O olhar é mais importante do que o falar. O último filme de Fábio Carvalho, O General, é um convite à reflexão. É uma obra difícil para um espectador mediano acostumado com a decupagem clássica hollywoodiana, mas instigante para os apreciadores de um cinema reflexivo e inventivo. Fábio Carvalho retoma a tradição do cinema feito em Belo Horizonte, que é a de discutir e revelar as entranhas da cidade e de seus habitantes como um painel multifacetado de personagens poéticos e, ao mesmo tempo, desajustados. O seu média-metragem Conversando Com Bardem já prenunciava esse tipo de abordagem.

 

O texto de abertura é de Carlos Drummond de Andrade, os poemas são de David Neves, falados por Carlos Reichenbach, a ligação dessas três personagens são ingredientes dessa modernidade buscada. Temáticas do cinema da década de 60 voltam como se fosse uma viagem no tempo e no novo cinema mineiro. É, outra vez, o local de enclausuramento, o lócus da solidão, das solidões compartilhadas, do tédio. A cena dos três amigos no banheiro é emblemática e trágica. "É melhor morrer de vodca do que morrer de tédio", a frase é de Maiakovski e chave para o deciframento de partes do filme.

 

A personagem dançando representada por Ingra Liberato lembra o filme Pastores Desavisados, de Ricardo Teixeira de Salles, quando Marilena Martins dançava um balé etéreo, repetitivo e sem perspectivas. Aqui, agora, quem dança com ela é Paulo César Saraceni, com o letreiro "o cinema nasceu mudo", reforçando mais uma vez a necessidade da fala.

 

Retoma, ainda, os filmes de José (Zezinho) Sette de Barros, Goeldi, Um Filme 100% Brasileiro, com o mesmo Guaracy Rodrigues, que, no filme de Zezinho, faz o cicerone de Blaise Cendras em sua visita ao Brasil; no General, é um personagem lunático, embevecido com as menininhas dos bares da cidade. Guará é um capítulo à parte. Seu olhar inquisidor, sem nada dizer, mas dizendo tudo, vale o filme. Que olhar é esse, procurando aquele belo horizonte perdido? Outra referência é o Bang-Bang de Andréa Tonacci, nessa busca de dissecar e analisar a cidade, com o diálogo/monólogo de Milton Gontijo e Pereio, onde as pessoas falam e ninguém escuta. No General, o mendigo, vivido magnificamente por Ronaldo Brandão, retoma a questão: discute ética e moral com um cidadão de terno (Neville d'Almeida), presumidamente um político que se nega a olhar e a ver o povo, cada um segue com seu monólogo. Os personagens se sucedem; o amolador de faca com seu canto triste e ritmado, os funcionários da SLU andando despreocupadamente pela praça Raul Soares, sem rumo e sem direção, a garota da praça que tenta tocar um solo de flauta, mas desiste por total falta de inspiração. São gestos inúteis, repetidos sem sentido.

 

O General é, sobretudo, um filme musical. As sugestões produzidas pela música nos levam a caminhos ainda não percorridos, induzindo situações que não são aquelas mostradas pela imagem, mas sugeridas pelo som. A seqüência da mulher nua com charuto, pontuada por uma música melodramática, muda o sentido da imagem, tirando a conotação erótica e sensual da cena, cortando para um insert do filme Suzana, Carne y Demônio, de Luís Buñel. Outro momento tocante é Kimura Schetino, vestido com traje a rigor, com toda pompa e circunstância, tocando na gaita Aquarela do Brasil e terminando com o som de uma bandinha desafinada e Guará olhando e sendo olhado, sempre em silêncio.

 

8 e meio de Fellini é intercalado várias vezes durante o filme, até que, em um determinado momento, Guará fala de sua paixão por Marcelo Mastroianni e Claudia Cardinale e uma mão acaricia o filme na tela da televisão. É uma relação amorosa entre o diretor e seu objeto. Guará brincando com as atrizes Isabel Lacerda e Eleonora Mendes saiu diretamente de um filme de Fellini.

 

Fábio Carvalho não esquece de outro diretor cultuado pela geração de 60, John Cassavetes, presente com o filme Faces. O seu compromisso com o cinema é tão grande que não se preocupa em momento algum em agradar ou desagradar alguém. É um poema de amor a Belo Horizonte, uma cidade estranha, esquisita mesmo, mas é aqui que vivem estes personagens que transitam por ela. A longa seqüência final mostra uma janela como se fossem diversos fotogramas de uma mesma paisagem, Belo Horizonte múltipla, poética, patética e cômica. E esse é o seu olhar comprometido com um modo diferente de mostrar e ver as coisas. O General não é um filme de público, mas, com certeza, provocará número infindável de discussões.

 

Algumas pessoas com quem convivo dizem que para um filme dar certo precisa ser comunicativo, estar sintonizado com o mercado, agradar ao público, em primeiro lugar. E onde fica o prazer do fazer cinematográfico? Da experimentação? Cinema de ser brincadeira, jogo lúdico, embuste, enganar o público, indicar caminhos que levem a pistas falsas, construir personagens misteriosos, reverter à culpabilidade, indicar inocentes. Tudo isso pode ser Hitchcock ou David Lynch. Por isso são muitas vezes execrados e incompreendidos pela crítica, por que não se levam a sério. Cinema, sobretudo, deve ser uma paixão e um prazer para quem faz.

 

 
 
 
 
 
agosto, 2006
 

 

José Américo Ribeiro (Belo Horizonte-MG). Cineasta e professor titular aposentado do Departamento de Fotografia e Cinema da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG). Doutor em Artes (Cinema) pela Escola de Comunicação e Arte da Universidade de Sâo Paulo (USP). Mestre em Artes (Produção Cinematográfica) pelo Department of Photografy and Cinema, The Ohio State University, Collumbus, Ohio, USA. Realizou inúmeros curtas-metragens, entre eles, Morte branca (1968, Menção Honrosa no IV Festival de Cinema Amador JB Mesbla, Prêmio Rádio Jornal do Brasil); Morro Velho (1973, 35 mm); Festa no país das Gerais (1978, 35 mm) e Castigo (2002, 35 mm). Autor do livro O cinema em Belo Horizonte: do cineclubismo à produção cinematográfica na década de 60 (Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997).