Uma das instituições saborosas que o gênero conversa sobre futebol legou à cultura é a inevitável seleção de todos os tempos, a escolha dos melhores em cada posição, os 11 verdadeiramente supimpas que jogaram por cada clube, por cada país ou pelo planeta. Esse gênero, praticado por fanáticos de futebol de todas as gerações, compara os craques de diferentes épocas. Padece, portanto, de uma assimetria: só uma parcela ínfima do eleitorado viu Domingos da Guia, Leônidas ou Patesko jogar. Uma parcela maior, mas também pequena, tem anos suficientes para ter visto Zizinho ou Ademir de Menezes, ao vivo. Hoje em dia, já bem mais de 50% da população brasileira é jovem o bastante para jamais ter visto o Rei Pelé em ação. Como escalar qualquer seleção de todos os tempos numa mesa em que a maioria começou a curtir futebol vendo Zico? E uma boa parte nem de Zico se lembra, já que foi introduzida aos encantos da bola por Bebeto e Romário? Aí é que entra o papel do videotape, mas não só do vídeo: mais que qualquer outra coisa, entra aí o papel do anedotário, da contística, das lendas do futebol, propagadas oralmente e por escrito.
Há sempre nomes que são indiscutíveis. Por exemplo, uma seleção do Botafogo que não escale Nilton Santos na lateral-esquerda é piada. Não importa que você jamais tenha visto a Enciclopédia jogar; sua superioridade é tão consensual, dentro do universo dos apaixonados por futebol, que o lugar está garantido. Os mais velhos assinam embaixo e fim de papo. Tão inconcebível como um Botafogo de todos os tempos sem Nilton Santos, seria um Flamengo de todos os tempos sem Zizinho, um River de todos os tempos sem Pedernera, um São Paulo de todos os tempos sem Leônidas, um Verdão de todos os tempos sem Ademir da Guia.
Há outras posições onde encontramos pelejas intergeração e os mais jovens encontram bons argumentos para defender suas escolhas: quem é o maior goleiro do Galo em todos os tempos? Quem tem mais de 65 anos dirá Kafunga, os que têm entre 60 e 45 dirão Mazurkiewski, os balzaquianos dirão João Leite, e os eleitores jovens dirão Taffarel. Algum imberbe dirá Velloso. É batata, pode experimentar. Viaje à nação tricolor gaúcha e pergunte quem foi seu maior lateral-esquerdo. Quem se lembra de Médici, do Tropicalismo e de Flávio Cavalcanti, dirá Everaldo, o tricampeão mundial. Os ligeiramente mais jovens dirão Paulo Roberto, o campeão brasileiro. Os muito jovens podem se enrolar com a pergunta, por falta de opções mais recentes.
Emblemática é a história daquele atleticano de 40 e poucos, que, interrogado numa mesa de fanáticos sobre qual seria seu Galo de todos os tempos, respondeu sem titubear: "Entre os que eu não vi, seria Kafunga, Murilo e Ramos; Mexicano, Zé do Monte e Cincunegui; Lucas, Said, Mário de Castro, Carlyle e Ubaldo". Escalou o time assim, no antigo formato. Depois disse: "Entre os que eu vi, é mais fácil: João Leite, Nelinho, Vantuir, Luisinho, Paulo Roberto; Cerezzo, Paulo Isidoro e Palhinha; Dadá, Reinaldo e Éder. Como técnico, Telê Santana, tanto para os que eu vi, como para os que eu não vi."
Como os mais jovens podem orientar-se nessa selva? Que dizer, quando os mais velhos insistem que tal zagueiro do passado era infinitamente superior? Há alguns testes que podem ajudar os mais jovens a fazer suas escolhas:
1 – Se você é um palmeirense de 50 e poucos, em dúvida, entre o Luís Pereira, que você viu jogar, e o Domingos da Guia, que você não viu, e que seu tio idolatra, traga a seu tio alguns poucos poemas de Paulo Leminski. Leia-os em conjunção com os sonetos tardios de Olavo Bilac. Se seu tio tiver o bom-senso de concordar que Leminski é muito superior a Bilac, que ele limpa a área do sentido muito mais elegantemente, isso confirmará que a idolatria de seu tio pelo Divino não é mero passadismo. Você poderá, então, concordar com ele, que o banco estará de bom-tamanho para Luisão Pereira. Se seu tio achar o Bilac tardio mais interessante que Leminski, não confie em nada do que ele diga e procure outro vovô.
2 – Se você é um flamenguista de 50 e poucos, que, para escalar o Mengão de todos os tempos com Zizinho e Zico, como deve ser, precisa deixar de fora ou o Adílio, que você ama, ou o Dida, artilheiro que seu pai viu jogar e venera, traga a seu velho uma amostra do som epigonal feito por crooners pré-bossa nova, como Dick Farney, e o ouça em conjunção com um disco de Lenine. Se seu velho não tiver sensibilidade para reconhecer que a tabelinha realizada por Lenine, entre a melodia e o ritmo, é superior ao monocromatismo dos crooners, deixe Dida no banco, tranqüilo, esperando pela chance de fazer seus gols só no caso, improvável, de que Zizinho, Zico e Adílio não triturem o adversário com 3 ou 4 gols no primeiro tempo.
3 – Se você é botafoguense ou cruzeirense, procure alguém de mais de 55 anos que tenha visto jogar Didi e Garrincha, Tostão e Dirceu Lopes. Peça que ele escale a seleção. Conforme-se com o fato de que você não nasceu cedo o suficiente para votar contra Jânio Quadros. Esqueça os testes e lamente os tempos que não voltam mais.
março, 2006
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