O
específico da Arte não é a criatividade.
A
criatividade exerce-se em qualquer ramo de atividade — na
filosofia, na ciência, no comércio, na indústria, na política e até no
crime, até na guerra — enfim, em tudo podemos aplicar nossa
criatividade. Segue-se que o ato não é intrínseco ao ato artístico,
assim como o ato artístico não é intrinsecamente um ato
criador.
Também não é a expressão
o específico da Arte.
Continuamente nos
estamos expressando no comum de nossa vida cotidiana — seja um
gesto ou uma palavra, nossas reações, nossas preferências, seja um rito
de dor, seja um riso de alegria — tudo isto se expressa sem que se
faça Arte.
Tão
pouco a beleza é o específico da Arte.
Para
a maioria das criaturas a estética está tão intimamente ligada à idéia
de Arte que lhes parece impossível existir a Arte sem beleza. De certo
modo é verdade — e teremos de ver adiante o porquê — mas, seja
como for, o fato é que existe a beleza sem a Arte. Não é portanto a
beleza o específico da Arte. Fora desta, ela também existe, e em alto
grau, como na natureza, por exemplo. Qual o artista sincero que já não
tenha suspeitado de si para si que seu trabalho nem chega aos pés do
mais trivial e insignificante "trabalhinho" da natureza? Além disso,
deixando-se de lado essa natureza do mundo a nossa volta, todos os
setores, que poderíamos chamar de mentais, ou espirituais, possuem sua
estética — como a religião, por exemplo, ou até a matemática. Ao
simples resolver de um teorema podemos ser surpreendidos por uma
repentina invasão da emoção estética. A estética é absolutamente
imprevisível: não é preciso baixar às aberrações do gosto perverso,
basta citar o caso clássico do médico que consegue achar "belíssimo" um
tumor. Sim, a estética é realmente imprevisível. Mas o fato é que nem
esse tumor, nem a religião de um santo, nem a lindeza de um teorema são
Arte — como também não pode ser considerada Arte toda a
magnificência da natureza.
Mas,
ao lado da estética, há uma outra idéia que também, na mente de muitos,
se funde à idéia de Arte — e chegamos assim à questão da maestria.
Também esta não é o específico da Arte.
Trata-se de uma idéia
antiga, mas que perdura até hoje no geral das mentalidades — a
Maestria! — Arte seria aquilo que é feito a primor, com invenção,
com capacidade, com perfeição — não importa o que — qualquer
coisa; desde mesas e cadeiras até pontes de estrada de ferro, toda
espécie de artefatos, toda obra bem planejada, bem executada, bem
concluída, enfim, a coisa feita magistralmente, inclusive as chamadas
"Belas Artes", que seriam então a maestria aplicada à obtenção da
beleza. Mas ao lado das "Belas Artes", havendo sempre espaço para a
concepção da Arte como sendo um conjunto de artes — mesmo no caso
de coisas simplesmente bem urdidas: a arte de enganar, a arte de
persuadir, a arte de ganhar dinheiro, e assim por diante, a arte disso,
a arte daquilo, a arte daquiloutro. Não importa! Arte culinária, artes
gráficas, arte do diabo — tudo arte! — desde que conseguido o
golpe de mestre.
Mas, desta forma, note-se que o
ARTÍFICE virá para absoluto primeiro plano enquanto que o ARTISTA
propriamente dito recederá para um plano inferior, obscuro e indefinido.
Ora, foi para resgatar justamente esse ARTISTA que tentamos agora uma
maior especificação do seu campo de ação.
A
teoria que concebe a Arte segundo as qualidades do ARTÍFICE (a Arte como
ato de maestria) é uma teoria qualitativa da Arte. Maestria não é
"Algo", é qualidade de "Algo". Teríamos então que o específico da Arte
residiria no "como" e não no "o que". Nesse caso, porém, tanto
poderíamos dizer que está naquilo realizado com paixão, ou com furor, ou
com denodo, ou com audácia (como aliás também se diz). Seria assim uma
outra qualidade: a expressão — entrando para o lugar da maestria
como indicatriz da natureza específica da Arte. Mas no lugar da
expressão, por sua vez, poderíamos ter ainda uma terceira qualidade (um
terceiro "como"): a criatividade — e, no lugar da criatividade; a
beleza — e assim ao infinito... Não. O específico da Arte tem de
ser outra coisa. Tem de ser algo só dela.
