Existem várias e boas traduções da Bíblia em português. Uma grande tradução é reconhecidamente aquela de João Ferreira de Almeida (a fiel), pela qualidade literária. A Bíblia de Jerusalém é uma das versões autorizadas para uso em pesquisa, etc. Católicos ou protestantes, cada um conta com a sua Bíblia, com o objetivo de atingir a verdade do texto original. No Brasil, onde existe vida judaica organizada há quase dois séculos, tinham aparecido as versões do Pentateuco (Torá), feita por Matsliah Melamed (Ed. Sêfer), e A Torá Viva (Ed. Maayanot). Faltava a parte complementar do conjunto, que forma a Bíblia Hebraica: Profetas e Escritos.

 

A questão que se colocava: o que fazer quando se tratava de estudar essa literatura específica numa escola judaica, antes do conhecimento suficiente do hebraico, ou quando um judeu pretendia ler a Bíblia Hebraica em português? Era preciso recorrer às traduções em voga e adaptá-las à linha de pensamento exigida.  Por isso, o editor e tradutor Jairo Fridlin, que tem larga experiência em escolas judaicas, reuniu um grupo de tradutores, educadores e rabinos para resolver o problema. O resultado é esta edição da Bíblia Hebraica em português (Sêfer). Sem contar o serviço prestado aos fiéis e a contribuição para o diálogo entre as religiões, que se iluminam reciprocamente, os especialistas têm agora mais um elemento complicador e enriquecedor. 

 

Fridlin e David Gorodovits se encarregaram da tradução, enquanto Uri Lam (responsável pela façanha pioneira que foi tornar acessível em português O Guia dos Perplexos, de Maimônides), secretariou o grupo, e os demais se encarregaram de revisão técnica e outros tipos de assessoria especialializada. Para chegar ao texto final, a equipe utilizou-se dos grandes exegetas antigos, que incluem desde rabinos talmúdicos e o tradutor aramaico Ônkelos, até os medievais Shelomô Itshak (Rashi), Ibn Ezra, Nahmânides, Maimônides, dom Isaac Abravanel, etc. Possíveis diferenças com outras versões nem sempre são tão claras e podem obedecer a critérios eruditos e sutis, com implicações interpretativas em diversas áreas. Um exemplo disso está em Êxodo, 21:8, que pode dar idéia da complexidade em pauta, pois, como sabemos, a Bíblia é um livro muito difícil em qualquer idioma.

 

Trata-se do caso em que um pai vende a filha como serva e as conseqüências do ato. Diz o versículo: "Se for má aos olhos de seu senhor para consagrá-la para si, ou remi-la, não poderá vendê-la (nem o pai) a outro homem após tê-lo servido e não havê-la desposado." O nó aqui está em "outro homem". O original hebraico refere-se a "povo estranho", o que é observado por Ferreira de Almeida e pela Bíblia de Jerusalém. No entanto, Ônkelos traduz para "outro homem", assim como rabinos antigos entendem o versículo. Nada aqui é pacífico e não é este o espaço para entrarmos em análises do ponto, mas, polêmicas à parte, os tradutores da Bíblia Hebraica seguiram a própria tradição, que se explica nela mesma.

 

Os caminhos de contrastes e confrontos sugeridos a partir daí são suficientes para estimular o estudo e a boa polêmica. Não há, enfim, motivo para se considerar esta nova tradução uma redundância, diante da quantidade de traduções existentes. Até porque, como enfatizam os editores, não se conhece até hoje um esforço semelhante em língua portuguesa, mesmo no passado da Península Ibérica anterior à inquisição e à expulsão dos seguidores de Moisés. Além disso, qualquer texto só pode ser lido à luz do momento presente, e as análises e mais conclusões dependem do enfoque do leitor. Por esses motivos, a publicação não pode passar sem registro ela tem, entre outros méritos, evidente peso histórico.

 

 

[Publicado no jornal O Estado de São Paulo, Caderno 2]

 

 

 

 

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Bíblia Hebraica. Tradução de David Gorodovits e Jairo Fridlin.

São Paulo: Editora e Livraria Sêfer, 2006.

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novembro/dezembro, 2006

 

 

 

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