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Em Natália, Jussara Salazar foge de receitas fáceis

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         A arte só se repete como paródia. Porque seria muito cômodo colocar Natália, novo livro de poemas da pernambucana-paranaense Jussara Salazar entre as manifestações de um hipotético neo-barroco, por causa da superfície dos  textos. Trata-se no geral de uma prosa carregada de voltagem poética, na qual, porém, o elemento desestabilizador do verso se apresenta como realidade e potência. Existe também a inspiração maneirista, mas isso pode ser uma armadilha. Em lugar da convenção, temos o esforço disciplinado no limite pela criação de imagens próprias, ou seja, que só farão sentido dentro do território da autora. E também não ajudará muito se alguém lembrar a idéia de que o barroco se alterna com os períodos de classicismo. Neste caso, teríamos de saber em primeiro lugar a qual classicismo Jussara Salazar se oporia.

Octavio Paz indicou muito bem a direção, em um de seus ensaios, ao dizer que Góngora era complicado, enquanto Rimbaud era obscuro, misterioso. Nos textos do gênio cordobês, a decifração revela claridades? Não foi à toa que Borges criou um de seus mais brilhantes versos chamando-o Góngora de Oro. Rimbaud arrasta o leitor para as dúvidas do seu inferno, ou seja, as aporias da contemporaneidade. A coerência, a disciplina, digamos o capricho com que Salazar trabalha suas composições em que o lúdico predomina, mas em função do que só se deixará vislumbrar caso o leitor esteja disposto a seguir a autora na sua busca de música e sentidos aleatórios. Não há contra-senso aqui: nada mais rigoroso do que o jogo de azar, cujas regras escapam ao jogador, empenhado no esforço da decifração mas sabendo, o resultado nunca está garantido. O conflito se consubstancia na dramaticidade do texto pespontado de termos não portugueses, mistura anacrônica de épocas, geografias e culturas sob a luz equívoca de uma religiosidade que vai do bíblico ao pagão: ?Por supuesto na terceira casa de copas viviam eles pigmeus da epiderme azul de estatura ni mor nunca que um côvado bradando ao monge aos chascos ruidosos e nanicos. Nerval que os benza, zambos cianos enamorados de Florinda...? Florinda é logo apontada como ?atriz do voluptuoso Cine-Teatro Barroco?, com ?dedos qual telaraña nocturna y fetichista em su collant tigrado? (pág. 9).

O humor do trecho e de outros traz mais à evidência o motivo pós-moderno, o pastiche calculado, do que uma identificação facilitária. Os textos de Natália impõem a procura pelos desvios, a partir da dedicatória explicando o título. Natália é um mito familiar da autora, nascida na Caruaru (onde viveu por pouco tempo) dos repentistas, dos ceramistas, da antiga feira onde se misturavam quinquilharias, badulaques, víveres, tradições e novidades, onde Mãe Amara foi rainha das artes culinárias, terra de José Condé, Aguinaldo Silva, etc. Natália, tia-avó da escritora, foi amaldiçoada pela família por ter transgredido as normas do chamado bom comportamento, assumindo o direito à liberdade. Aí se encontra, como sugere Victor Sosa em um dos artigos que fecham o volume, uma pista segura para o leitor indeciso e perplexo. Além do mais, a questão feminina é trabalhada também na expressão literária e plástica, pois Jussara fez o projeto gráfico do livro. Esse artigo é precedido por um texto do ensaísta e poeta César Leal. Este chama atenção para o desafio a que Jussara se propõe, ao evitar, entre outras coisas, receitas modernistas de aceitação mais segura.

Isso pressupõe a atitude contrária da autora, reforçando a idéia de que a melhor crítica de arte é aquela feita dentro da própria arte, do diálogo direto ou indireto entre o escritor ou pintor do momento e o passado imediato ou remoto. No caso, o passado recebe tratamento de relicário: o kitsch, o clichê, são retrabalhados em função de uma pureza impossível, porque mera ideologia. Impossibilidade que, entre outras, formam o caos dos faustos mal-ajambrados e mefistos de mafuás internéticos, angustiados com o esvaziamento de suas supostas essências: a busca de identidade num século 17 virtual se revelará apenas frustrante. A releitura que ela faz de um texto do século 12, reeditando-o (págs. 43-44) mostra-se iluminadora, neste sentido, sem contar o impacto estético obtido. A identidade se torna tão fugidia quanto as metáforas de Salazar em seus retábulos divertidamente profanados. A epígrafe, retirada de um trecho da tradução bíblica de João Ferreira de Almeida (a melhor já feita em português), de um trecho sobre o Templo de Jerusalém, soa como o eco permanente de suas quedas. A paródia, trabalhada como exercício distorcido da consciência, está longe de ser um brinquedo inconseqüente. Torna-se poesia e, paradoxalmente, certo tipo de revelação.

 

 

 

O livro: Jussara Salazar. Natália. São Paulo: Travessa dos Editores, 2004.

 

abril, 2005

 

(Texto originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo)

 

 

 

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