Dream and Charcoal
And then she said: I have gone toward the light and become beautiful.
And then she said: I have taken a couple of wings and attached them
to the various back- parts
................................................................................................................[of
my body.
And then she said: all the guests are coming back to where they
were and then talking.
To which she said: without the grasp-handle, how would you recognize
my nakedness?
To which she replied: without nothing is when all things die.
Which is when she had a wild battle with the twigs.
Which is when the charcoal was passed from her body to mine.
Which was how she rose into the heavens, blinding the pedestrians.
Which was how our union was transposed into a dark scribble.
Which became the daughter calling, calling my name to wake me.
Sonho e carvão
E então ela disse: tomei o rumo da luz e tornei-me linda.
E então ela disse: peguei um par de asas e as colei em várias
partes das minhas costas.
E então ela disse: todos os convidados estão retornando para seus
lugares, e conversando.
Para o que ela disse: sem seus punhogarras, como reconhecerão
minha nudez?
Para o que respondeu: sem nada é quando todas as coisas morrem.
Que é quando ela teve uma árdua batalha com os galhos.
Que é quando o carvão passou do corpo dela para o meu.
Que foi como subiu aos céus, cegando os caminhantes.
Que foi como nossa união transpôs-se em um rabisco negro.
Que se tornou minha filha chamando, chamando meu nome para me
acordar.
(Tradução de Mauro Faccioni Filho)
Telescope with Urn
The image of the galaxies spreads out like a cloud of sperm.
Expanding said the observatory guide, and at such and such velocity.
It is like the idea of the flowers, opening within the idea of
the flowers.
I like to think of that, said the monk, arranging them with his
papery fingers.
Tiny were you, and squatted over a sky-colored bowl to make water.
What a big girl! cried we, tossing you in the general direction
of the stars.
Intently, then, in the dream, I folded up the great telescope
on Mount Horai.
In the form of this crane, it is small enough for the urn.
Telescópio com urna
A imagem das galáxias se dispersa como uma nuvem de esperma.
Expandindo, disse o guia do observatório, em tal e tal velocidade.
É como a idéia das flores, se abrindo dentro da idéia das flores.
Gosto de pensar nisso, disse o monge, arrumando-as com seus papelosos
dedos.
Você era pequena, e agachou-se numa bacia azul celeste para urinar.
Linda menina! gritávamos, jogando você direto para as estrelas.
Então atentamente, no sonho, dobrei o enorme telescópio no Monte
Horai.
Nesta forma de grua ele cabe justo numa urna.
(Tradução de Mauro Faccioni Filho)
II. NOTAS BIOGRÁFICAS E PUBLICAÇÕES
........Araki Yasusada nunca publicou
durante a vida. Nasceu em 1907 na cidade de Kyoto, Japão, tendo
se mudado com a família para Hiroshima em 1921. Freqüentou a Universidade
de Hiroshima durante os anos de 1925 a 1928, porém esporadicamente,
pois precisou trabalhar nos correios em tempo integral para ajudar
o pai, que era doente. Sua intenção era formar-se no curso de
Literatura Ocidental. Em 1930 casou-se com Nomura, sua única esposa,
com quem teve duas filhas e um filho. Em 1936, por obrigação,
passou a fazer parte das Forças Armadas Japonesas. Sua filha mais
nova, Chieko, e sua esposa morreram instantaneamente na explosão
da bomba atômica, em 6 de agosto de 1945, lançada pelos americanos
e que resultou na desintegração do centro de Hiroshima e matou
cerca de 300 mil pessoas, um terço da população. Sua outra filha,
Akiko, sobreviveu ainda por quatro anos, até falecer devido a
doenças provocadas pela radiação. O filho, Yasunari, estava com
parentes em outra cidade e sobreviveu. Yasusada veio a falecer
em 1972, após longa luta contra o câncer.
........No Japão as testemunhas desses ataques
atômicos são conhecidas por hibakusha. Tais fatos marcaram
a produção literária de Yasusada, que já fazia parte de grupos
literários de vanguarda antes da II Guerra, tais como Soun, e
posteriormente do círculo experimental Kai, de renga
(poema composto por um grupo de poetas).
........Em carta de 1967 que escreveu
para seu colaborador de renga, Akutagawa Fusei (publicada
em American Poetry Review, julho/agosto de 1996), observa
entusiasmado sua descoberta de Roland Barthes, assim como do poeta
americano Jack Spicer, que passaram a ser suas influências. Nos
seus trabalhos experimentais há ainda hai-cais inspirados em Paul
Celan, o sobrevivente do Holocausto nazista, que era lido e debatido
desde a época do seu grupo de vanguarda Soun.
