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Após duas tentativas frustradas, Modesto
Carone terminou em abril de 2000 a tradução das 500
páginas de O Castelo, romance inacabado de Franz Kafka, que a Companhia
das Letras anunciaria para publicação sete meses
depois disso. Foram dois anos e três meses de trabalho diário, à tarde e à noite.
Sua aventura de tradutor vem na seqüência
de uma série de encontros com o ficcionista judeu checo Franz Kafka, nascido no dia 3 de julho de 1883 e que viveu
exatos 40 anos e 11 meses, depois de escrever,
conforme críticos diversos, a mais importante obra literária do século
20.
O terceiro, ou quinto, desses encontros
ocorreu em Viena, no ano de 1965, onde, ao chegar, Carone quis conhecer a casa do doutor Sigmund Freud. Sua primeira
mulher, Marilena, era psicanalista e, conhecendo
o lugar, levou-o até lá. Só havia uma placa da Organização Mundial
da Saúde informando que Freud tinha trabalhado
no local de tanto a tanto, ou seja, "a cidade de
Viena, que põe plaquinha em 60 lugares sobre Beethoven", fingia ignorar
o grande médico."Porque o nome dele era um tabu,
por causa do tema que ele tratou e porque havia anti-semitismo
na Áustria, como até hoje." A surpresa foi quando Carone subiu ao
segundo andar, onde era o apartamento de Freud,
e leu a etiqueta metálica de identificação do atual morador.
Estava escrito: "Major Kafka". Carone, sob o impacto do recente golpe
militar em seu país, não queria saber de oficial
nem recruta e se foi, sentindo o gosto do imponderável.
O primeiro encontro ocorreu quando ele
estava com 18 anos e era tradutor de inglês num jornal paulistano, enquanto se preparava para seguir a carreira de Direito.
De repente, comprou um volume em inglês com A
Metamorfose e outros textos. O então futuro escritor cometeu a temeridade
de iniciar a leitura à noite e não conseguiu dormir até terminar o
livro. Foi, ainda, Kafka quem alterou o rumo da vida de Carone, que, já formado em Direito,
decidiu estudar letras anglo-germânicas. O professor
de alemão, chamado Horst Domdey, tinha um método próprio de ensinar o idioma. Em vez de passar lições gramaticais,
apresentou um texto aos estudantes para que, com
as regras de sintaxe, aprendessem a decifrar as frases. Era um capítulo
de O Processo. Carone abandonou o plano de se dedicar ao inglês, trocando-o
pelo alemão. Depois, seguiria para Viena, como
leitor de português na universidade, ao mesmo tempo em
que se aperfeiçoava nos estudos germânicos.
Mas foi somente após 30 anos de leitura
da obra kafkiana que Carone, já autor conhecido e elogiado pela crítica, resolveria traduzir o autor da sua vida, e
isso pode até ser entendido nas duas acepções
possíveis. Em 1983, ano do centenário de Kafka, pediram a ele a tradução
de alguns contos curtos, ou poemas em prosa, que
despertaram em Carone o gosto da tradução.
Além disso, havia o problema das versões
correntes da obra kafkiana no Brasil, que tinham servido para divulgá-lo, mas não se devia considerar, do ponto de
vista literário, que Kafka podia realmente ser
lido em português. Ele cita o exemplo — mortal — de uma passagem soturna em que Kafka descreve o vôo de gralhas (aliás, Kafka quer
dizer gralha) ao redor da torre do castelo. Em
português, coitado do Chico Gralha, lascaram um pelo menos improvável...
enxame de urubus.
Por essas e aquelas, Kafka teve de esperar
até que Carone, traquejado no alemão e exímio no português, com tese sobre Celan e Cabral, se julgasse "autorizado"
a entrar no universo do escritor checo. A propósito,
o acaso também ajudou. Em 84, o futuro editor da Companhia das Letras,
Luiz Schwarcz, sugeriu a Caio Graco, da Brasiliense, onde trabalhava,
a publicação de uma antologia de Kafka, que seria
feita por Carone. Este reagiu: "Antologia não faço, mas traduzo toda a ficção do Kafka, topa?"
Caio topou. E, desde então, ele traduziu
dez obras publicadas em oito volumes, entremeando o trabalho com a redação dos próprios textos. A tarefa do tradutor
se tornou possível porque, graças aos deuses,
ela entra no rol das atividades intelectuais previstas pela Universidade
de São Paulo, onde Carone ensinava e só parou
ao concluir que não estava aprendendo mais. Agora, com quatro livros
de ficção e as 11 traduções, reconhece, o conjunto de sua vida literária
só se completa com as obras de Kafka. E, embora a criação direta seja
mais complicada, é óbvio que escrever com a cabeça
de Kafka para ver como ele falaria em português
não é nada simples. Apesar da prática, por exemplo, Carone, que conhece
muito bem a angústia da tradução, só acertou a
mão com O Castelo na terceira vez. Na primeira, em 83, já
com cem páginas escritas a mão, pois sente-se mais à vontade com lápis
e caderno do que com máquina e computador, percebeu
que não acertara o "tom".
É que Kafka, explica, incorporou à escrita
o sistema burocrático em que vivia, recriando na ficção o estilo protocolar, como forma de registro e ironia. O tradutor
tentava transferir para o português o tortuoso
desse estilo, que reproduz na frase o labirinto sem entrada onde perambulam
seus personagens — e de repente percebeu que estava exagerando na
dose. Jogou tudo fora. A segunda versão chegou
a ter 90 páginas, mas então o problema foi inverso e
o caderno contendo o manuscrito teve o mesmo e justo destino do anterior.
Os perigos são diversos. Entre as muitas
versões de Kafka está um pequeno volume de Jorge Luis
Borges, que traduziu A Metamorfose, vários textos curtos e disse que
ali estava todo o Kafka. Carone conhece o livro,
confessa a maior admiração pelo autor argentino, único latino-americano que pode comparecer ao lado de Machado de Assis,
mas observa que Borges traduziu Kafka como se
o escritor de Praga escrevesse com o estilo do contista de O Aleph.
Na sua opinião, Borges embelezou o sotaque
kafkiano à maneira de Borges, com frases curtas e extremamente elegantes. "Mas a beleza em Kafka é pontuda", diz. E
Carone, num certo sentido mais ambicioso do que
Borges, procura transferir para o português o que Kafka realizava
e de repente podia deixar de lado na sua oficina
literária de maneira compulsiva.
O Castelo foi redigido em seis meses,
quando a tuberculose chegava à fase terminal. O romance ficou sem fim, no meio de uma frase. Kafka informou que tinha abandonado
de vez o livro, passando depois a escrever outra
obra, apesar das hemoptises. Segundo Max Brod, que se negou a destruir os manuscritos como o amigo lhe pedira, a história
terminaria com a morte de K. e o anúncio de que
ele poderia permanecer na aldeia, embora sem direito a isso.
A história toda se resume no seguinte:
o agrimensor K. vai para um lugarejo dominado por um Castelo, a chamado da administração. No entanto, ninguém ali precisa
de um agrimensor e sua chegada dá início a um
inferno risível e tétrico. Dizem-lhe que pode ter havido um erro da
administração, que de qualquer modo é infalível.
O que Kafka deixou, entretanto, vale por um texto
completo. Se ele pretendia mesmo terminar o romance como Brod disse,
estava apenas confirmando o que já fizera em outros
textos, ou seja, que o personagem central morre, mas a história
continua do mesmo jeito, para os outros, entre os quais inclui-se
o pobre leitor. Mais o eventual tradutor, num
labirinto que, se não tem entrada, compensa isso com a ausência de
saída.
Kafka está longe da posição olímpica
do escritor onisciente, que sabe tudo do seu personagem. Como este, o narrador também não tem idéia do que vai acontecer.
Portanto é preciso acompanhar os movimentos da
pena do escritor original, e neste sentido pode ser que Carone esteja correto em evitar os instrumentos mecânico e eletrônico para
a escrita. A voz, tanto na primeira como
na terceira pessoa, mantém o mesmo tom. E quando Carone diz "tom"
fala de algo que está e não está no dicionário,
essa ferramenta fundamental para a busca de palavras justas, pois, na sua opinião, "as virtualidades das línguas se igualam",
ou seja: não há idioma insuficiente, mas escritor incompetente.
Para dar uma idéia da pedreira onde
Carone se meteu, basta dizer que, após duas tentativas, preferiu deixar de lado o projeto, para retomá-lo só em 98. Seu método
básico de tradutor é aquele que sugere a contaminação
do idioma de chegada pelo de partida, permitindo a origem de
uma espécie de terceiro e único idioma.
Tudo isso, no entanto, não deve assustar
ninguém. Carone sabe que Kafka, autor da maior novela
da literatura, A Metamorfose, segundo Canetti, é alvo cerrado de elogios.
Ele acredita até que nenhuma pessoa pode ser realmente
civilizada se não tiver lido pelo menos O Castelo, O
Processo e a história de Gregor Samsa. Por isso, tem algumas sugestões
para quem se interessar pelo seu autor. Em primeiro lugar, o leitor
deve evitar o temor reverencial e levar a sério
o escritor. Isto é, ter em mente que Kafka está falando de experiências,
com humor, sensibilidade e sensualidade, com a
passagem do desconhecido para o desconhecido, numa tentativa
de pelo menos nomear as coisas, embora essa nomeação possa resultar
num padrão repetitivo e inútil.
E saber que Kafka, longe de qualquer
tipo de exotismo, faz parte do mundo dele, leitor. Um mundo
onde, conforme o autor de O Processo, deve-se cumprir com precisão
a lei que se desconhece. Como disse Ruy Coelho
num ensaio, o grande problema está em que o mundo deu razão
a Kafka. Só nos resta ler suas histórias.
"Toda a importância da obra de Kafka,
toda a sua força, não vem propriamente da história contada,
mas sim da sua coerência e da sua extraordinária unidade, do seu timbre
particular inconfundível", comenta Carone, que
usou na sua tradução o texto crítico de Oxford. "É sempre uma
mesma voz que fala, é sempre uma mesma voz que se pode reconhecer,
mas na verdade não se ouve senão essa voz, e essa
voz é inteligível de imediato, mas não é possível dizer o que ela de fato exprime, apesar da angústia, da desolação, do humor
e da falta de saída do entrecho".
Outro encontro de Carone com Kafka ocorreu
também em São Paulo. Ele e Marilena, por sua vez
tradutora de Freud, procuravam casa e encontraram uma que lhes servia
no Pacaembu. "Tinha uma escada que dava para uma
edícula, depois tinha outra escadinha que dava para um galinheiro. Eu olho lá dentro". Havia um pôster de Kafka com excremento
de galinha em cima escorrendo como uma lágrima.
(Texto publicado pelo jornal O Estado
de São Paulo, na edição
de 2 de julho de 2000 e atualizado
para esta edição)
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