A França continua provando que não há cinema adulto no mundo que supere a qualidade da sua produção. Irmãos (2002), de Patrice Chéreau, é um destes exemplos contundentes. Exibido no Brasil com três anos de atraso e pouco visto por aqui, este filme abusa exemplarmente de um realismo extremo e admirável.
 
Acompanhamos o quase inexistente relacionamento entre dois irmãos, Luc e Thomas, que há muito não se falam. A inesperada doença hemorrágica de Thomas os aproxima de  maneira indesejada. Aos poucos, a relação entre os irmãos começa a florescer, embora sem nenhuma afetação sentimental. Ao enredo se acrescenta ainda o homossexualismo de Luc, o casamento insustentável de Thomas e a interferência desnecessária dos pais de ambos, incapazes de lidar com a enfermidade desconhecida e incurável do filho. O ambiente médico predomina e somos inseridos numa desagradável rotina  hospitalar — o doente e suas falências, sua depilação pré-cirúrgica sem fim, seu corpo debilitado andando na praia e sua luta resignada. Cada nova esperança de cura se revela inócua e os médicos se mostram tão incapazes quanto o paciente.
 
É preciso registrar que o diretor, talvez para se desvencilhar de um certo didatismo, subverte a  cronologia das cenas do filme, o que torna mais aguçado o exercício de observação do espectador — um exemplo disso é  a cicatriz  que aparece em Thomas muito antes da cirurgia que a origina. Assim, não criamos um sentimento de pena por um personagem que se debilita gradativamente, como nos telefilmes norte-americanos, pois ele já se apresenta débil logo no início. Tal escolha do diretor demonstra coragem em abrir mão da empatia do espectador pelo sofrimento do protagonista. Chéreau aposta nas relações que o filme lentamente tece com seu público.
 
O ator Bruno Todeschini, que interpreta o enfermo, perdeu doze quilos para o papel, empenho talvez fruto da rotina de teatro dos protagonistas e do diretor, que também cuida também da direção dos atores. Nota-se ainda a opção em não se utilizar de música, como num silêncio de  hospital, a não ser pela indispensável canção de Marianne Faithfull, que ilustra bem o delírio momentâneo de um dos personagens.
 
Vencedor do Urso de Prata em Berlim (2003), Irmãos é uma valiosa e honesta aula de cinema realista para quem aprecia o gênero, muito além dos famosos filmes iranianos. Num aparte confessional e curioso, percebi que saí do cinema com febre. Insone, tive então muito tempo para rever mentalmente esta pequena e incômoda obra-prima.

 

 

 

 

 outubro, 2005

 

João Vieira é funcionário público e burocrata, mas vai ao cinema sempre que pode. Considera todo crítico, inclusive ele próprio, um diretor frustrado. Não gosta de polêmicas, mas entre Truffaut e Godard, fica com o homem que amava as mulheres.