Entre a eterna massificação do cinema com a qual Hollywood geralmente nos brinda e o psicologismo do cinema europeu, podemos assistir sem muitos desgostos ao último filme de Bertolucci. São fartas as referências para os mais cinéfilos, e encontramos ali as músicas, atores e enredos de Truffaut, um personagem de Louis Malle urinando nas pias, as escadarias da Cinemateca Francesa, Henri Langlois, A Chinesa de Godard e tantas outras citações. Algumas explícitas (como quando os personagens vão ao cinema ou quando representam uma cena de um filme qualquer, para que os outros adivinhem o título do mesmo) e outras menos óbvias, o que torna toda a exibição um jogo  que nos faz darmos conta da nossa cultura (ou da falta dela) cinematográfica.

O jovem trio central (um casal de gêmeos franceses e um estudante norte-americano) acaba por se entregar porém a um hedonismo antagônico aos acontecimentos de maio de 68 em Paris, estopim do encontro entre eles, já que é a própria expulsão de Langlois da direção da Cinemateca que os reúne. Vale lembrar que toda massa cerebral parisiense em funcionamento se revoltou com o episódio da demissão, e manifestações não faltaram. Os três então, já alheios aos protestos, se trancam quase que integralmente no apartamento dos gêmeos, para discutir música, cinema, maoísmo, para se descobrirem sexualmente, para experimentar vinhos caros ou haxixe do Nepal, para viver algo até então completamente novo a eles. Tudo é um tanto incestuoso, bissexual e quase pornográfico, mas deve-se reconhecer a economia com a qual o diretor trata as cenas, o que imprime até uma certa elegância ao filme.

Boas referências porém  não garantem  bons filmes. Bertolucci lança mão de personagens estereotipados e a própria Paris é uma maquete daquilo que os norte-americanos pensavam dela. Acompanhe: os franceses cheiram mal (Theo), são inovadores sexualmente (os irmãos dormem nus e juntos), são cultos (o pai é poeta, o apartamento é abarrotado de livros, quadros, esculturas — algumas vivas, como a Vênus/Isa), são avançados na criação dos filhos (quase não interferem, mesmo quando a situação chega ao limite, a mãe pede o silêncio resignado do pai), comem comidas esquisitas e mesmo lixo, se preciso (embora Agnes Varda tenha mostrado recentemente que isso pode ser verdade).

As manifestações de 68 se perdem no roteiro e, no fundo, parece que faziam somente parte do cenário. As discussões sobre tal diretor ou tal músico se limitam ao gosto pessoal dos protagonistas, não levam a nenhuma elucubração mais interessante. Há livros, mas pouco se lê. Aliás, quase não há consistência nos personagens. Isa, aparentemente liberal, é a conservadora de plantão, seja quando interrompe um possível beijo entre os rapazes ou quando seu sentimento de culpa e vergonha perante os pais a faz arriscar a própria vida e a dos outros. Theo também parece uma figura extraterrestre deste planeta chamado Paris, onde as pessoas se despem e se masturbam na frente de hóspedes, onde se pode tranqüilamente fritar uns ovos enquanto outros transam na mesma cozinha. É obvio que tudo isso pode acontecer, mas o que incomoda é que o único a parecer são e normal é justamente o norte-americano (que mantém intacta sua sanidade até mesmo no final). Os franceses são excêntricos, o estrangeiro (que justamente reclama de ser chamado de "alien" pelos parisienses) é ponderado, se parece com a gente, não importa de onde sejamos.  Já vi filmes assim antes, que querem ser europeus, mas que acabam por se tornar uma caricatura somente (como a recente refilmagem de Solaris).

E Bertolucci não pode negar, já aplicou a fórmula antes. O seu O pequeno Buda nos apresenta três crianças candidatas a uma provável reencarnação de um mestre tibetano: uma norte-americana, uma nepalesa e uma indiana. A ocidental é a mais simpática, sábia e humilde, e apesar de todos acabarem tendo sido reconhecidos como o mestre, ela é a única que nos convence. Os tibetanos do filme parecem naturalmente iluminados, mas os yankees descobrem a sabedoria através da perda, da dor e da morte, como nós. As diferenças, neste caso, apenas servem para indicar quem são os esquisitos.

Sobre Os Sonhadores, lamenta-se que um filme com o início tão brilhante acabe servindo só para diversão. E, pior, ao utilizar temas tão caros ao cinema francês a aos cinéfilos em geral de maneira banal, sem propósito, a homenagem (?) que Bertolucci quis fazer acaba tendo um efeito contrário. Por uma questão de respeito, toda a turma do Langlois merecia mais. E o mesmo respeito se reserva a Jules e Jim, caso alguém, equivocadamente, tenha cogitado a comparação.

 

 

 

 

 abril, 2005

 

João Vieira é funcionário público e burocrata, mas vai ao cinema sempre que pode. Considera todo crítico, inclusive ele próprio, um diretor frustrado. Não gosta de polêmicas, mas entre Truffaut e Godard, fica com o homem que amava as mulheres.