Abertura

 

Desta janela

domou-se o infinito a esquadria:

desde além, aonde a púrpura sobre a serra

assoma como fumaça desatando-se da lenha,

até aqui, nesta flor quieta sobre o

parapeito — em cujas bordas se lêem

as primeiras deserções

da geometria.

 

 

 

 

 

 

Vaca negra sobre fundo rosa

 

Até os cinco anos jamais havia visto um trem de carga;

e até os oito anos jamais um meteorologista.

A garota com sobrinha chinesa

foi um dia a minha garota com sombrinha chinesa, e a este

que brinca na areia da praia chamamos nosso filho, pois

é o que é, como a bola azul em suas mãos é a bola azul

em suas mãos e o verão é outra bola azul em suas mãos.

As coisas são o que são e sei que antes de precisar

outra vez barbear-me já terão voltado para o frio

de seu novo país. E talvez em meus sonhos

voltem a fazer falta as três dimensões

desse mundo espesso, sublunar, como

uma vaca negra sobre fundo rosa.

 

 

 

 

 

 

Vers de circonstance

 

"Coisas assim ocorrem

quando estamos a ponto de

tornar real uma possibilidade

que está sempre escapando."

Caminho com Marília até a Lagoa, mas a volta

Para casa já é outra escrita na fumaça, a

Nomeação de um "vestígio", de uma tristeza.

Os remadores se esforçam, a garota anseia

não ser nada mais do que a continuação

da bicicleta e sua fuga, nós somos sua

neutralização. Você mesmo acorda e pode

imaginar: "hoje pintarei toda a manhã e a

tarde inteira" sem nunca ter sido ou

tentado ser pintor.

"Pequena xícara preferida,

colherinha a transportar, anos a fio, dunas

e dunas de café solúvel, os dias nos

querem sempre assim? à sua pulseira

branca unidos, ansiando sempre

por novas flores, outra

primavera, um possível

jardim?"

 

 

 

 

 

 

Lagoa

 

Tendo às costas

(como asas pensas que a tarde

abre e fecha) o dorso cobreado da

montanha e os reflexos de cobre da lagoa,

a menina com o gato traduz, à mais que perfeição,

os veios profundos, invisíveis e subterrâneos,

a nos unir a quem amamos, e quando ele lhe

estira sobre o colo as patas ponteadas,

ela, para não acordá-lo, até seu

olhar pôe na ponta dos pés.

 

 

 

 

 

 

Nova passante

 

1. sobre

esta pele branca

um calígrafo oriental

teria gravado a sua escrita

luminosa

— sem esquecer entanto

a boca: um

ícone em rubro

tornando mais fogo

suor e susto

tornando mais ácida e

insana a sede

(sede de dilúvio)

 

 

2. talvez

um poeta afogado num

danúbio imaginário dissesse

que seus olhos são duas

machadinhas de jade escavando o

constelário noturno:

a partir do que comporia

duzentas odes cromáticas

— mas eu que venero (mais que ouro verde

raríssimo) o marfim em

alta-alvura de teu andar em

desmesura sobre uma passarela de

relâmpagos súbitos, sei que

na pele pálida de papel

pede palavras

de luz

 

 

3. algum

mozárabe ou andaluz

decerto

te dedicaria

um concerto

  para guitarras mouriscas 

e cimitarras suicidas

(mas eu te dedico quando passas

no istmo de mim a isto

este tiroteiro de silêncios

esta salva de arrepios)

 

 

 

 

 

 

Salto

 

Se alguma pedra pudesse tornar-se lírios

seria esta

Se alguma pedra o salto de um tigre

e não o tigre

Seria esta

alguma as letras do alfabeto

seria esta

esta só pontas

que pulsa

coração da casa

que acabas de deixar

para sempre

 

 

 

 

 

 

Paisagem japonesa para Aguirre

 

Pensei nos ventos frios

que sopram

da Sibéria enrolando-se

em seu pescoço, na pesca do salmão e

na corrida da raposa fugindo do seu covil

rumo à plantação de batatas; mas

 

 

aqui,

neste quase morro de Lopes Quintas,

com pedregulhos ao fundo,

você pousa agora o jarro sobre a mesa

 

 

e é quase como se pousássemos também

nossas vidas sobre tudo isso

e sorríssemos;

pode ser a coisa

mais simples, como

a taça de café que aquece agora

as palmas de nossas

 

 

mãos ("ó doce hebréia") e cheira bem;

 

além, o jóquei iluminado, a lagoa

que nos veste como camisa ensopada;

olhamos a lua,

 

 

amamos o mar.

