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Cartas enviadas a Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas
revelam o perfil humano e literário do autor do clássico
Malagueta, Perus e Bacanaço
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João Antonio,
o grande contista de Malagueta, Perus e Bacanaço, passava a
imagem de um homem zangado. Tinha motivos para isso, como qualquer
brasileiro sensível. Mas acrescentava à zanga muitas doses de lirismo
e o resultado são diversas histórias curtas que já nasciam clássicas,
desde o primeiro e muito provavelmente seu melhor livro, escrito na
juventude, quando o então rapaz de Osasco iniciava a vida de jornalista
e escritor no centro da capital paulista. Cultivava, entre outros
bons e maus hábitos, algo que se tornava raro naqueles tempos: o gosto
elegante pelas cartas. Escrevia com freqüência aos amigos, respondia
com pontualidade e atenção. Essas cartas, longas ou breves, revelam-se
agora à distância uma espécie de diário do escritor, na oportuna seleção
publicada pelo ficcionista Caio Porfírio Carneiro e pelo crítico e
professor Fábio Lucas: Cartas aos Amigos (Ateliê Editorial/Oficina
do Livro, 148 págs.)
O escritor cabia inteiro
tanto em textos de quatro como de cem linhas. E neles podemos ver o contista
vibrando a cada golpe de sorte — benfazeja ou lazarenta — sempre relacionado com
o andamento das coisas do país. Não era dado a análises, mas a manifestações
emocionadas, às vezes com ironia, outras com humor rasgado. Nas cartas, vemos
mais esse João Antonio irritadiço do que o poeta. Ele dizia não entender o
porque da magia do título Malagueta, Perus e Bacanaço. Mas o senso
poético dele já está patenteado no decassílabo do título do primeiro livro, com
acento na terceira, sexta e décima sílabas, exato como neste verso de Jorge de
Lima: "Celacanto provoca maremoto." O mesmo senso poético de seu estilo
dançante, como observou Antonio Cândido. Ele sabia tocar como ninguém o
cavaquinho quebrado que achara nas ruas suburbanas e marginais do centro da
cidade. Não misturava estações.
Assim, nessas
cartas temos o perfil de um escritor vivendo as agruras da condição
num país de analfabetos cada vez mais diplomados. Durante a leitura,
lembra-se com freqüência de outra obra a respeito. Trata-se de Guerra
Sem Testemunha, de Osman Lins. São dois autores que se completam,
nesse sentido. Ambos ligados em Lima Barreto, por tudo, menos por
coincidência. O romancista de O Triste Fim de Policarpo Quaresma
continua como exemplo de exercício crítico sistemático. As cartas
de João Antonio são parte disso, são material para análises de tons
diversos, do político ao literário.
É preciso salientar a
perícia e a seriedade intelectual de Carneiro e Lucas na edição dos textos. Com
o primeiro, João Antonio tinha uma relação desataviada de parceirinho. As cartas
falam dos primeiros tempos do escritor e um breve depoimento de Carneiro
confirma a história que o contista repetia sobre o primeiro livro. Os originais
foram perdidos num incêndio. Ele conseguiu reconstituir os contos graças aos
rascunhos deixados com Carneiro e por pouco não foram jogados no lixo. Essa
história se torna emblemática da carreira do escritor, que conheceu do clássico
desprezo dos editores até o sucesso comercial — a crítica sempre soube
reconhecer seu talento. Tudo segue ou se interrompe conforme a estação: hoje
está mal, amanhã bem, depois mal de novo. Essas cartas e a vida do escritor
denunciam a ausência de organicidade cultural no país (como o livro de Lins).
Mesmo obras importantíssimas viram coisa de ocasião, não são absorvidas numa
dinâmica que envolve do público até o ensino, a indústria e o comércio livreiro.
Nas cartas enviadas a Lucas já existe certo
engravatamento. João Antonio fala sobre as mesmas coisas, porém num outro
sotaque. Ao contrário do que se pode imaginar, ele era rapaz de fino trato,
tanto que respeitava Carneiro e Lucas do modo que melhor lhe parecia. Isso,
claro, enriquece o perfil contido nas duas séries. E ambas explicam porque o
criador de Paulinho Perna Torta, no tempo das vacas magras e gordas, dizia: "Eu
vivo de tortos e direitos autorais."
(artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, edição
de 14.08.2005)
O livro: Caio Porfírio
Carneiro e Fábio Lucas (orgs.). Cartas aos Amigos. S. Paulo: Ateliê
Editorial/Oficina do Livro, 2005.
agosto, 2005
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