Durante muito tempo, de
fato cogitamos se a Arte não seria mesmo esse fenômeno antes adjetivo
que substantivo. Tal ordem de idéias é estimulante porque, dando-se o
fenômeno artístico não no âmbito da dedução mas no da apreensão
sensível, e, sendo a apreensão sensível a função que detecta diretamente
a qualidade, é natural e mesmo tentador irmos por esse caminho abaixo e
de vez tratarmos de batizar a Arte como fenômeno adjetivo —
pautando desarte seu próprio ser no diapasão das qualidades que
eventualmente vá apresentando.
Esta
é, aliás, no geral, a atitude da crítica. Debruça-se esta sobre o VALOR,
ali se concentra, ali queima pestanas chegando, neste afã, por vezes, a
atribuir principalmente a valores um tanto extravagantes apenas
paralelos à Arte, como por exemplo a tendência contemporânea de
emprestar uma importância exagerada ao valor histórico de uma obra de
arte.
Mas a crítica é assim mesmo.
Valorar é legitimamente sua função, é de sua natureza discutir,
descobrir, explicar, comentar, analisar qualidades. Porém, seria apenas
enquanto se limitasse a comentadora dessas qualidades — como
dizendo: "Tal obra é boa Arte por tais e tais qualidades; boa por
criativa; boa por expressiva; boa por bela; boa por magistral, etc...".
Mas se a crítica, extrapolando suas considerações, feitas apenas a nível
qualitativo, tenta aplicar esses mesmos critérios qualitativos ao exame
do próprio ser do fenômeno artístico, arrisca-se então a enredar-se em
sérios problemas de interpretação. Se a crítica julga não artística uma
obra por não bela, não magistral, não criativa, não expressiva, etc...
ou não histórica — então está tacitamente afirmando serem essas
tantas qualidades o próprio ser da Arte.
E
nesse ponto novamente nos encontramos ante o velho problema do Bom e do
Ruim em relação ao Ser e ao Não ser, pois não se pode negar que também
em matéria artística somos quase que instintivamente impelidos a
considerar mais a qualidade que o fato. A moral da história, também em
Arte, é um pólo magnético que nos orienta, é ela que dá sentido às
coisas em qualquer campo. Sem ela mal nos poderíamos orientar perante ou
dentro de qualquer fenômeno. Poder-se-ia ter como política uma má
política? E seriam de fato relações as más relações? E uma má Arte?
Poderá ser sentida como Arte? Dificilmente, é claro! Quem em sã
consciência o faria?
Porém há o outro lado da
vertente. Uma filosofia que assim concebe a Arte como Qualidade é a mais
natural. Sim, mas também levará fatalmente a um desarraigamento em
relação à natureza intrínseca do fenômeno, e a uma confusão entre este e
as qualidades extrínsecas que reflete. Já ficou colocado que essas
qualidades extrínsecas pertencem à vida e ao mundo em geral e não à Arte
em particular — coisa que nos obriga a aceitar, por exemplo, o fato
aparentemente absurdo, mas verdadeiro, que nosso grandioso sistema
solar, em toda a sua magnificência, não seja Arte, e que a mais
insignificante das obras de Arte o seja.
Esse
simples fato, dito a alguns iniciados, naturalmente não causa espécie
alguma, mas dito à maioria dos indivíduos, principalmente a leigos,
causa grande espanto e uma espécie de desarvoramento indefinido. Nossa
época, essencialmente científica, carece de um consenso sobre Arte. A
Arte tornou-se o elemento recessivo de nossa época, uma terra de
ninguém, assim como na Idade Média o elemento recessivo e a terra de
ninguém eram Ciência. Ao obscurantismo científico da Idade Média
corresponde o obscurantismo artístico da Idade contemporânea. Mas, mesmo
assim, ou por isso mesmo, é preciso obter alguma luz, alguma
estabilidade nas idéias, muito embora (sendo o campo artístico um campo
absolutamente livre) seja sempre perigoso estabelecer ali normas rígidas
que, desastrosamente, possam transformar-se em algo parecido com leis.
