"Para David Oscar Vaz, em São Paulo".

 

 

Bem sei que ele não existe, mas sua ativa inexistência me perturba mais que tudo que é vivo. Decretei sua irrealidade, o que foi uma maneira estúpida de bani-lo de minha casa, porque não haveria supressão que o devorasse inteiro, e o decreto só fez criar uma coisa que opera em silêncio, em esconso, em desvão, em oco e adivinhação, resto, ponto de fumaça, falácia de canto de olho, passagem, pergunta. O decreto deu-lhe a consistência de tudo quanto é ardentemente negado, escamoteado.

Ele se instalou assim, nem revelia, mas suposição irritada, nesses cômodos em que durmo sozinho. No entanto, tem preferência por certo quarto, onde estou certo que entra tarde da noite, quando meu sono me dispensou da tarefa de vigiar não-seres, quando pode contar com um silêncio de silêncios. Penso que essa — o quê? criatura? — precisa descansar de minha vigília, de minha vontade de capturá-la, entendê-la, e, portanto, privá-la da razão de ser. Sua defesa reside nessas horas em que minha consciência já nada pode. Deve precisar dormir também, e seu sono emenda com o meu, mas em compartimentos que se roçam com hostilidade incurável. Há uma ameaça de que se encontrem, de que procurem olhar-se face a face, em certos sonhos. Dura pouco, graças aos céus: um dos dois — eu — abre os olhos e pensa que é bem melhor morrer que estar na iminência de certas coisas.

 

Contíguos, estamos sempre. De que se falava no bar, último sábado, quando alguém disse que poucas pessoas são tão distraídas quanto eu? Dois amigos, ambos entreolhando-se, afirmando que é preciso, às vezes, sair em busca de mim como de algo que se afunda. Quais águas? Essas onde peixes interrogativos ondulam, múltiplos, sonolentos — são impensáveis, mas ganham escamas, barbatanas, guelras, tanto os especulamos. Essas águas com as quais pareço ter um acordo. Essas nas quais me refugio de diversões, mas também de compromissos que poderiam fecundar.

Por quê não estar mais atento ao que se quer, ao mundo, ao denso, consistente, claro e possível de coisas e seres? Falar de dinheiro, de mulher, dos tranqüilos tangíveis, daquilo em que uma alma pode se ancorar, certa de que, possuidora de um corpo entre outros corpos, de uma fala como as outras falas, será enfim inteligível? A benção do raso, do igual, do compartilhado. Um deles me pediu que eu acreditasse mais, que eu rezasse. Outro, que eu me fizesse mais acessível a grupos, que eu entendesse o que de abominável podem atrair as obstinadas solidões.

Mas no próprio bar, por um canto, por um lampejo no piso, uma asinha de qualidade extremamente fugaz, inapreensível, entrou. Decididamente, eu não quis mais a conversa. Saí, apressado. Não fugindo, mas procurando lugares onde poderia haver um encontro mais lógico,  mais em meu domínio.

 

Interessei-me por certas particularidades da noite: o que se ouve quando nada mais se ouve, e a cidade, esta, pode ser extraordinariamente quieta, em certas horas. Pelos lados do parque, uma insinuação de água, como que um gemido engolido por um tanque no escuro, alguma bolha interrogativa que pode emergir entre nenúfar e musgo, denuncia uma das passagens. Deve ser a do homem que afogou-se, e tem, na madrugada, uma brecha para vir à superfície, recordar, repetir que era questão de segundos, que era questão de alguém ter olhado, que era... A qualidade do canto de certos pássaros noturnos precede a chegada de uma mulher que, morta, nunca morreu, e pode estar querendo não que se reze por ela, mas que se dê fim a qualquer possibilidade de sobrevivência do espírito, isto a definição de alma penada.

Não estou lá, mas posso ver as aléias, posso me arrepiar do frio dessas penas, acrescentado ao frio natural da hora, e ver as figuras que se esgueiram entre árvores altíssimas, ver, para além, o recorte escuro, intimidador,  dos muitos hotéis, erguidos como jazigos onde almas que repetem velhos gestos, sonham sonhos automatizados, pedem para subir jantares, encomendam flores, e mofam, insatisfeitas,  sem jamais vir às janelas.

E há danças. Em certas noites, falava-se muito, trafegava-se muito, em certo salão de jogo que sobreviveu, no ar. Coisas que rodopiavam, multiplicidade de solas de sapato no soalho, cheiros de colos femininos, três ou quatro violinos procurando afinar-se. Há, solta, muita coisa extraordinária, e basta atentar para o que não parece plausível, deixar a alma em sua função natural de sonho que tudo começa a chegar, a assentar-se, mas, cuidado: não há controle algum sobre o não convocado, que pode entrar.

