Chico de Assis, pernambucano do Recife, 56 anos de ralação, 40 dos quais dedicados a atividades políticas, ora legais, ora subversivas, interpenetradas por atividades literárias. Passou quase 10 anos como preso político, durante o período ditatorial, fato que aproveitou para explorar em seu primeiro romance, A Trilha do Labirinto (Inojosa Editores), premiado pela UBE-PE, em 1995. Publicou também um livro de contos, A Chave do Nada (Recife: Editora Bagaço, 1997) e um outro de poesia, Círculos da Síntese (Edições Piratas, 1981). Tem dois filhos, Romero e Ilana, os quais considera suas melhores produções, e uma vontade incontrolável de viver a vida do jeito que a vida der.
Do Quarto ao Banheiro
........Conhecia indiscutivelmente os sinais. Uma leve pontada na boca do estômago, uma sensação de náusea, vazio, impaciência contida na língua lambendo toda a extensão do braço. Suavemente no início. Com sofreguidão depois, à proporção em que as imagens, inicialmente fantasiosas, iam ganhando nitidez e realidade em sua mente.
........Heloísa não gostava daquele jeito. Ela pedia que a deixasse inverter os papéis, assumir o que para ela era o melhor, porque a parte que tradicionalmente cabe ao homem, a iniciativa. E assim se empinava imponente sobre seu sexo, prendendo-o pelos braços, quieto, bem quietinho, se não apanha. Havia um prazer mais intenso nessa troca, como se a perda momentânea de identidade atingisse as entranhas e produzisse um gozo que se propagava pelos poros e arrepiava todos os pêlos, deixa, minha vida, deixa pintar tua boca.
........Já com Raquel era completamente diferente. Ela adorava ser dominada, da cabeça aos pés. No auge da excitação saltava-lhe sobre o colo, oferecendo-lhe as nádegas e apanhando a chinela embaixo da cama, bate, meu amor, bate na sua menininha. Ele exercia com prazer cada vez maior o papel de algoz, deixando-se fascinar pelo infinito poder que pressentia nas respostas paulatinas que ela lhe dava, até se deixar prostrar e se dobrar em prantos, me fode, me fode, como massa disforme, me esculhamba, sem vontade, me chama de galinha.
........(Fora com Raquel que comprovara a polêmica afirmação de Nelson Rodrigues, toda a mulher gosta de apanhar, no fundo, no fundo. Raquel gostava literalmente. Talvez porque revivesse alguma experiência infantil, palmadas no bumbum, o pai, adorava o pai. Embora houvesse passado metade de sua vida pensando que ele a odiasse, pensava que eu não era dele; mãinha, sim, que o fez pensar isso, por vingança. O certo é que gostava. Mal começavam os jogos, ela pedia que ele sentasse na ponta da cama, debruçava o ventre sobre suas coxas, apanhava o chinelo no chão e bate, meu coronel, bate. Muitas vezes gozava, sem nenhum outro estímulo).
........O termo médio era vivido com Jaqueline, que aqui aparece por último, mas era sempre quem iniciava a cerimônia, por não apresentar maiores excentricidades, senão a de aparecer sempre de longo. É em seda preta, com seus anéis, colares e perfumes que ia espalhando no percurso da sala ao quarto. Preferia fazer tudo em silêncio, falando às vezes com os olhos, que pareciam súplices, ou com as mãos em concha, oferecendo os peitos enormes e obrigando-o, ele sim, a instigá-la, fala, amor, diz alguma coisa, enquanto ela se recusava de olhos fechados, como se precisasse de concentração absoluta para percorrer o sinuoso caminho do gozo, que vinha num gemido longo, surdo, gutural.
........(Na verdade, havia em Jaqueline dois outros fatores de atração. Era rica, muito rica, e ele, cara politicamente correto, experimentava cada encontro com ela como se fosse a classe operária fodendo a burguesia. O segundo fator era a idade. Cerca de dez anos mais velha, Jaqueline lhe permitia a impressão de que solucionava todos os seus enigmas edipianos, embora o aborrecesse muito a sensação próxima do asco ou o sentimento próximo da culpa que o acometia, cada vez que acabava de transar com ela).
........Ele costumava usufruir lentamente do prazer que cada uma lhe proporcionava, deixando-as expandir, uma de cada vez, todo o potencial de loucura e sensualidade que indiscutivelmente portavam. Raramente juntava as três, tanto para evitar possíveis cenas histéricas, quanto por considerar que isso o desconcentrava. Somente uma vez, quando já iniciava o ritual e Jaqueline o recebia mais uma vez exuberantemente vestida, sentiu o corpo ofegante de Heloisa agarrando-o por trás, ouvindo sua voz segura, você é meu, não se atreva, e percebeu o desconcerto assustado de Raquel, encolhida num canto. Inicialmente tímidas, elas se entreolhavam, se estudavam, se perguntavam por que haviam aceitado o convite que ele insistentemente sugeria, até que Heloísa, teria mesmo que ser ela, roubou com um beijo o riso tímido e nervoso de Raquel, passando a exercer imediato e despótico poder, que se esvaía em carícias e apertos e beijos, o beijo da mulher é melhor, mais suave. Daí em diante, não houve mais controle sobre a ação dos participantes, deixando-se tudo sob o comando exclusivo do instinto, que ordenava a volta aos estímulos primários, ora os colocando numa pausa de perplexidade, mais realçada no rosto de Raquel, que tesão, meu Deus, que loucura estamos fazendo, ora os engalfinhando como bichos numa seqüência meteórica de posições, não sendo surpreendente assim vê-lo de quatro, com Heloísa altaneira em pé a sua frente, inebriando-o com o cheiro ativo de boceta que apenas insinuava esfregar-lhe na boca, preferindo em troca untar-lhe as faces afogueadas do colostro que extraía da massagem com as mãos, cheira, vagabundo, sente o cheiro da tua rainha, enquanto Raquel cavalgava-lhe as costas, experimentando pela primeira vez o prazer de comandar e se ver obedecida, anda cavalinho, lambe, beija, restando Jaqueline, meio ressentida por haver ficado até então um pouco de lado, estalando um chicote que combinava bem com a elegância do seu corpo e de suas vestes, vocês vão ver agora com quem estão lidando, para finalizar o cenário que iria ser palco da promiscuidade de beijos e pernas e bocas que se abriam e fechavam, conforme fosse a sofreguidão desesperada de Paulinho que, no furor dos seus quinze anos e com a mão freneticamente agarrada ao sexo, esvaia-se no frenesi final do gozo e voltava à cama vazia, mal disfarçando uma ponta de frustração com o riso debochado que o levantou para o banho purificador do esperma, do suor e da solidão descomunal que por momentos julgou experimentar, no trajeto do quarto ao banheiro.

"Não vou falar aqui de exagerada auto-estima, mas desse amor
tão popular que, como a caridade, começa em casa,
na casa do próprio corpo — esse campo de batalha sexual
onde tive minhas primeiras vitórias
e nem uma só derrota...". Cabrera Infante

chico de assis