na paisagem e entre as pessoas, floresce um trauma profundo, pois este país sofreu um pulo, em seu processo de sesenvolvimento, de milhares de anos. De uma cultura de caçadores e colhedores, o "planeta verde" foi lançado ao futuro. Faltaram os entremeios das lentas passagens culturais que uniram um período histórico a um outro e da Europa, com certeza, não chegou humanidade, cultura ou aquela consciência social que hoje, depois de muitas lutas, evoluiu em vários países ocidentais.  Penso que muitas tribos de ameríndios, originários do Brasil e das Américas, vivem com uma visão e concepção biocêntrica e holística da vida (apesar de, ainda hoje, serem considerados, por muitos, como sub-humanos). Eles possuem uma atitude ecológica em relação ao planeta que nós, contemporâneos, apesar da "civilização", "instrução" e tecnologias, não conseguimos praticar!

 

Há uma insensibilidade geral pela vida cultural passada deste país e, em conseqüência, por muitas formas sensíveis de expressão. Para um artista sobreviver do próprio trabalho é quase impossível, na maior parte do território brasileiro. Mas não se pode pretender que seja diferente: seria impossível importar épocas de 3000 anos de mudanças, artísticas e humanas, como aconteceu na bacia do Mediterrâneo. Mais que isso: seria injusto pretendê-lo, pois cada novo país deve sulcar os seus campos*.

 

A música brasileira encontrou linguagens novas e inéditas no século XX, por precisas razões históricas. Nas artes visuais, também existiram e existem artistas excelentes, mas não conheço muitas trajetórias artísticas independentes ou verdadeiros movimentos, somente "ismos", fortemente condicionados à cultura artística ocidental dominante. Mas estou convencido de que aparecerão novas formas de expressões de arte tipicamente brasileira, logo que o país adquirir sensibilidade e igualdade social. A arte visual, para ser criada, qualquer que seja a linguagem utilizada, requer investimentos. Precisamente: a arte e a cultura podem se desenvolver somente onde existe bem-estar individual e social. A precariedade e as misérias na existência material foram sempre inimigas das artes, da cultura e da imanência de hoje se estar neste planeta.

 

 

 

 Fortaleza, agosto de 2004

 

 

*Sou consciente de que uma evolução é praticamente impossível, enquanto os países do terceiro mundo, a América do Sul e, sobretudo, a África, continuar aprisionados pela mordida aniquiladora dos débitos e relações econômicas devastadoras ("pseudoajuda") com os países, bancos e sociedades ao norte do Equador, nos quais somente estes últimos tiram vantagens.

 

 

 

(Texto escrito para o Jornal Kislansky Atelier de Escultura, editado por Israel Kislansky)