©gk hart & vicky hart
 
 
 
 
 
 
 

"Um certo vazio fez-se sentir. Toquei minha barriga. Era uma
cavidade dura e oca (...). Levei as mãos à boca: idly! Apenas
pensar na palavra me provocou uma pontada de dor atrás das
mandíbulas e um dilúvio de saliva na boca".

 


Hesitei em escrever sobre o livro do espanhol Yann Martel, A vida de Pi  (Editora Rocco), pois muito já se falou sobre esta obra, vencedora do Booker Prize de 2002, acusada ainda de plágio. Mas justamente hoje, enquanto buscava um tema para este artigo, deparei-me com o parágrafo que reproduzi acima. Confesso, então, que  sigo escrevendo também por questões pessoais. Assim como o protagonista faminto, há quase três anos não saboreio um idly, uma espécie de pãozinho de arroz fermentado do Sul da Índia, elaborado durante à noite, cozido no vapor assim que o dia nasce e servido no café da manhã. Não sou muito fã da cozinha sulista, mas se há algo de lá que me deixa saudoso, idly é seu nome.

 

Além da preferência gastronômica, comparto outras coincidências com o protagonista: ambos somos exilados (à nossa maneira), não temos uma religião fixa, ou melhor, temos várias religiões não-fixas (isto seria um problema na Índia) e aprendemos a gostar de tigres.

 

A obra narra a vida de Piscine Patel, um indiano cujo pai é diretor de um zoológico no qual vive toda a sua família. A primeira parte conta justamente as descobertas do infante Piscine: a natação, a multi-religiosidade da Índia, o período escolar, a zoofilia, e tudo mais o que poderia fazer parte do universo de um garoto que compartilha com animais o governo de Indira Gandhi.

Cansados da Primeira-Ministra, a família resolve emigrar para o Canadá e, em virtude de alguns incidentes que prefiro ocultar, nosso protagonista de 16 anos se vê à deriva no Oceano Pacífico, num bote salva-vidas e em companhia de um tigre! O livro, até então curioso, ganha força no relato da luta pela sobrevivência e se torna um minucioso diário de bordo.

 

Alguns trechos, inclusive, fizeram-me lembrar de Mowgli, o menino indiano criado nas selvas, e de seu inimigo mortal Sher-e-Khan, o tigre (Kipling, The Jungle Books). O autor derrapa, porém, num final que sinaliza o fantástico, uma escolha completamente equivocada e desnecessária, já que a própria história de Pi, por si só, já era bastante inverossímil, apesar de aceitável.

 

O plágio mencionado se refere ao livro Max e os felinos, de Moacyr Scliar. Obviamente, a imprensa que o acusou, não tem tempo de ler justamente as obras sobre as quais escreve, e o próprio Scliar desfez a confusão, inocentando Martel.

 

Aos interessados em relatos de viagens, cultura indiana e àqueles que adoram os documentários da BBC sobre a vida animal, A vida de Pi não decepciona. Literatura sem maiores pretensões, melhor desfrutada, porém, longe de águas salgadas e de tigres famintos.

 

 

 

 

outubro, 2005
 
 

panditgaram@yahoo.com.br