Mas, ao nos iniciarmos no estudo da Historia da Arte, cremos que seja
necessária, ao menos provisoriamente, uma filosofia capaz de investigar
mais à puridade justamente essas características que distinguem a Arte
dos outros fenômenos naturais. Sobretudo o neófito — seja como
aluno ou simples interessado — ressente-se da indefinição nesse
ponto, debatendo-se ele entre mil vozes que lhe dizem de tudo sobre o
assunto.
A
indefinição, em qualquer campo, é, ou pode ser, desastrosa. No caso da
Arte, a conhecida ignorância, incompreensão, o desinteresse a seu
respeito reinantes hoje na sociedade são devidos, em grande parte, à
indefinição. Idéias irrefletidas e opiniáticas que, gerais e esparsas,
circulam ao sabor das modas e dos caprichos, bombardeiam de todos os
lados o neófito, confundindo-o e levando-o a um penoso estado de
perplexidade. Diante do estudante de Arte erguem-se verdadeiros títeres
ideológicos, impenetráveis, exigindo valores sempre intangíveis que,
embora impostos a todos, parecem estar reservados exclusivamente ao uso
dos "Famosos"; circunstância essa que impede o estudante de incorporar
uma idéia sólida e clara do fenômeno artístico, uma diretriz estável a
que possa referendar-se internamente, tornando assim possível sua
independência.
Como
professores de Arte, por exemplo, têm-nos vindo às mãos estudantes
completamente paralisados e esterilizados pelo que chamaríamos de
"síndrome de criatividade". Não produzem, não desfrutam mais, estiolados
que estão em seu sagrado horror ao "Déjà fait". Para eles a Arte
tornou-se Inovação por excelência; o passado está fechado e cimentado e
a Arte do presente monta-se sobre uma constante ruptura com o que foi.
Segue-se que a Arte é História. A História e sua suposta constante
mutação; no que o Artista é transformado em um ansioso caçador de lances
inéditos, sempre fiscalizado pelo historiador que lhe irá marcando os
pontos para o vestibular da imortalidade.
Essa
situação, como é fácil imaginar, tende a ser neurotizante. Isto porque a
Criatividade, que é um valor extrínseco da Arte, foi tomada como
natureza intrínseca, resultando daí um embaçamento da consciência; o
mesmo se dando com a expressividade quando é também tomada como
intrínseca e não extrínseca ao fenômeno artístico. Nesse caso observa-se
um fenômeno curioso, muito comum há algum tempo atrás, que era, não se
ficar paralisado, como na "síndrome de criatividade", mas ficar-se
embotado, não se podendo reagir a não ser sob violentos impactos que nos
abalassem os alicerces, sendo assim a Arte transformada numa espécie de
raio fulminante cujo fim precípuo seria o de
desacomodar.
Temos assim que a
confusão estabelecida entre o que é Arte e o que seriam suas eventuais
qualidades, tem sido a maior causa da Babel em que gradualmente foi
afundado a teoria da Arte já desde o moralismo estético de um Diderot ou
de um Winkelmann em fins do séc. XVIII, quando esses autores abriram
fogo contra o Rococó alegando ser este estilo "por demais frívolo". De
lá para cá, então, carregou-se tanto nos ditos critérios qualitativos
que, em alguns casos, chega-se hoje a negar, através deles mesmos, pura
e simplesmente, o princípio da Arte, em favor de qualidades que já nada
têm em comum com esta — como no caso da moderna tendência crítica
que pretende exigir da Arte que seja científica! De onde se segue que o
artista em tal regime é levado a renegar o rito próprio de seu trabalho
para adotar toda uma série grotesca de cacoetes científicos — como
atirar-se em pesquisas e na realização de experimentos, ou até a
apresentar relatórios, redigir projetos ou ater-se a propostas de
trabalho.
Vendo-se pois ante a
confusão inextricável e infinita que uma concepção qualitativa da Arte
gera no estudante, vendo-nos também ante o desânimo e apatia conformista
em que jaz o público em geral, devido a essas mesmas concepções, fomos
levados a dar de mão de uma vez por todas, à visão adjetiva do fenômeno
artístico para adotarmos francamente a visão
substantiva.
Mas
em que consiste então este Próprio e Único da
Arte?
O
Próprio e Único da Arte, aquilo que lhe é específico, aquilo que,
digamos, confunde-se com ela é, ao nosso ver a FICÇÃO. A FICÇÃO não
existe fora da arte. Não existe nas "outras coisas". As "outras coisas"
ou são, ou não são. A Arte (a ficção) é sem ser e, sem ser, é. Fazer
Arte é fazer com que seja aquilo que não é; e fazer com que não seja
aquilo que é. Toda atividade artística atua sempre nessa região média
entre o ser e o não ser.
Não
se trata de fantasia. A fantasia é um fenômeno diverso, como que o
inverso da ficção. Embora a fantasia se dê unicamente no campo mental,
está profundamente comprometida com a realidade, por um lado, e,
por outro, é arbitrária, ou seja: não está comprometida com a
verdade — ao passo que a ficção, podendo dar-se inclusive no
campo material, só que de forma totalmente fictícia, no entanto nos
remete diretamente ao próprio âmago da verdade. Sabemos, por exemplo que
matar alguém em fantasia não nos exime do peso da culpa, ao passo que o
mesmo ato, "praticado" ficcionalmente é algo perfeitamente inocente,
algo como que pairando suspenso na isenção da
hipótese.
Costuma-se dizer que a
Arte é uma mentira, "artes do diabo" é o dito comum aludindo-se às
artimanhas do Grande Mistificador. Mas a Arte não é um engodo, ou, ao
menos, não deve sê-lo. A própria consciência do processo artístico pede
que, o tempo todo, se saiba não ser realidade aquilo que ali se passa. A
irrealidade, na Arte, não é mentira, é um dispositivo, um dispositivo
inerente ao próprio ser da Arte, e graças ao qual nos vemos libertados
da contingência dos fatos sem que com isso percamos a sua essência. A
essência dos fatos (ou Verdade) sem a contingência (ou Realidade) —
a Arte é verdade liberta de realidade.
Temos então que Verdade
não é qualidade mas atributo do próprio ser da Arte, assim como
"mentira" ou irrealidade não é defeito mas também atributo. A Ficção
pressupõe o Vero e o Irreal ao mesmo tempo. Podemos observar: a Arte
esvai-se, desaparece, assim que resvale da verdade ou que toque o real.
Entre dois perigos a Arte há de atuar, há de mover-se, há de
viver.
Para
dar uma idéia mais concreta do que acabamos de expor, tomemos o exemplo
de um ator que está representando aí no palco o papel de um ébrio. Ora,
para que a Arte subitamente desapareça, ou nem chega a existir ali,
bastam dois casos: 1) se o ator não lograr a nota essencial que
caracteriza a embriaguês e — 2) se ele estiver realmente
bêbado.
Outro exemplo: tomemos
desta vez, para não citar nenhuma obra em especial, esse nu hipotético
que, também hipoteticamente, está, digamos, exposto na Galeria Uffizzi.
Temos uma escultura, é a figura de uma mulher; ali seu sorriso, ali sua
delicada forma, sua essência feminina, sua graça anatômica, sua sutil
presença; mas a mulher mesma não há, não há a mulher real. Ela é toda
personagem; aí nua, de mármore, como uma deusa... e está feita a
Arte!
No
caso do ator, tivemos um exemplo de como a Arte pode repentinamente
escapar de nossas mãos. No caso dessa estátua, temos um de como ela
surge. "Oh, como são vivas essas formas!", "Como vibram essas
carnes!" — são interjeições costumeiramente ouvidas nos museus.
Está ali a plaquinha indicando o nome da figura — trata-se de uma
deusa! Mas, de fato mesmo, não há ali deusa nem carnes nem nada, há a
estátua. Porém há também a personagem, há a verdade das formas, há toda
uma sabedoria que se alevanta como uma miragem e, ao mesmo tempo, não há
nada do que aí está. Há apenas o reflexo. O próprio mármore de que é
feita a escultura lá não existe mais como mármore real, foi absorvido no
todo da ficção. Ele aqui imita as formas da carne, toma seu lugar, e,
como material nobre, acentua ficcionalmente aquele aspecto da mulher que
é deusa, não simplesmente mulher. Em Arte, a matéria empregada faz parte
da ficção.
Outro aspecto que também
faz parte da ficção é o realismo. Ao contrário do que tantos temem, o
realismo não faz como que a obra escape da ficção e caia no real. Seria
de fato absurdo dizer-se que a realidade é realista. Só o não real pode
ser realista. Notemos que o escultor de nossa estátua tratou com acurado
realismo a sua forma; e já ficou dito o quão estas formas são uma
perfeita miragem. Teríamos o real, nesse caso, só se o escultor, em vez
dessa escultura tão realista, expusesse ali, pura e simplesmente, uma
mulher, ou uma réplica que fiel e apenasmente a reproduzisse — não
imitasse — com o que naturalmente iria causar sensação; mas a
sensação em si não basta para que obtenhamos Arte. Uma mulher real em
vez da escultura de uma mulher estaria no caso daquele ator de que
falamos, que em vez de representar a embriaguez, estava bêbado de
fato.
Nada
temos contra as sensações assim diretamente provocadas pela natureza. Ao
contrário. Achamos que as maravilhosas formas de nossa modelo são tão
adoráveis nela em carne e osso quanto no mármore da estátua, ou até
ainda mais apreciáveis. A Arte não é um refúgio para nosso escapismo ou
para que nos elevemos acima da realidade. A Arte (a ficção) não está
acima. Ela é simplesmente um recurso de que dispomos para que através de
uma estratégica eliminação da contingência do real, possamos mais
livremente penetrar o âmago desse mesmo real. De fato, uma vez
estabelecida a natureza específica da Arte, é preciso que consideremos
outrossim que esta não pode prescindir das qualidades comuns à natureza
de todas as coisas. A natureza é superior à Arte. A natureza é total,
sintética, dinâmica; a Arte parcial, analítica, estática. Seletiva por
excelência. A Arte penetra e fixa um aspecto da verdade segundo um ponto
de vista — ao passo que a natureza, indiscriminada, é aberta,
abrangente, contém e processa ao mesmo tempo todos os pontos de vista.
Daí a grande utilidade da Arte. Caracteristicamente limitados,
precisamos da Arte para que através de uma supressão da realidade
totalizada da natureza, possamos entendê-la e senti-la do nosso ponto de
vista, sem contudo faltar-lhe à verdade. A arte toma do todo uma parte e
dá a essa parte, graças a um truque (a ficção), uma conotação de
todo.
Temos então um segmento
da verdade que vive sua totalidade própria, fechada e separada da
totalidade aberta do real. Não há obra de arte aberta. A concepção de
"obra de arte aberta" é justamente uma dessas falácias de uma época de
apogeu científico e de obscurantismo artístico, e que portanto reluta
por todos os meios em aceitar a natureza ficcional característica da
Arte como fenômeno. Como fenômeno, a Arte é tipicamente fechada, vive
seu mundo próprio, como um universo entre parênteses, que como tal é
obviamente fixo e inalterável. Toda dinâmica ali existente dá-se apenas
interiormente, no interior do dado ficcional estabelecido, que, uma vez
concluída a obra, segue seu caminho próprio, separado dos caminhos dos
dados da realidade exterior que, deste ponto em diante, não mais
interferem.
É
bem verdade que a Arte, antes de ser um fenômeno cultural, é um fenômeno
natural como qualquer outro. Um fenômeno natural, espontâneo e
necessário — e, nisso, a Arte é também parte do real. Como
fenômeno, a Arte tem também sua contingência. Mas a Arte como Arte,
contém apenas a miragem da contingência. A arte é um fenômeno reflexo.
Daí talvez tê-la Aristóteles chamado de "imitação". Evidentemente, como
todos sabemos, essa definição de Aristóteles da Arte como imitação da
natureza é o que há de mais contrário às concepções modernas de Arte;
mas isto mais porque geralmente se confunde a imitação com a reprodução.
A reprodução é uma simples duplicação do real — ao passo que a
imitação é o real que justamente perde sua realidade por estar apenas
refletido em outro real que não lhe é próprio. Lá ficou sua verdade
despida de realidade e travestida nesta outra "realidade" fictícia que é
a Arte, ou como é o sonho, como poderíamos dizer também, ou que é a
ficção, ou que é a imitação, em suma: que é o
ser-reflexo.
E é
desse ser-reflexo que emana então este encantamento todo especial, todo
particular, este interesse próprio, característico, íntimo e profundo,
que é o interesse que a ficção provoca, típico do espetáculo artístico,
e diferente do interesse suscitado por qualquer outro espetáculo real,
por mais momentoso que seja. Um macaco que ponha a imitar pessoas no
zoológico, pessoas que ali estão a observá-lo, imediatamente provocará
nesses circunstantes uma mudança de interesse. Surgirá ali uma platéia.
Ver-se-á o macaco de repente, como outros olhos, ver-se-á nele o homem
refletido — não como uma réplica mas como algo que surge em outra
coisa, algo subitamente transportado para o mundo livre e hipotético da
irrealidade. O que interessa doravante nesse macaco não é nem o
macaco-homem nem muito menos o homem-macaco, é o macaco-ator, esse que,
embora em nível animal e rudimentar, e sem ser homem, de repente,
consegue agir momentaneamente como se o fosse — assim como aquele
ator, que em outro nível, sem estar bêbado, age momentaneamente como se
o estivesse, ou como o mármore da estátua que, sem ser carne, fascina
ficticiamente como se carne fosse.
É o
fascínio do ser-reflexo que nos atrai de maneira particular. Atrai e
envolve. Já na natureza bruta esse ser se insinua. Qualquer reflexo dá
de si um chamamento situado alhures perto da emoção artística. É o sol
refletido nas folhas de uma árvore, por exemplo, (para não falar de um
vitral) que nos atrai bem mais que o próprio sol, cuja ígnea realidade,
aliás, nem pode ser encarada diretamente. É a lua ou qualquer outra
coisa refletida na água. É o brilho sedutor dos objetos polidos. Depois
são os galos que respondem um ao outro, prenunciando os artistas que
responderão também um ao outro no transcorrer da história. Depois o
homem com sua misteriosa querência pela Arte, que vai desde as formas
mais simples, como a criança que brinca com bonecas, até as formas mais
sofisticadas, como Shakespeare fazendo seu teatro. E isso sem dizer de
todos nós, artistas ou não, que fazemos todos Arte enquanto dormimos e
sonhamos.
Os sonhos estão na base de todo esse complexo imitativo que
podemos chamar de ficção. A Arte nada mais é senão um sonho que, em
estado de vigília, é projetado sobre alguma matéria. A Arte participa
das mesmas fontes-verdade dos sonhos, e participa (ipsis
literis) dos mesmíssimos processos ficcionais ao elaborá-las. Por
conseguinte quando falamos da Arte Grega, por exemplo, estamos falando
na verdade é do Sonho Grego; ou quando falamos de Arte Medieval, estamos
na verdade é falando do Sonho Medieval, e assim por diante... A história
da Arte não é a história da humanidade, ela é a história dos sonhos da
humanidade.
(Matéria cedida gentilmente por Israel Kislansky, escultor e
editor do
Jornal Kislansky — Atelier de Escultura)
José Antônio Van
Acker era pintor e escultor. Falecido no ano 2000,
deixou obras e textos como este. Mais informações: atelierkislansky@uol.com.br