........Os escritos de Yasusada foram descobertos
por seu filho apenas oito anos após sua morte, em 1980. Estavam
reunidos em quatorze cadernos, onde se misturavam poemas, cartas,
recordações e anotações variadas. Esses escritos foram entregues
a Tosa Motokiyu, que junto a outros dois tradutores, Okura Kyojin
e Ojiu Norinaga, todos eles também de Hiroshima, fizeram as versões
em inglês. Essas versões foram encaminhadas para o poeta americano
Kent Johnson, professor de inglês e espanhol no Highland Community
College de Freeport, Illinois, que passou a ser o procurador literário
de Yasusada nos Estados Unidos¹. A partir de então seus poemas começaram a aparecer
em diversos periódicos, como os americanos Grand Street, Conjunctions,
Aerial, First Intensity e o inglês Stand, e
em suplemento especial do American Poetry Review, em
1996. Ainda não publicado em livro até aquele momento, a história
e os poemas de Yasusada chamaram a atenção e passaram a entusiasmar
críticos e poetas, especialmente devido ao seu estilo ligado à
Language Poetry, à New Sentence, à influência
que recebeu da geração Beat, à sua experiência única
de testemunha do horror atômico e também ao mistério que envolveu
sua vida de autor inédito.
........O
poeta e tradutor Forrest Gander² considerou os poemas "alternadamente
engraçados, irônicos, irreverentes, amargos e apaixonados". O
poeta-editor-crítico Ron Silliman, que havia desenvolvido o conceito
de New Sentence, depois retomado pelo grupo de tradutores
de Yasusada, disse que os poemas "são de tirar o fôlego e deixaram-me
insone" (citado por Marjorie Perloff³) Hosea Hirata, professor
de literatura japonesa, considerou "a poesia de Yasusada má, e
estranhamente bela"³. John Bradley, que
editou uma antologia de poemas sobre Hiroshima (Atomic Ghost:
Poets Respond to the Nuclear Age), considerou o poema "'Mad
Daughter and Big-Bang' um dos mais comoventes e reveladores poemas
já escritos sobre os efeitos da Bomba"4.
........Em 1996 a revista de poesia American
Poetry Review imprimiu encarte especial com seus trabalhos,
intitulado Doubled Flowering: From the Notebooks of Araki
Yasusada, onde apareceu também sua primeira foto. Posteriormente,
com este mesmo título, a Fundação Segue (de Nova Iorque) publicou
o trabalho completo pela sua editora Roof Books1, após a editora
da Wesleyan University ter abandonado o projeto.
III. POLÊMICA
........No suplemento literário do Village Voice
de julho de 1996, o crítico Eliot Weinberger6 discutia
o problema da poesia de "testemunho", especialmente a antologia
de poetas que testemunharam combates, guerras, exílios, prisões
durante o século XX, Against Forgetting, organizada por
Carolyn Forché. Ali declarou que Yasusada, o poeta da bomba atômica,
a testemunha do horror em Hiroshima, o celebrado e exótico autor
recém-descoberto, não passava de um pseudônimo e que tal personagem
jamais existiu.
........Araki Yasusada seria falso e seus poemas
um trote. Yasusada seria o pseudônimo de um anônimo, "traduzido"
por três outros pseudônimos, e não há ainda um autor que tenha
assumido o trabalho.
........Naquele mesmo artigo onde o trote
foi denunciado, Eliot Weinberger declarava que o autor provavelmente
era um poeta americano, que teria feito um brilhante trabalho
e inclusive introduziu nos poemas diversos "trejeitos" de tradução,
transformando-se no primeiro poeta americano "testemunha" de um
desastre nuclear. Daí em diante as manifestações (pró e contra)
proliferaram, atraindo a imprensa de espetáculo de vários locais
do mundo. O editor do American Poetry Review, Arthur
Vogelsang, teria dito que o trote foi um "ato criminal", depois
de já ter publicado vários poemas, textos e inclusive uma figura
de Yasusada que, conforme Eliot Weinberger, parecia a "cópia borrada
da xérox de uma xérox de uma xérox da foto de algum yakuza inferior".
Vogelsang, editor desse mesmo jornal de poesia que publica as
fotos dos poetas em maiores dimensões que os próprios poemas,
dando mais ênfase aos personagens e às histórias do que ao "poético"
(lembrei-me ligeiramente da revista Cult, de São Paulo).
........Mas isso foi o começo dessa história
de detetive, que deslocou o problema dos poemas em si para uma
polêmica sobre a responsabilidade do autor, o compromisso dos
editores, o espetáculo, a disputa entre correntes literárias pós-modernas,
Michel Foucault, Roland Barthes e até a suposta "Morte do Autor"
(!).
........Um exame detalhado dos erros
do "caso Yasusada" foi feito por Marjorie Perloff em artigo publicado
no The Boston Review3. Ela começa argumentando
que no Japão o nome da família é o primeiro, e assim tratar formalmente
uma pessoa de lá usando o segundo nome seria como tratá-la por
Marjorie, o que já evidencia um certo desconhecimento dos costumes.
