A grande personagem dos contos que a mineira Guiomar de Grammont criou não aparece nos contos de Sudário (Ateliê, 136 págs, R$ 22) — reflete-se neles. É a narradora, esse ponto de vista oculto que confere unidade à coletânea. Ela será fortemente percebida pelos leitores, mas joga nas sombras. As alterações de seu humor são registradas nas mudanças de ritmo, em alguma notação psicológica, irônica, lírica, mas ela se esquiva. Seu objetivo não é estar no primeiro plano, e sim, como sacerdotiza das sombras, promover o desfile de uma série de retábulos que expõem a outra face das convenções e do seu congelamento extremo no sagrado.

Assim, de modo sistemático, essa personagem anônima vai proferindo suas pragas, virando as coisas pelo avesso para que nada reste do passado. Ora fala através de Medéia enfurecida, ora põe em cena alguns vampiros contemporâneos, ora pela relação a três da mãe, do filho dela com quem mantém relações sexuais, e do amante desse filho que não pode existir fora daquele circuito. Há também o caso do homem que tenta se livrar da mulher mas ela o persegue pois só podem se sustentar no medonho jogo de gato e rato que ela pratica.

Esta a constante: o conflito entre o animalesco em que se resume a chamada alma, e o enquadramento social-religioso que subsiste à força de repressão e da produção incessante de simulacros cuja finalidade é manter a máquina em funcionamento. A função da narradora é desarticular esse discurso. As pulsações afloram e rompem os controles. De repente, surge a mãe que se regozija ao imaginar a natureza feminina do filho em carícias com o primo. É a identificação que passa por cima dos papéis. O que ela não podia expressar, refugiando-se em rabiscos a carvão, ela vê projetado no comportamento do filho.

Um aspecto comum entre as mais diversa situações é a incapacidade de lidar com elas. Passado o limite, as palavras perdem sentido, como quando o pintor faz da tela a própria mortalha, substituindo-a pelo corpo intocável da jovem criada. Ficam os gestos e estes nem sempre podem ser remediados, pois ou provocam uma seqüência incontrolável ou esbarram na morte, essa maneira de colocar um ponto final na angústia contida pelo próprio movimento e seu paroxismo erótico. E ainda na esterilidade do escritor que fica olhando a tela do PC sem saber o que dizer, às voltas com a imagem do ilusionismo provocado por uma virtual prostituta brasileira em Roma. Da janela do gabinete, olha pasmo uma favela paulistana, não como metáfora, mas como a realidade humana acabada. Bosch está ali.

A escritora trabalha com freqüência no limite de prosa e poesia. É na síntese poética que ela procura configurar a intensidade da experiência de suas personagens. Assim como a subjetividade extrema — a atmosfera faz lembrar Cornélio Pena, Lúcio Cardoso ou Autran Dourado. Apesar da presença poética, De Grammont não perde o pé da prosa que o conto requer. A consciência de que se trata de narrativa impede o deslumbramento com as palavras e a diluição da história, como ocorre de modo um tanto freqüente em outros autores. Ao mesmo tempo, nega-se a "baixar" ao tom do meramente anedótico. Em Glória, ironia sobre um escritor incapaz, que sabe disso e também que não terá saída, surgem críticas nesse sentido. Aqui, dirigidas a certa tendência da literatura brasileira de hoje, que recorre a técnicas da ficção policial, na caça ao público, que substitui o compromisso da luta com as palavras.

O volume é formado pelo livro anterior O Fruto de Vosso Ventre (Prêmio Casa de las Américas 1993) mais material inédito.

 

 

[Publicado no suplemento Cultura do jornal O Estado de São Paulo]

 

 

 

 

dezembro, 2007

 

 

 

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