Nunca mais me esqueço da sombra
silenciosa que marca o piso de pedra da pequena igreja do Carmo.
Ali, diante do oratório, rasgo e devoro algas de Bíblia. Solidão é
rito e, se venta lá fora, na pia baptismal uma folha seca. Aqui
acordo, em meio ao sonho que é essa pequena igreja; acordo para a
lucidez de que estou sonhando e, se não sonhar — sucumbo — igual
onda que se extingüe ou fina linha de lápis que se apaga. Anoto no
cahier: "Quem anda nas
águas, envolto em névoa antiga, nada quer da cruz. O lado oceânico
da cruz, existe? Ou existe só essa avena perfumada de altura?". A
presença quase física da imagem do deus Orum, nessa pequena igreja
cristã, faz uma sombra perfumada nas paredes brancas, e é para
este deus que escrevi, nas algas da Bíblia, um
oriki:
QUANTO MAIS PRÓXIMA A
LÍNGUA
DA ORIGEM DA CHUVA,
MENOS FEL E GRAMÁTICA
O acaso espreita da
folha em branco.
Toda sede do céu é de
abismo
e vivace sorvo, touro
de mar caço à unha:
oro a Orum, peço que a
neve nô
caia
nas árvores vergadas
pela névoa.
O pensamento quer matar
a sede
no oriki da
chuva.
Quanto mais perto da
música de câmara,
mais a língua venta um
acorde que amanhece
esse virgem
verso,
esse rosário de
buirás,
esse kami
na imensa altura do
vento.
Um pequeno conto mitológico de K.: "O
Cristalino, sob a forma de uma viração de ouro, penetrou
surdamente no Castelo da Pureza e esparziu grânulos de miosótis no
ventre da Bela da Noite, que concebeu a música. O Vazio encarregou
a navalha de Perseoccam de árdua incumbência: trazer o crânio da
Sicária, a única Górgona mortal. Antes de decepar o escamoso
crânio tonto de serpentes da Sicária, Perseoccam teve que atar a
imagem dela a uma superfície refletora constituída por película
depositada sobre um vidro — espelho ou alma —, que precisa de
silêncio e prece. Passou então a carregar o crânio — que empedrava
quem o visse — como um despojo de inimigo vencido e, a entoar um
mantra esponsalício, desencarcerou a Bela da
Noite".
Molhada ainda de marinhos ventos, a
Casa de Água guarda a respiração dessa mulher que anda, num estado
de vidência órfica, da varanda ao quarto; do quarto à sala de
música; e dali ao sono. Atrás dos muros de todas as casas de Villa
da Concha há sempre uma roseira-branca que desfolha a chuva. Olor
fino de chá. A essência de Krishna: Krim. Dentro do sono da mulher
que respira inicia uma outra Casa de Água — a do sonho — que vence
as chuvas contrárias e navega ao longo de uma restinga onde,
naquela duna, escutamos um espírito que pronuncia: "Os hindus
costumam dizer que existem árvores que podem ser chamadas de
Kalpvrakshas — senta-se sob elas e tudo o que se deseja é
satisfeito sem intervalo de tempo". Inspirado pelo dito oriental,
deito sob uma oliveira e peço ao meu coração que nade num trevo de
quatro folhas.
Exercícios de exílio: eu, K., sou um
estranho fruto da vigília; no quintal dela respiro, indago e
acredito que hei de vivificar, não indo à árvore-de-ferro do
pesadelo senão por destino e de relâmpago; sou um estranho e
aceito que a vigília prefira uma ninfa de coxa atlântica a essa
mistura de luto e lodaçal. Estou no Jardim de Pedra da Casa de
Água e alumio frouxamente o fícus: o vento dá cinco voltas em
torno do fícus, enquanto penso em Schopenhauer e no real;
real que pode ser um cântaro vazando água ou aquela frase
de cristal pronunciada no escuro: alento vital, spiro, sopro, hálito,
presença divina. E é este real (que existe de fato;
verdadeiro) que dá oxigênio/aragem à Coisa; e Coisa é aquilo que
insiste em sua parte real e permanece livre da representação, e
talvez seja a causa das pedras, dos regatos e do céu e, sendo
Coisa, é diminuído pelo significante: a essência do Vazio. Para
mim e para Nietzsche, nos significantes retina, concha, Aldebarã
dormem imagens, como na pedra dorme uma imagem. Algo — fontis vivi — dá forma a
este outro significante: a figura Lucana da Coisa, e que é
possível imaginar. A ficção é a imagem do inimaginável. O
significante Lucana se instaura em certa relação com a Coisa, que
está feita ao mesmo tempo para presentificar e para ausentificar.
