©liliana porter
 
 
 
 
 
 
 
 

"Enquanto mexia a geléia grossa, Estha pensou Dois Pensamentos,

e os Dois Pensamentos que ele pensou são os seguintes: (a) Tudo

pode acontecer para Qualquer Um e (b) É melhor estar preparado".

 


Era uma viagem noturna de trem, Índia, e o trajeto nem sei qual. Lembro-me de um médico muito entusiasmado com a leitura de um livro, enquanto eu tentava dormir, em meio aos freqüentes embarques e desembarques, estações perdidas e vendedores de chá, que invadem seus ouvidos com a mesma velocidade que saltam dos trens já em movimento. Chaay, chaay, garam chaay!!! era a música que o trabalho lhes permitia compor.

 

Foi ali, naquele cenário insone, que conheci Arundhati Roy. Era a autora do livro do médico. Sua presença viva estava nos olhos vibrantes do leitor. A minha primeira impressão da obra, porém, não foi das mais empolgantes: abri ao acaso o livro numa cena  de pedofilia.

 

Cinco anos de poeira foi o que espanei daquelas trezentas páginas, na minha segunda tentativa de leitura. Afinal, eu estava em Cochin, o palco do enredo, e achei que seria um desperdício desprezar tal cenário. Aos poucos, O Deus das Pequenas Coisas foi se revelando numa epifania constante, muitas vezes com um gosto amargo, viciante porém.


 

Paraíso, Picles & Polpas

 

O livro se inicia com o retorno de Rahel à sua cidade natal, quase duas décadas e meia após a tragédia que mudaria sua vida para sempre. Há um narrador onisciente, mas sabemos que esta indiana de trinta e um anos, residente nos Estados Unidos, é a personagem mais importante, a única capaz de contar o que ocorreu naquele verão em 1969. Estha, seu irmão gêmeo, deixou de falar há muito tempo, nem ela mesmo sabe quando. Foram separados aos oito anos e agora se reencontram.

 

A volta dela se deve ao fato de ele haver sido devolvido do local ao qual havia sido enviado quando criança. Da família que tinham, só sobraram uma tia velha e uma empregada. No fundo, ela sabe que só restaram mesmo um ao outro. E se encontra sem perspectivas, após um casamento desfeito, um emprego banal num posto de gasolina em Washington e um irmão querido e desconhecido que não fala. Assim começa a seqüência de capítulos que vamos acompanhar retroativamente, que flutuam fora de ordem entre o antes e o depois da chegada de Sophie Mol, a prima inglesa que vem para o verão. Sua morte prematura nesta terra estranha e todas as conseqüências dela já são anunciadas nas primeiras páginas do livro, assim como os desfechos da mãe de ambos e de seu amante. A autora torna assim menos importante o ápice da história, que seria o crucial afogamento da menina, e transfere então o nosso interesse à vida de cada personagem, que conta com detalhes sutis. O livro se torna leve, divertido e curioso. Aprendemos que  a odiosa tia velha já foi jovem e apaixonada; que o gordo tio Chacko (pai de Sophie) era atlético quando estudante em Oxford; que o filho do camarada comunista, de nome Lenin, agora se chama Levin para evitar problemas em seu trabalho em embaixadas estrangeiras, etc.

 

O Deus das Pequenas Coisas nos oferece também um enriquecedor retrato histórico daquele momento do Sul do país. Poucos são os que sabem da presença de cristãos sírios naquele local (religião professada pela família de Rahel); da maciça força política comunista; dos levantes naxalitas e da crueldade no trato com os intocáveis, a mais baixa casta dentro do hinduísmo, o que não deveria ocorrer numa sociedade duplamente igualitária (cristã de um lado, comunista de outro). Da mesma maneira, retrata de maneira pouco pitoresca os hábitos locais, a comida, as danças típicas (kathakali) e os trajes apropriados a condição de cada um, aproximando-nos do caráter mais intrínseco dos indianos.

 

Roy nos brinda com uma maneira muito peculiar de escrever. O seu maior mérito é espalhar a história de tal maneira que se pode ler seu livro, sem grandes prejuízos, começando-se de qualquer capítulo e voltando depois ao início, até chegarmos ao ponto onde havíamos começado.  Nota-se entretanto traços de uma literatura feminina (ou feminista?) e engajada contra as injustiças, ainda que de maneira bem sutil, risco que poderia tornar panfletária a obra. O enredo e os personagens que criou (?) têm tanta força, que os neologismos e outros maneirismos que a autora insiste em usar poderiam tranqüilamente ter sido dispensados. Talvez tenha sido esse o seu  pecado, tentar criar uma prosa poética num enredo onde a poesia já era latente e sem firulas.

 

Apesar destes pequenos deslizes de iniciante (é seu primeiro livro), Roy, que se formou em arquitetura e reside em Nova Delhi,  ganhou o Booker Prize e foi reconhecida mundialmente. Afirmou-se então como ativista política (já esteve num Fórum Social no Brasil), tendo gasto boa parte do seu prêmio em dinheiro com as causas em que acredita. Escreveu ainda The Cost of Living e The Algebra of Infinite Justice, ambos ensaios com o ponto de vista da autora sobre temas como o 11 de setembro, Paquistão, Guerra Nuclear e desapropriação de terras em seu país natal.

 

É o tipo de pessoa que rejeita a Índia estereotipada, explorada visualmente, culturalmente, religiosamente e turisticamente, enquanto sua população mais autóctone ainda passa fome. Se você é daqueles que quer ir além dos folhetos das agências de viagem e dos documentários da tv a cabo, fica o convite para que conheça Rahel, Estha, Velutha e Ammu, com o local e o universal que eles transpiram a cada página. E tenha certeza, a companhia deles é para sempre.

 

 

 

 

março, 2006
 
 

panditgaram@yahoo.com.br