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Para Pedro, meu neto, de 4 anos

 

 

Do velho Chico Ferreira guardo hábitos morigerados de sertanejo. Sentava-se para comer num banco duro, sem encosto, ao lado de um magote de machos suados da lida no campo, na luta diária contra a secura da terra e o calor inclemente do Sol. E, quando o Sol caía, deitava água fresca numa bacia de ágata para lavar mãos e pés, revelando um gozo inusitado ao esfregar os calos todos nas bordas da calçada cimentada, lentamente. Depois, deitava fora a água da bacia no terreiro e os últimos raios solares ainda tinham brilho para refletir faíscas no jorro de um rubro escuro a cair no chão seco junto com as trevas da noite substituindo o lusco-fusco incerto. Era o mesmo prazer com que amolava, com aquela sábia lerdeza do sertão, o gume da peixeira de encontro à pedra antes de raspar, também vagarosamente, a rapadura estendida sobre a tábua da mesa. Ainda com a faca empurrava a rapadura rapada dentro do prato branco de coalhada que sua mulher, minha vó Quinou, Joaquina, filha do coronel Alexandre Moreira Pinto, senhor de sesmarias, lhe estendia, de forma sóbria e carinhosa, como convinha a uma dona de casa naquelas brenhas.

 

Minha avó materna era analfabeta, apesar da origem nobre e abastada. Meu avô era um homem de ascendência pobre com raízes no Ceará e passagem pelo Rio Grande do Norte. Minha mãe, a primogênita Mundica, que nunca gostou de ser chamada pelo real prenome, Raimunda, nasceu na metade potiguar de uma casa com a outra banda na Paraíba. Ela nasceu numa propriedade dos Ferreira da Silva, o clã paterno dela, chamada Baixa Verde, como diz o nome um oásis de mangueiras clássicas e esquálidos canaviais nutridos pelo frio serrano de Luís Gomes, a uma distância razoável até para quem caminhasse dos carrascos do Rio do Peixe, a herdade da mãe de minha mãe, da casa dos Pinto, gente abastada, mas humilde. No Rio do Peixe, catei algodão. Na Baixa Verde, chupei manga e me deliciei com os alfenins, que depois entupiram minhas veias com glicose. Dizem que quando o coronel, avô dela, desencarnou seus herdeiros não tinham idéia do que possuíam nem papéis passados de todas as terras que ele comprou. Herdei cópias xerográficas de misteriosos registros de nascimento, que, na minha imaginação infantil, calculava serem de filhos bastardos com escravas e negras forras. Sonhava-me o sinhozinho deslumbrado com a nêga Fulô, do poema de Jorge de Lima. Quem vai desmentir este desvario de infante?

 

Atribuíam ao veneno de uma cascavel a miopia de meu avô, que eu terminei herdando. Considerando as dificuldades de sua condição de camponês pobre, era quase um intelectual. Gostava de poesia e tinha uma prosódia, ao que eu me lembre, bastante escorreita, além de agradável. Eu era seu neto mais velho. Sentava-me no joelho enquanto sorvia a coalhada, como se exibisse o descendente aos companheiros de eito. Depois, ia consultar os oráculos da natureza no céu de breu da noite sertaneja. Apoiava o traseiro esquálido no cimento da calçada alta em relação ao solo onde sua casa, onde eu havia nascido, fora construída. Depois, espichava as pernas magras, espreguiçava-se, esticando os dois braços, antes de apoiar a nuca na palma da mão aberta. Fazia um silêncio religioso. Ouvíamos, os dois, as vacas mugindo no curral, o latido de algum cão de guarda, o pio lastimoso de uma coruja encarapitada em alguum galho seco. Nos meses de inverno, sapos e rãs entoavam sua sinfonia de coaxares, que representavam acordes maviosos para os matutos daquele ermo semi-árido, sem eira nem beira. Era como se estivéssemos num templo pagão, à espera dos sinais de Tupã. E ele sabia como ninguém discernir as notícias transmitidas no horizonte longínquo por uma nuvem mais avermelhada, que seus pares chamavam de "torre", ou algum relâmpago tresmalhado, um súbito e efêmero clarão pálido a romper a escuridão da noite cheirando a querosene, bosta de vaca e suor de trabalhador. Eram instantes breves, que duravam a eternidade inteira. Seu olho míope vasculhava o horizonte antes de a esperança se manifestar na frase: "está chovendo em Souza", "aquilo parece uma chuva em São Gonçalo", "olhe aquela torre pros lados do Brejo das Freiras"... Eram confidências para alimentar a própria esperança, talvez nada mais que isso. Mas eu me sentia participando dos segredos do Universo: a Terra se move, o Sol aquece, a Lua brilha e amanhã as terras da Capivara vão estar úmidas de chuva nova.

 

Nada na vida foi mais poético para mim que aquelas noites do sertão. Quando entrei no Metropolitan Opera em Nova York e me deparei com aquele deslumbramento todo foi em meu avô materno que eu pensei logo de cara. Imaginava seu olho quase cego devassando o palco imenso e brilhante e seu ouvido, acostumado a festejar a chegada das bátegas benfazejas da chuva, a sorver as melodias da orquestra e os trinados da soprano. Quando minha mãe nos reunia na calçada da Rua Nova dizendo versos de Castro Alves, naquela cadência que o moço da Bahia absorveu lendo o luso Bocage, eu sentia que aquilo tinha a mesma poesia das profecias do pai dela.

 

Acham que aprendi a ser poeta escutando mamãe dizer Castro Alves no breu silencioso, depois de Cabrinha desligar o motor da luz. Ou lendo Augusto dos Anjos no quarto dos fundos da casa da Rua Rui Barbosa, em Campina Grande, e me deixando levar pela graça de Manuel Bandeira nos livros comprados na Livraria Pedrosa, lá no Beco do 31. Qual nada! Poesia mesmo havia era nas notícias de chuva breve que o velho Chico Ferreira gostava de dar a si mesmo. O resto foi só complemento.

 

 

 

 

 

abril, 2007

 
 
 
 
José Nêumanne, jornalista, poeta e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde e comentarista da Rádio Jovem Pan, de São Paulo.
 
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