(Para João Hélio e os meninos de Bagdá)

 

 

O meu país sofre, e nem seria coisa de gente humana se não sofresse. Um ícone da dor nos deixou arrasados: um menino de seis anos foi imolado no altar da barbárie, do terror, e não se discute uma dor assim, nem a dor de um país, nem a dor de uma família que passa por tal coisa, nem a dor que deve ter brotado como um cogumelo atômico dentro do desespero do menino que sempre só fora amado, e que de repente descobria que o mundo podia ser mau, tão terrivelmente mau que nada lhe restava além da morte dolorosa. João Hélio deve ter ficado como um pintassilgo morto, quando morto ficou, assim pendurado do lado de fora de um carro. E não dá nem para entender que uma mãe, que um pai possam sobreviver a uma dor tão grande como a que vivem os pais de João Hélio, e o meu país sofre junto, e nem seria entendível se não sofresse. Nas últimas horas tenho visto todo o tipo de manifestação de gentes de todos os tipos, da imprensa, de chamadas a dia de protesto, de pedidos para que se faça algo — e eu também sou gente e também estou esperando que se faça algo, pois já não é possível ver-se pequenos meninos pendurados fora de um carro como pintassilgos degolados, e também já não é possível continuar se olhando para as injustiças sociais tão fortes deste meu país, que, na maioria das vezes, é o que leva à fome e às outras monstruosidades que acabam, na pior das hipóteses, em crimes que todos podem latejar no próprio peito, como o de João Hélio como aquele pintassilgo... Seria o momento de pensarmos de quem é a real culpa da criminalidade do pobre, se dele ou dos juízes Lalaus que ajudaram a criar mais dez mil favelas e mais alguns milhões de famintos — mas não é aqui o lugar, pois o espaço é curto.     

O fato é que o meu país sofre, e nem teria outro jeito de ser quando um seu menino sofre a brutalidade que sofreu João Hélio. E então eu pergunto: e os outros meninos, aqueles lá de Bagdá, de Faluja, de Kabul, da Palestina? E os outros meninos de tantos outros lugares que estão sendo explodidos neste momento em nome da ganância do Capital e da vaidade de um louco? O quanto sofrem as pessoas dos bairros daqueles meninos que para nós são anônimos, mas que são meninos como João Hélio era, são pequenos pintassilgos que estão sendo aterrorizados até a morte por setenta vezes sete quilômetros, e que têm mães, e que têm pais, e que têm países... Ah! mãe de João Hélio, ah! pai de João Hélio, eu nem posso entender como podem suportar o que estão passando, e queria abraçá-los junto ao meu peito e chorar com vocês até nem sei quando... mas queria abraçar também as mães e os pais dos pintassilgos explodidos pela insanidade das guerras que os interesses do Capital espalham pelo mundo, e também queria chorar por eles, pois a dor deles e a de vocês não pode ser diferente... E se o meu país está sofrendo, o que dizer dos países dos outros meninos? Quantos meninos são explodidos por dia, por hora, em nome do deus Capital? Tento fazer algum tipo de conta: consta-me que apenas no Iraque já são mais de 800.000 as vítimas da guerra — quantos serão os meninos que já caíram como pintassilgos degolados? Dez mil, trinta mil, cinqüenta mil? Mais, talvez? Vai fazer quatro anos que o Iraque foi absurdamente invadido e eu fiquei no sofá da minha sala vendo os bombardeios na televisão e chorando sozinha, porque sabia o que aconteceria com os meninos. Quatro anos dá 1460 dias — cinqüenta mil meninos em quatro anos dá mais ou menos 35 meninos explodidos por dia, pendurados nos braços de pais desesperados como João Hélio ficou naquele carro... ai! Como é que o mundo pode suportar tanta dor e acreditar nas mentiras que a imprensa diz, de que tudo não passa de brigas religiosas à toa?

Enquanto não passarmos a tentar pensar nas coisas do jeito que elas são e acontecem, conseguiremos continuar sofrendo por um único menino que teve a infelicidade de passar por tamanho horror — e os outros? Talvez seja até bom para o nosso povo conseguir sofrer por um menino só, por maior que seja a dor — talvez a dor de todos os outros fosse insuportável demais. Eu, porém, não consigo acreditar na imprensa, e aquela dor insuportável, a dos tantos pintassilgos explodidos, me arrasa um pouco a cada dia.

 

 

 

Blumenau, 12 de fevereiro de 2007.

 

 

 

 

Urda Alice Klueger (Blumenau/SC). Escritora e historiadora, publicou vários livros, entre eles, Verde vale, No tempo das tangerinas, Recordações de amar em Cuba, No tempo da bolacha Maria, Viagem ao umbigo do mundo. É membro da Academia Catarinense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina.