Entre os diversos modos de se encarar a Cabala, ou Cabalá, a mística judaica, destacam-se dois: o ponto de vista segundo o qual séculos ou milênios de estudo não passam de equívoco movido a superstição e o de que nas obras dos mais diversos autores e épocas encontram-se pautas de estudo sobre os mais variados aspectos religiosos, filosóficos e poéticos da vida e da cultura. A obra de Guershom Scholem (publicada no Brasil pela Perspectiva) e de Moshê Idel (idem, como o recente Cabala, Novas Perspectivas) permanecem como guias necessários para o estudo dessa literatura numa perspectiva atualizada, servindo para desarmar os primeiros e permitir o avanço dos estudos humanísticos, no segundo caso.

Tanto Scholem quanto Idel procuram oferecer ao leitor os elementos fundamentais de suas teses, citando e resumindo os textos da origem, enquanto a maior parte dos textos escritos em hebraico e aramaico permanecem interditos pela escassez de traduções para o português — o mesmo não ocorre em inglês, francês, castelhano. Por isso cresce a importância da publicação de Tamareira de Devorá (Tômer Devorá), do rabino Moshê Cordovero (1522-1570), pela Sêfer, com tradução de Iaacov Rotnes e revisão e mais notas de Erwin V. R. Pamplona.  É uma pequena obra, um guia para a imitação de Deus a partir do final de Miquéias  (v. 18-20). Quem se acostumou a pensar na Cabalá como um receituário de magia ou a solução mais fácil para entender o cosmos, ficará certamente surpreendido ao entrar em contato com o escrito de Cordovero. Trata-se de um exercício sobre a conduta, tendo em mente que sem o rigor ético nada resta ao ser humano. Da sua condição rasa, no entanto, ele pode utilizar a imagética simbólica da Cabalá, as Sefirot, ou emanações provenientes do Deus oculto, a fim de contribuir para a ordenação do mundo. É da dialética entre o baixo mundo humano com as imagens cabalísticas que se torna possível o conserto de cada um e das coisas que o cercam.

         Nesta pequena obra do rabi Moshê (sempre há um Moisés na história) encontram-se os fundamentos para a subseqüente reflexão da ética sob o enfoque dos cabalistas. A tradução, provavelmente inaugural em idioma português, é acompanhada do texto de Cordovero, que escreveu num hebraico sucinto e claro. A primeira edição apareceu em Veneza no ano de 1589. Seu clássico mais lembrado é o Pardês Rimonim, Pomar das Romãs ou Paraíso das Romãs, síntese da doutrina místico filosófica da Cabalá até o século 16. Ele escreveu o Paraíso das Romãs aos 27 anos. Foi um gênio precoce e morreu rápido, aos 48 anos, em Sfat (Safed). Existem dúvidas em torno  do local de seu nascimento, mas o sobrenome indica a origem espanhola. Do Paraíso, a Sêfer publica trecho sobre o significado das cores na parte antológica, de Meditação e Cabalá (364 págs). É outro lançamento que merece atenção, na visada deste artigo sobretudo por permitir acesso a fontes como o Zohar (Esplendor), de Abuláfia, Chaim Vital, etc. No Brasil, o rabino Nilton Bonder vem publicando livros em que procura demonstrar a relação entre as reflexões cabalísticas e a vida contemporânea e que os antigos mestres estavam preocupados com o dia a dia. Uma introdução ao tema foi escrita pelo professor Walter Rehfeld, publicada em 1986 e, no momento, pedindo reedição em nome da lucidez. Chama-se Mística Judaica. O prof. Rehfeld não trai sua formação filosófica. Nem só de Madonna vive a Cabalá. 

 

 

(publicado no jornal O Estado de S.Paulo)

 

 

 

O livro: Moshê Cordovero. Tamareira de DevoráTômer Devorá. São Paulo: Sêfer, 2005.

 

 

 

outubro, 2005

 

 

 

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