Como diria
Borges, o que segue é verdadeiro, excetuando-se os nomes próprios,
lugares e datas. A história é
conhecida, mas vale a pena relatá-la aos mais jovens: corria
o ano de 1905, na cidade de Buenos Aires, já a cosmopolita
capital do território que, um par de décadas antes,
havia concluído a matança de seus índios e optado
pelo nome de República Argentina. O perfil da cidade se alterara
bastante com a imigração, predominantemente operária
e européia. No começo do século XX só
os Estados Unidos receberam mais imigrantes que a Argentina. Vinham
da Itália, Rússia, Europa central, Espanha. A maioria
da Itália. No bairro operário de La Boca, havia dois
times de futebol, River Plate e Boca Juniors. O bairro era da colônia
italiana, mas os nomes dos times já mostram que, em matéria
de futebol, a herança inglesa não se apaga facilmente.
O
diacho é que não só tinham o mesmo bairro-sede,
mas também idênticos uniformes: camisa branca com listras
transversais vermelhas, como a seleção peruana. Habitar
a mesma sede, vá lá, mas camisa igual ninguém
agüenta. Foi marcada uma partida para decidir a questão.
O acordo que fizeram essas duas equipes, no longínquo ano de
1905, sempre me pareceu um testemunho dessa máquina insólita
que é o futebol: o vencedor manteria a camisa, mas teria que
se mudar do bairro. O perdedor continuaria em La Boca, mas teria que
arranjar outro uniforme. Só mesmo no futebol trocar de casa
é mais fácil e aceitável que trocar de camisa.
Trocar de partido, de mulher, de bairro, tudo isso não é
nada. Trocar de camisa, eis aí a verdadeira punição.
A
peleja foi disputada como o são todas as pelejas argentinas:
brigada no meio campo, com muita catimba e provocação.
Afinal de contas estava em jogo, literalmente, a camisa. A vitória
foi dos alvi-rubros do River, que comemoraram a vitória como
nunca; afinal de contas, mantinham o manto sagrado. Teriam que se
mudar, mas encontrar outra sede não é nada para quem
pode manter a camisa. Mudaram-se para o bairro de Nuñez, onde
permanecem até hoje, e onde construiriam o Monumental estádio
onde a Argentina ganharia seu primeiro título mundial, exatamente
quarenta anos depois de sua inaguração.
Os
então alvi-rubros do Boca Juniors, se tinham como prêmio
de consolação manter a sede em La Boca, viam-se agora
com a obrigação de encontrar outro uniforme. A solução
é outra pérola do folclore futebolístico. Buenos
Aires, então o porto mais importante da América Latina
ao lado do Rio de Janeiro, recebia diariamente navios das latitudes
mais variadas. Decidiu-se que as cores do time seriam as cores do
primeiro navio que chegasse ao porto. Eis que chega um navio sueco,
com a tradicional bandeira azul e amarela, e o povo pobre de La Boca
passa a representar sua paixão pelo Boca nas cores suecas.
A mais fanática torcida do mundo tinha agora outro uniforme:
seria azul, com uma listra horizontal amarela. Como as paixões
futebolísticas são decididas por acidentes, por contingências,
por acontecimentos absolutamente desprovidos de qualquer necessidade
ou previsibilidade, eis aí o verdadeiro mistério da
fé.
A
origem de Boca e River mostra que no futebol o sagrado não
é a casa, é a camisa. E que a origem desse sagrado é
sempre profana, acidental. Para que o sagrado mantenha sua mística,
entretanto, sua origem profana deve ser ao mesmo tempo cultuada e
escondida. Quantos de nós nos recusamos diariamente a declarar
como nos apaixonamos por um time? Ao declararmos a origem de
uma paixão, esta paixão de alguma maneira perde seu
encanto, pois é remetida à banalidade dos acidentes
cotidianos.
É
próprio do futebol que, com o tempo, o que era causa vire conseqüência.
Na copa de 78, o craque Johanssen, reserva da seleção
sueca e formado em jornalismo, teve que ouvir uma insólita
pergunta de um torcedor: "É verdade que essas cores de
vocês foram inspiradas no uniforme do grande Boca?". A
esse torcedor, apaixonado, jamais lhe poderia ocorrer que a Suécia
é mais antiga que o Boca Juniors. Johanssen, inteligente e
conhecedor da mística do futebol, deu um sorriso maroto e respondeu:
Sim, é verdade...
dezembro,
2005
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