 

 

 

 

 

 

Limiar

 

Os pés premindo

a inexistente relva do asfalto

duro da rua sem vida a não ser a

que lhe dás quando subitamente cruzas

o espaço e somes num átimo deixando

entretanto no ar qualquer coisa de tão

botticelliano quanto num crepúsculo mediterrâneo

uma colhedora de mimosas a que um

homenzinho cedesse a passagem

à espera (desesperada)

de um sorriso

 

 

 

 

 

 

As banhistas

 

I

 

a primeira — um

capricho de goya, alguém

diria — apodrece como um morango

cuspido ou ameixas sangüíneas: entre

as unhas uma infusão de manganês esboça a

única impressão de vida, pois tentar romper

a membrana verde — a bolha de bile,

coágulo  a óleo — que lhe cobre o sexo

fugidio como uma lagartixa (sorri

para esta e deixa que em tuas mãos

uma palavra amarga se transforme

em lilases da estação passada)

 

 

II

 

(a segunda

 — máscara turmalina em

vez de rosto,

o músculo da coxa dispara

atrás da presa: o ofegante e

mínimo arminho pubiano

grain de beauté

exposta está em

nenhum beaubourg

sonnabend

mas sim

dorme e não

para mim mas

através

da sua e da minha

janela sob a

conivência

implícita

dos suntuosos

sol

e cortina)

 

 

III

 

a terceira —

um rothko

(mas

não baptismal scene

um

bem mais nervoso que isso) sua

pose — curto-circuito

sur l'herbe

lembra um espasmo doem

seus olhos esmagados pelo coturno

do fogo que

agora

lhe descongela sobre os

cílios

uma constelação de gotas d'água

desabando sobre a íris

 

 

IV

 

um dibujo

de lorca esta

toda boca de tangerina e

auréola sobre o bico do seio

— a quarta —

exata como a foice das ondas

ao fundo ou

a precisão absoluta dos

dois filetes púrpura

— e daí para violeta-bispo —

rasgando-lhe o branco

dos olhos como se visse

coroa de espinhos (desta

passa direto para

a sexta)

 

 

V

 

e veja

como se anima

esta súbita passista-tinguely:

os braços abertos em

mastros de caravela, leões-marinhos

dançando  ritmos agilíssimos,

da espiral do umbigo jorra

denso nevoeiro até, à

altura dos ombros, quase

condensar-se num parangolé de

brumas (se a fores encarar

faça-o como que por entre

frinchas de biombo, olhos

de diable amoureux)

 

 

VI

 

aproxima-te

agora desta última:

ela

esta que não está na tela:

ela

aproxima-te e te detém longamente

deixa que isso leve toda a vida — também

cézanne levou toda a vida tentando

esboçando (obsedado em papel e tinta

e lápis e aquarela e tela e proto/tela)

estas banhistas fora d'água como peixes mortos na lagoa

ou na superfície banhada de tinta

— uma tela banhada é uma banhista hélas! e não usamos

mais modelos vivos

ou melhor

os nossos dois únicos modelos:a crítica e a língua

estão mortos

por isso

antes de partires daqui para a vida turva

torvelinho a turba

antes de te misturares ao vendaval das vendas

à ânsia de mercancia

cola o teu ouvido ao dela:

escutarás o ruído do mar

como eu neste instante

na ilha de paquetá

ou na ilha de ptyx?

 

 

 

 

 

 

Em tintas de latim

 

Neste exato

instante iluminam a

vida, fulgor único logo

liquidado por um bater de

portas: pouco mais sei sobre

as meninas além dessa chispa que

finda em estrondoso trovão;

sei que enquanto em tintas

de latim minhas pupilas vão

virando papiros (e meus

cílios, paliçadas), nelas,

em seus olhos-glicínias,

nem por isso algum azul

mais ou menos se

turva ou tur

malinas.

 

 

 

 

 

 

Vers de circonstance

 

Eram três mulheres e a noite descia

de seus olhos

em ondas

de aroma

escuro

eram três

sob o lençol

branco

 

 

*

 

 

eram três almofadas

três relâmpagos

de mãos dadas

 

 

*

 

 

três gargalhadas de febre

afiada contra

jasmineiros

 

 

*

 

 

fazia frio

nas vespas e não

no ar —

nos peixes e não

no mar —

e nem no corpo

e nem no desejo

 

 

*

 

 

pois uma ria

como ágata branca

outra era

branca

a terceira era de Sefarad

 

 

 

 

 

 

Maldoror

 

"Va-t-il nous déchirer"

     S. M.

 

 

vês

a mesa?

e sobre a? virado

de lá para cá por preciosos

instrumentos cirúrgicos

— sonda? chumbo? bomba? —

o pulmãzinho do rouxinol?

 

 

 

Carlito Azevedo nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. Tudo o mais é especulação. Publicou Collapsus linguae  (Rio de Janeiro: Lynx, 1991); As banhistas (Rio de Janeiro: Imago, 1993); Sob a noite física (Rio de Janeiro: 7Letras, 1996); Sublunar (Rio de Janeiro: 7Letras, 2001).
 
 
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