 

Há tanta maneira de se escudar, de se entreter, de deixar as portas fechadas. A televisão ligada a noite inteira, uma janela que se abre, olhar lá para baixo, adivinhar transeuntes, um serviço de telefone que pode trazer certos alívios, uma série de barricadas que se pode erguer para que essa espécie de loucura — a menos fácil de definir; tomado por ela, pede-se ajuda a quem? — fique esquecida. Antidistônicos, um sanduíche, um CD. Houve terrores maiores, alguns tiraram-me o sono em tempos outros: a preceptora se depara com Peter Quint olhando pela janela e é preciso proteger o inocente; morto um vizinho, suspeito que começo a me parecer com ele, tenho medo, minha voz, meu corpo, o que, de quem, são?; alguém conta que o homem que tínhamos visto, meninos, passar pela rua de noitinha, saudar-nos com um chapéu, era nada menos que um suicida, enforcado, do dia anterior, numa chácara; há, no quintal de uma vizinha, um poço de onde sai, certas madrugadas, um fio de voz de criança, implorando. Tarde demais para ter medo, pensando bem — o que já se viu, o que já se pensou! No entanto, não há repouso.

Sendo assim, que se vigie. No mais quieto, quando já nenhum carro passa e, em torno das luzes, ouve-se tênue conversa de mariposinhas, paredes que se estendem, que são apalpadas por dedos que avançam, há um deslizar imaterial na descida da escada, que é preciso seguir — passos que obedecem a passos, a promessa de que isso se desvende, de que isso se acabe. 

Vi-o, pensei vê-lo, tendo que lidar com trinta possibilidades que se excluíam. O desenho que me foi possível fazer, encontrei-o hoje mesmo, folheando um livro em que tinha pensado poder encontrar explicações, apaziguamentos.  Que é isso? Ave, lagarto, felino, o quê? Traços de lápis de cor, algumas partes em guache, fazem com que se encontrem plumas, escamas, pelos, patas, garras, olhos, obscenidades e  uma imprecisão que é tanto mais imprecisa porque o desenho acumula, acumula, não parecendo poder deixar de acumular, mais um detalhe, mais uma característica, isto, agora, ainda não, ainda não, tal qual a cabeça que o faz, aturdida. Não é guia para nada. Tenho que lidar com a crueza viva, agora indiscernível, não fosse por uma tira de sombra — ai, tão passageira! — que supus ali, sob uma das mesas. Como seguir, como acuar isso?

A atenção se quebra, há muito sono, a casa parece de uma quietude em que se pode adivinhar cada coisa cumprindo a sua imutabilidade, a sua tranqüilizadora inércia, na mais perfeita obediência a um quadro mental bem estabelecido, uma cristaleira como cristaleira, um sofá como sofá, só firmes inexistências, só densidades domadas.  A atenção retorna, não há o que escape a esses ouvidos. Um gemidinho. Subir. É no quarto, o quarto que a abominação prefere. Aquele.

Ah, bem, agora está mais claro, cheguei no momento, é possível intuir que uma coisa se mexeu, se escondeu, surpreendida, num canto onde há jornais e revistas empilhados. Algo, de cócoras, tentando enfiar-se, enrodilhar-se, sumir.

Pego, sinto o vago de pluma e escama, o peso de um viscoso, puxo, puxo um corpo que continua impreciso, puxo, agarro a nuca, forçar, forçar, forçar, forçar para que me olhe, me responda, me explique, se deixando ver, derrotar. A respiração acusa o não poder com meu aperto, choro (aquilo é choro?) pelo que vai parecendo um estrangulamento, e, ainda assim, nada de virar-se, de mostrar o rosto — pelo que é necessário mais força, matar, matar, se isso não se quiser decifrar vivo. Quando me dou conta, tenho na mão, no olho potente, como que diante de uma janela onde o sol se desse de tal modo que não subsistisse um só empecilho à visão, um rosto. Cada pelo, cada fibra, o olho, a boca, cada poro, cada acne, tudo é eu. Já nem sei se é minha ou dele a voz que implora:

— Tenha piedade de mim.

 

 

Chico Lopes (Novo Horizonte - SP, 1952). Escritor, jornalista, crítico de cinema. Vive em Poços de Caldas-MG, desde 1992, onde é programador e apresentador de filmes no Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles-IMS (Casa da Cultura). Casado com a mineira (de Botelhos) Maria Vitória da Costa, pai de Elisa. Foi editor de cultura e manteve por cinco anos colunas de cinema e livros no Diário Mantiqueira, de Poços. Hoje, tem coluna mensal fixa no jornal Brand News, também de Poços. Escreve regularmente no site Verdes Trigos. Em 2004, a editora Landmark, de SP, publicou em edição bilíngüe sua tradução para o clássico A volta do parafuso, de Henry James. Tem contos publicados na revista Cult; no jornal Rascunho, de Curitiba; no Suplemento Literário de Minas Gerais, de Belo Horizonte e na revista Jandira, de Juiz de Fora. Publicou Nó de sombras (São Paulo: IMS, 2000) e Dobras da Noite (São Paulo: IMS, 2004). Participou da Antologia do conto brasiliense, organizada por Ronaldo Cagiano, e da antologia Cenas da favela, organizada por Nelson de Oliveira, a ser lançada no segundo semestre de 2005.