O ferro e o sangue
o aço quer penetrar
em seu irmão
hemático

No açougue
os perfumes
se confundem
sangue e aço

O som
da lâmina
na carne
é quase mudo

Carne fresca
cheira
a aço
laminado

A baioneta
é de aço
escuro

Na guerra
é tudo
negro

Tudo se mistura
na ferrugem

Sangue e aço
se oxidam,
se dissolvem
na ferrugem


Cloreto férrico

A água
às vezes
tem sabor
de ferro

O cano de ferro

O cano do fuzil

Na guerra
o ambiente
é surdo

O odor
é ferro
de hemácias
com pólvora
combustada

...

A morte
violenta
vem em aço
de espadas

Aço e sangue

Açougue

Azougue

Azorrague

Chicote de pontas hemáticas

A carne chicoteada
tem perfume
de ferro

É preciso morrer pela pátria

O uniforme forma o homem
retira o nome
e prepara a carne
para a massa
que será enterrada
                                        na vala comum

 



"A Medicina é a arte de levar alguém à
sepultura com palavras gregas".


O primeiro passo para a cura
é estar doente.

E a descrença?

Eu não acredito em doenças, mas que elas
existem, existem.

Tomemos todos um copo de aguardente
e arranquemonos por bulerías.

Vamos, esqueçamos o assunto
A morte está a um passo do meu passo
e
Meus sapatos correm pela vida e não
conhecerão nem metade do meio do mundo.

Antes que seja tarde
Antes que aconteça o milagre

A Transubstanciação do corpo vinho e alma
Todos juntos dentro do copo prontos para o
grande gole do Grande Reconhecedor

porque todos sabem
menos eu
que é chegada a hora
da misericórdia
e todos os cantos fúnebres ressoam a minha
espera, sem saber que tudo é sonho.

Tudo está em mim
Tudo sou eu
Nada existe
Tudo sou eu e todos nós somos você
Tudo é simplesmente nada

        e o nada
            nada
         num mar
          de nacos

É o indefinível definido por nós

Tremores
Terrores
Suores Noturnos

Doenças de todo o mundo, uni-vos!


Cídio Martins, O Doente Imaginário

 



É preciso provocar
sistematicamente confusão.
Isso promove a criatividade.
Tudo aquilo que é contraditório
gera vida.

          Salvador Dali


Mulher,
meu amor
é dor
de falta

O Bacalhau da Noruega
vem do Porto de Cal,
ali começa o fim
do mundo

Agora
todos os homens estão cegos
à tua espera

A espera na esfera

O homem fixado na cruz

Os corações arrebatados

As folhas verdes
secas
dentro dos livros
onde estão escritas
todas as histórias
do mundo

A memória
escorre pelos degraus que se desmancham

A escada perdida
o globo azul
remove
o homem
para baixo
dos Sete Mares


O que farei
com minha morte

Vou chorar
com Alice

Os vaga-mundos
acendem suas bundas
para iluminar o caminho

Os dados pululam
sobre a terra estéril
a Caixa de Pandora
se abre
os ratos da peste
infestam
e os homens estão hipnotizados
pelo flautista de Hamelin

 



O toque de seus
dedos me traz a calma


a pequena cintura
agarrada

olho os pequenos seios
pela blusa folgada

sugar a boca
com as narinas encostadas

respirar o cheiro

enterrar os dedos
na curta crina negra

sentir o gosto salgado
da pele

ombros
costelas
pélvis

a pele estirada
e as pontas ósseas
o roçar
o ventre

passar os dedos
entre os dois
montes lácteos

enterrar a cabeça
por entre as pernas
sugar os pêlos
lamber as axilas

morder a carne
escura dos mamilos rijos

a caixa torácica

penetrar a língua
nos orifícios auriculares

ouvir o mar
       o resfolegar

morrer nos braços
deitar no corpo

transpirar

o falo entumescido
acariciado
por mãos finas

sentir as vértebras
sugar o dorso

marcar com os dentes

abrir a porta
rasgar
a cortina

e a luz
rubra que escorre
no leito de núpcias

lembrar
lembrar

o cheiro
do teu
sexo
em minha mão.

 

 


saiam todos
da minha frente

eu não estou chorando
são os meus olhos que estão chorando

 

à alvibranca mulher sonâmbula

 


inanição

o peixe no aquário

a observar
   observir
   obsentir
o obsceno

o olhar
etílico

putrefação
ilusão

amor te

a incidência
da coincidência
revela a consistência
da insistência

a paciência
passiva

a lascívia

os lábios
vermelhos

 


a pastoral

ele parou um dia
e descansou sob a sombra
da árvore
em sua cabeça
caiu uma jaca

uma vaca pastava
no campo

seu corpo branco
ladeado pelos sete
gatos safados

a lua era
a testemunha

o dente torto
cravado no meu
pescoço

je vous salue

 


o prato e a mesa

a vontade que tenho
é de guardar teus olhos
numa caixa
e comê-los
todas as noites
sempre às nove e meia

elas me almoçam
todas as manhãs

eu comia seus pêssegos
rosados com a testa

 


o verme e a ferrugem

era ferro e ancas

pensa mulher
senão enferruja

manda
  anda
  arranca
  ana

danando-me
no inferno
entre as quatro paredes
com meu velho
inimigo
que mora comigo
no meu umbigo

je vous salue

mafalda
malvada

a carne é forte
a alma é fraca

 

(imagem ©c. martvs)

 
Cídio Martins nasceu em São Paulo em 1972. Graduado em Letras pela FFLCH – USP, poeta, fotógrafo, pintor e gravador. Juntamente com Dirceu Villa, editou a revista de arte Gargântua e foi membro fundador da Editora Badaró, experiência independente que estreou alguns autores entre os anos de 1997 a 2000. Publicou o primeiro e único livro, Do Não Entendimento do Mundo por essa editora e publicou textos na revista Gargântua. Participou também de várias exposições coletivas e tem alguns de seus trabalhos plásticos publicados em revistas, catálogos e livros.