Em segundo lugar, como poderia o grupo Soun ter discutido
Paul Celan antes da II Guerra, se ele é justamente vítima dela
e da perseguição nazista, e teve seu primeiro livro publicado
no início dos anos 50? E como Yasusada poderia ter freqüentado
a Universidade de Hiroshima nos anos 20, se ela foi fundada em
1949? Além disso, ter estudado Literatura Ocidental, curso inexistente
até hoje? E como um poeta japonês de quase sessenta anos teria
se interessado justamente por Jack Spicer nos anos 60, quando
este era desconhecido nos Estados Unidos? E pelo livro L'empire
des signes de Roland Barthes, de 1970, e que nos EUA só foi publicado
em 1982 sob o título de The Empire of Signs? Finalmente,
quando Yasusada cita, em carta de 1967 a seu colaborador Akutagawa
Fusei, poetas como Gary Snyder, Bob Kaufman, Robert Creeley, Howard
McCord, recomendados especialmente por este último, que seria
o dono da City Lights Bookstore — ora, o dono da City Lights era
Lawrence Ferlinghetti, e Howard McCord era, na verdade, o mentor
colegial de ninguém menos que Kent Johnson, o atual procurador
literário de Araki Yasusada! A partir daí Marjorie Perloff assume
que Kent Johnson é o verdadeiro autor, e passa a discutir a política
poética americana.
........Porém Kent Johnson não admite,
de forma alguma, ser o autor dos textos e poemas de Yasusada5.
Ao contrário, passa a criar uma rede de correspondências, debates
e entrevistas para negar essa suposição, e ao mesmo tempo defender
a qualidade da poesia e o anonimato do verdadeiro autor. Em 1997
trocou uma série de cartas com Akitoshi Nagahata, professor de
inglês na Universidade de Nagoya, que criticava a posição de Yasusada
em falar da experiência do desastre atômico sem ser um verdadeiro
hibakusha, especialmente por usar termos eróticos em
seus poemas, o que ofenderia aos japoneses tradicionais. Notava
ainda a tentativa do autor anônimo de se aproximar estilisticamente
da poesia pós-moderna, algo insensato para um autor japonês do
início do século. Kent Johnson argumentou que talvez fosse uma
tentativa indireta do autor em se aproximar do sofrimento das
vítimas da explosão, e que justamente isso chamaria a atenção
para o problema. Mais: defende claramente a possibilidade de um
autor resguardar seu anonimato, pois o que interessa não é justamente
o conteúdo dos poemas? Que importa se são obras de um heterônimo?
Perderiam seu valor por isso?
........Mas no debate o interlocutor
prendeu-se unicamente ao problema da autenticidade do testemunho,
e sem ser uma testemunha verdadeira, perde-se o valor do "conteúdo".
Kent Johnston chamou então um depoimento do crítico russo Mikhail
Epstein em sua defesa. Em contraposição ao plágio, que
consiste em assumir o trabalho de outro como sendo seu, Epstein
coloca o hiper-autor, ao qual é dado o trabalho de alguém
que já não o assume como seu (ou não o quer como seu). Isto como
antídoto à praga universal do plagiarismo, "esta banal e autoconfessional
repetição das idéias e imagens de um outro sob o pretexto pós-modernista
da intertextualidade". Aliás, o próprio Mikhail Epstein poderia
ser o pseudônimo de um outro autor, talvez até mesmo de Umberto
Eco5!
........Para Perloff, Weinberger e outros
críticos a questão de base é: como nenhum editor percebeu que
se tratava de uma fraude? Parece que aceitaram os trabalhos basicamente
por dois motivos: são ignorantes de poesia e ficaram fascinados
por essa história fantástica de uma testemunha inédita de Hiroshima.
E mais: o autor que lançou esse "hiper-autor" tinha idéia dessa
demanda e lançou Yasusada justamente para preencher essa expectativa
(com sucesso!). Para Perloff, Johnson fez um trabalho brilhante
ao inventar esse mundo que é moderno e ao mesmo tempo arcaico
e ritualizado, documentário e simultaneamente situado num tempo
indeterminado. Por todos esses motivos Yasusada preenche a expectativa
e a demanda da crítica e das disciplinas acadêmicas atuais. No
caso, vem satisfazer e preencher — para saciar — mas não vem perturbar.
Pois como disse Weinberger, o leitor quer um autor ligado à obra,
e poderia ser um autor atraente, ou um com uma vida triste (de
preferência as duas coisas). E quanto aos departamentos de línguas,
segundo ele, estão hoje divididos em duas contraditórias facções
pós-modernistas: multiculturalistas e desconstrucionistas; os
primeiros querem aquelas histórias nunca lidas, e os outros duvidam
que tais histórias possam ser escritas ("pelo menos um dos lados
ainda quer ler literatura").
........Para Charles Simic, somente num
país onde o "provincianismo confessional reina absoluto" poderia
passar um poeta japonês que lia Paul Celan em 1930, e poemas e
antologias continuam sendo publicados simplesmente para preencher
as cotas da moda — o que levará, muito provavelmente, a novos
"trotes" 4.
IV. POÉTICA
........Ao analisar a questão dos poemas
feitos por testemunhas de grandes catástrofes e sofrimentos, em
que a razão de sua importância seria justamente cicatrizar as
feridas causadas, Eliot Weinberger6 aponta para um
conceito poético fundamental: "esta é a melhor evidência de que
isto [testemunho] nada tem a ver com poesia. A poesia não fecha
feridas ou responde questões; ela as abre".
........Que sociedade é essa onde alguém,
para se expressar, precisa inventar um personagem que vá ao encontro
de uma expectativa? E que sociedade é essa, cujas expectativas
são de tal tipo exóticas e "sofredoras"?
........Acontece que a crítica e o ambiente
literário esperam algo dos autores, e os poemas de Yasusada não
poderiam ser o trabalho da imaginação de um americano (seriam
simplesmente desprezados) — mas se estão na "boca" de um japonês
que é testemunha legítima, então passam a ser aceitos e mesmo
celebrados. Tal então foi o artifício do verdadeiro autor para
"entrar no mercado". Não seria diferente aqui no Brasil, bastando
fazer uma "correção" temática (quem sabe os "diários poéticos"
de uma vítima do Carandiru, recém-descobertos?).
........É que na crítica e nos editores
existe uma expectativa de forma e de tema. Isso já devia estar
superado e deveria haver a possibilidade de se admitir o que está
fora dela; mas não há (agora lembrei ligeiramente da Inimigo
Rumor, do Rio, e do Suplemento Literário, de Minas).
É uma questão de manter o reduto, criando uma matriz de intenções
versus pessoas. Quando na matriz a linha das intenções encontra
a coluna da pessoa certa, adequada àquela intenção e ao status
quo pré-definido (como uma "notícia" na revista Caras),
surge o poeta correto.
........Por outro lado, admitir tudo
daria a entender uma postura de "multiplicidade". É falso o que
se chama de "multiplicidade" poética no Brasil das novas gerações,
pois na realidade há uma tentativa dos diversos autores em se
acercar (segundo o talento de cada um) do que seria o "preenchimento"
das expectativas desse Outro especial que detém o poder da mídia.
Mas esse novo autor não tem certeza, tem suspeita, e vai tateando
e construindo uma obra raquítica na direção de alguma "cota da
moda"; não compreende, no interior do seu trabalho, a angústia
estética como algo interior e individual, não compreende um pensar
que se desdobra pelo belo.
........Assumir uma persona
é um erro? Mas o poema está além dessa questão. E nem é necessário
recorrer ao uso do heterônimo — pode ser feito em nome próprio!
— pois o fim é esse embate que é travado no momento mesmo do poema,
e não fora dele.
........Por fim, onde encaixar versos
como estes, descrevendo uma guerra que não é a nossa, numa época
que não é esta?
Areílico é morto pelo filho de Menetes
com a longa haste de bronze cravada na coxa
Menelau percebe o peito nu de Toante
aí o fere cobrindo seus olhos de treva
Ânflico mata Filido destroçando seus ossos
Nestórida derruba Antímnio, que irrita o irmão
e este, Máris, é morto também pela mesma lança
Peneleu, num golpe, de Lico tira a cabeça
Cleóbulo baixou os olhos frente a Ajax
Piracme cai na poeira fixo à lança de Pátroclo
Meríones atinge Acamante com a espada no ombro
Abre-se o fosso no caminho do Hades
um a um os heróis se retiram às sombras
onde não tardarão a encontrar a nova luta
no primoroso verso de um poeta brônzeo
........Talvez fosse o caso de dizer
que são os fragmentos de um poema épico, escritos numa pedra encontrada
às margens de Juan les Pins, Antibes (já foi Antipolis), fundada
há mais de 22 séculos no litoral Mediterrâneo. Quem sabe merecessem
a atenção do editor literário, assim como aquele outro, que até
mesmo a foto do sobrevivente de Hiroshima publicou.
(N. a.: Agradeço a Chris Daniels — que traduziu recentemente
Murilo Mendes para o inglês —, por ter indicado diversas fontes
sobre o debate em torno de Araki Yasusada bem como sobre a polêmica
do "autor", além de inúmeras sugestões na tradução. Também a Walter
Carlos Costa, Ademir Demarchi e Marco Aurélio Cremasco, pela leitura
atenta, sugestões e diversas anotações no texto e nas traduções.)