©Gougon (Carlos Drummond: painel para Academia do DF)

 
 
 
 
                                                                    




Há uma passagem inesquecível de Mário de Andrade a respeito de Drummond, oportuna para as comemorações dos 20 anos da morte do poeta mineiro. Ao comentar poemas do então jovem escritor, o rapsodo de Macunaíma fazia reserva ao excesso de inteligência que permeava os textos de Drummond. Uma espécie de impedimento, uma trava que poderia desviar a expressão poética, reduzindo-a a um brinquedo intelectual. Conclui-se: o ideal seria que Drummond pusesse de lado a consciência aguda e se deixasse levar pelo fluxo poético, algo que ninguém sabe direito o que seja. A opinião de Mário é inesquecível exatamente porque tem um efeito contrário ao da intenção. Em vez de permanecer uma crítica negativa, ela se torna ponto de partida para uma leitura de Drummond, da poesia de Drummond, e não da poesia como hipótese geral, impositiva e avessa à idiossincrasia mencionada.

Com a inteligência vem a nota da dúvida, mãe da vigilância que ao contrário do que parecia pensar Mário, fertiliza não só Drummond, mas tornou-se motivo forte para a produção e o estudo da poesia, que deixava de lado a ingenuidade, assim como outras superstições ligadas a ela. O escritor mineiro produziria um efeito duradouro no modo de escrever poesia entre os brasileiros. Basta citar dois textos de Drummond, por sinal dos mais conhecidos: "Poema de Sete Faces" e "No Meio do Caminho". São paródias brilhantes. Textos como esses obrigam o leitor a rever suas leituras, inclusive do próprio Drummond, com certeza o poeta mais estudado neste país — mas não esgotado. Tanto que o maior desafio para quem aceita a incumbência de falar sobre ele é esta: o que dizer que já não foi dito dezenas de vezes?

Neste caso, é preciso lembrar que, para quem lida diretamente com a linguagem poética, não se trata sobretudo de empreender análises, nem de levar em conta nos detalhes o que já se escreveu, mas sim de retornar ao texto limpo e vibrante, que persiste com seus disparos de estrelas. O título inaugural, "Alguma Poesia", é um alerta que o autor faz para si mesmo e um aviso ao leitor e aos literatos: cuidado, a coisa não é bem assim... Não por falsa modéstia do escritor, sim por causa da incerteza cristalina capaz de iluminar e não de impedir o caminho — aquela mesma pedra que, na verdade, leva ao alargamento da estrada.

Essa visada não está ausente de "A Flor e a Náusea", em que temos o homem voltado para as questões da hora — Drummond não se colocava numa posição de isolamento, como se vê pelo seu jornalismo e também pela poesia — feita de palavras, sim, mas sujas de vida. E sem concessões ao clichê e ao fácil: "Não recomponhas / tua sepultada e merencória infância. / Não osciles entre o espelho e a / memória em dissipação".  

Intrigante que um homem com senso crítico agudo e amargo como Drummond tenha se transformado numa virtual unanimidade. Qual o significado disso em termos culturais amplos? Renunciar à inteligência, no caso, talvez levasse à renúncia da dúvida. Mesmo o último poema citado, um exercício sobre o renascimento e a esperança, não produz uma inócua decoração da sala de visitas e sim uma flor um tanto sem graça, até suspeita. Anuncia-se ali uma primavera cinzenta, nada mais. Vire-se com isto: "É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio". Uma flor com raízes no betume e na pedra.

Há uma questão ética aqui — o poeta não pode renunciar a si mesmo. E essa questão faz a ponte entre o poeta para poetas e o "leitor", tido como aquele que vai ao livro para um diálogo com as idéias e as sensibilidades do seu tempo, como material de existência. Em Drummond, encontrará as próprias perplexidades, nada de soluções. E isso só pode acontecer no contato direto, sem intermediários, em seus poemas exigindo sempre um olhar que procure a sintonia da primeira hesitação. A rigor, exige-se do leitor poeta a mesma visão limpa daquele que não escreve. Os diálogos com o texto porém levam a resultados diferentes. O poeta tem em Drummond uma grande lição sobre a arte e o homem em crise. A linguagem enxuta, de recorte áspero, brota com aquela flor mineral — a poesia possível.

Não se pretende de modo algum reduzir a importância das investigações feitas sobre a obra de Drummond. Elas são necessárias, a crítica funciona como um elo entre o trabalho artístico acabado e os vários momentos da história, torna-se uma espécie de extensão da obra original. A propósito, no ano passado o poeta e professor Alcides Vilaça surpreendeu com um belo estudo sobre Drummond. Mas, apesar da função do comentário, este não pode substituir o texto de referência e, quando ameaça substituí-lo, ou beira a perversão ou então destrói o poema. No fundo, como já foi dito, a leitura que se basta como tal funciona de modo parecido. O grande desafio é chegar ao nó do poema com a idéia de que esse nó é irredutível, ou não será.          

Algo como fazer a omelete sem quebrar o ovo. Agora, o ovo precisa ser resistente o bastante. E aí está a prova da releitura. Caso o ovo permaneça intacto, ele continuará a irradiar seu enigma, como a chama de uma vela que não se vê. Ler e reler Drummond, para quem escreve poesia no Brasil, é tarefa permanente, como vemos nos contemporâneos dele e também na produção atual — encontra-se a presença de Drummond em cada esquina da poesia brasileira. E, com ele, mais, ou menos, Murilo Mendes, Dantas Mota, Jorge de Lima, Cecília, Quintana, Cabral, Ferreira Gullar. São vasos comunicantes de afinidades e contrastes.

Drummond leva a eles e eles nos devolvem a Drummond — a leitura se faz urgente e coletiva por necessidade. No país do efeito fácil, da retórica mentirosa, ler Drummond com suas notas irônicas, graves, atritantes, angustiosas, continua obrigatório. Ao que tudo indica, ele errou na profecia, ao dizer a um colega que na atmosfera diluidora e sem memória vigente na terra, ambos silenciariam logo depois da morte. O país sofre de memória fraca, mas na eternidade do momento a leitura de Drummond mostra, até agora, que clássico deve ser o autor cuja ausência se tornou um quebranto permanente. Como esta tantalizante receita de leitura:

"Chega mais perto e contempla as palavras,

cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?"

 

 

[Publicado no jornal O Estado de São Paulo, edição de agosto de 2007]

 

 

 

 

setembro, 2007

 

 

 

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