Aqui, em Villa da Concha, podemos vislumbrar o pescoço longo de um
coqueiro coroado de chuva criadeira ou chuva
persa.
K. escreve uma carta ao filósofo
Hervum: "A Jarra de Heidegger (Das Ding/A Coisa) é uma
imagem e imagem não tem enigma. Não custa nada frisar que a Coisa
existe em sua exata natureza e persevera — atua — desprendida da
figuração, e é provável que tenha dado origem ao deus babilônio
Shamash; às cocléias, homares e conclins; à peônia que pende rente
à neve; ao bate-bate de atabaque do batuque; ao acaso que impera.
A Coisa — o Outro em exclusão interna. Escavar na ilusão este
ponto (.) — quantum — em que a ilusão
mesma se transcende, se arrasa, confessando que aí está apenas
como significante: um exemplo — a palavra 'Jarra' —, de 'A Jarra
de Heidegger', é significante enquanto essência daquilo que não
contém nada. Outras jarras significantes: casca de laranja, de
lagosta, de cebola, de crustáceo, de réptil, de sequóia, de
tartaruga, de caracol, de ovo, de pão. A jarra de Heidegger —
casca de vidro — é um objeto que circunda o Vazio e tenta aclarar
a existência deste Vazio no centro do real. Quanto mais o
objeto — a Jarra — é presentificado, mais ele nos abre esta dimensão
na qual a ilusão se destroça e aspira a outra Coisa — menos a
letra do que o espírito do escritor". A Coisa é babel, bárbara,
balbuciante. A Coisa existe mesmo quando não há. As palavras
sopraram antes da Coisa e cada sopro delas é um ramo de sutis
idílios. A palavra neve: sônica, nívea.
Se não se escutam as folhas do
arvoredo, Lucana gasta os olhos numa página avulsa do poeta
Almafuerte: yo soy un
palmar plantado sobre cal e pedregulho. Os vocábulos lidos na
frase anterior já estão mortos, derrotados, e unicamente a retina
do leitor pode trazê-los à vida com um sopro. Se o vocábulo é
sopro e o sopro é vida, sopramos em yo, sopramos em soy, sopramos em un, sopramos em palmar, sopramos em plantado, sopramos em sobre, sopramos em cal, sopramos em e, sopramos
em pedregulho.
Lucana confessa ao palmar plantado: "Eu sou
uma daquelas víboras descascadas junto à fonte fria. Com pinças
curvas eu arranco o cérebro dos fariseus — gruta com lesmas —
pelas fossas nasais. Eu, com um garfo de ouro, faço um talho na
cara da prosódia sonolenta e, debaixo do chuveiro, tento captar,
apesar da água torrente, o sentido das palavras em Fernando
Pessoa: 'Atinjo a força de palavras, não para
realizar a obra que eu nunca poderia realizar, mas ao menos para
dizer com simplicidade por que razões não a realizei'. No espelho,
enquanto me enxugo, verifico que na alma continuo sendo uma
daquelas gueixas com neve no negro cabelo. Escuto a balada de
Narayama e, com a colherinha de açúcar, faço nevar no espírito do
chá".
Na praia de Pinheiros-bravos, imerso
em imensas curvas de mareiro, começo a escrever sobre um assunto
espinhoso: a filosofia de areia ou a filosofia das aparências. Eis
no capítulo 61, do livro ainda sem título, a frase absurda:
"Dorme, no alto do eucalipto, o rinoceronte num dos ramos
finos...". Para a epígrafe do mencionado livro eu selecionei um
poema de Tzvietáieva:
Nutriz da vida, irrecuperável,
irreprimível, vaza a
poesia.
"Vale é o intuir, as palavras são só
para deter a atenção", assim grafou a lápis no caderno o
Guimarães. Eu, K., faço ablução com água de poço e digo
reverente:
Górbion
Orduefême
Bendizéges
Têivel
Lái
Aqui da única torre do casarão colonial, com o binóculo, K. observa que a Casa de Água não existe absolutamente, é em seu todo invenção. Husserl, segundo Sartre, "restitui ao centauro sua transcendência no seio mesmo do seu nada". Eu também restituo à Casa de Água sua transcendência ali onde ela some e torna a vir à tona por meio das palavras. Sábado à noite, na velada do chá, quando baixar em Villa da Concha uma neblina vivificante, vou quebrar em duas a espinha dorsal das odes taciturnas — talhadas na velha carniça da língua latina — e espancar, uma a uma, as especiarias do caos. Eu, K., sem Lucana, sem Casa de Água, sem casarão colonial, sem música, sem corpo, eu apenas com a voz, não esta que se escuta — mas outra voz —, aquela que paira, nesse instante, junto às estrelas úmidas de Villa da Concha.