O livro de ensaios do poeta Carlos Felipe Moisés, Poesia & Utopia (Escrituras, 143 págs.) lembra O Evangelho na Taba, de Osman Lins. Pelo gênero, ensaio, também pela preocupação política, obviamente ligada à urbe mas na perspectiva ampla da história da civilização — das idéias platônicas até o processo de globalização da atualidade. Suas perguntas básicas não são nem um pouco "novas", mas por isso mesmo são pertinentes: para que serve a poesia, por que se escreve tanta poesia, de acordo com os índices da internet: em 2006 o Google indicava 8.410.000 ocorrências para o termo, conforme Moisés. No dia 24 de maio de 2007, às 13h20,  esse número chegava a 31.100.000 (em inglês, 132.000.000).         

Ainda: por que o poeta deveria ser excluído da República? E se apesar de tudo, ele persiste, qual a sua "função social", e do que escreve? O autor não tem ponto de partida abstrato, mas bem concreto. Analisa o papel da educação dentro do aparato institucional, seus mecanismos, e o mencionado processo da globalização. A poesia também tem um papel formador, mas não exatamente igual ao da educação institucional, se esta for reduzida à função reprodutora de informações, um instrumento de poder:

         "Muitos haverá que vejam, neste mundo globalizado, em que nos é dado viver, neste mundo regido pelo dogma da Produtividade, do Lucro e do Consumo, o melhor dos mundos, a realização da utopia. Já outros o verão como anti-utopia. Num caso e noutro, o resultado é o mesmo: não temos escolha. Eis aí a Verdade única do nosso tempo, como afiançam, enem perdem tempo em discuti-lo, os filósofos e os educadores da república que nos coube" (Pág. 38).

         Ao saber funcionalizado (negação do saber), a poesia responde com a ignorância de suas iluminações. Como o autor escreve: "Não seria o caso de voltar a indagar (enquanto isso for possível): para que serve a poesia? E repetir: a poesia nos ensina a ver como se víssemos pela primeira vez" (idem). No entanto, para que isso ocorra, o poeta precisa, em primeiro lugar, se livrar de toda pretensão a ingenuidade. O poeta e a poesia são tolerados como anacronismos inúteis porque a capacidade para absorvê-los através das armadilhas menos suspeitadas é permanente. O ineditismo procurado pelo poeta (ver o segundo ensaio, Make it new), entra rapidamente na linguagem do mercado, que a neutraliza. A matriz desse título, detectada e lida por Ezra Pound, que corre mundo, pode em conseqüência tornar-se tanto um slogan publicitário, moeda de consumo, confundindo a paisagem, cegando o leitor, como a sugestão de uma constante volta às origens e suas possíveis reinterpretações.

          A propósito, pode-se lembrar a história bíblica de Babel. Naquele tempo os homens falavam uma só língua e então resolveram erguer uma torre que os levasse ao céu. Deus não gosta da idéia e promove a confusão das línguas. Era preciso buscar os significados das palavras do outro para entendê-lo. O que parece uma punição, no entanto, é visto como uma espécie de momento redentor pelo rabino italiano Ovádia Sforno (1475-1550), que em seu comentário à passagem indica uma oposição entre o totalitarismo e a prepotência da língua única e a variedade democrática de sua confusão. No terreno em que nos encontramos, ou seja, da defesa da poesia, pode-se entender sua função na mesma linha. À homogeneização neutralizante, o poeta opõe a disjunção do novo, que recupera a graça perdida. Pouco importa a tradição seguida ou a linguagem empregada, estamos diante de uma utopia que se renova.

          Como o autor informa, os cinco ensaios do volume podem ser lidos de modo independente. São eles: Poesia & Utopia, Make it New, Pelos olhos epelos ouvidos, Da praça pública à mansarda e A hora da poesia. Sem dúvida, mas a leitura de todo o conjunto não pode ser desprezada, pois os textos demonstram uma concepção madura, coerente, conseqüente. Moisés, mesmo sem fazer isso de maneira ostensiva, não esquece em nenhum momento sua larga experiência de docente e também de poeta. Deve-se portanto ter em conta que cada página deste livro, muito bem escrito em linguagem clara, com temperos  irônicos, reflete toda uma vida dedicada aos temas em pauta, todos amarrados uns aos outros, numa síntese. Uma reflexão sobre o estar aqui do intelectual, do poeta, do cidadão.

 

 

[Publicado no jornal O Estado de São Paulo, edição de 17 de junho de 2007]

 

 

 

 

junho, 2007

 

 

 

elenco@germinaliteratura.com.br