A noite passada eu sonhei que estava em Tóquio. Perdida. Caminhava pelas ruas de Shinjuku com duas amigas de Maringá, que fizeram o curso colegial comigo, e nenhuma de nós sabia onde estava exatamente. Ao longe, víamos uma estação de trem e vagarosamente nos dirigíamos para lá, com muita vacilação. Estas amigas ao mesmo tempo eram e não eram eu. E as duas seguiram adiante enquanto eu tentava falar com uma pessoa e perguntar sobre que direção tomar. Eu sabia que onde queríamos ir ficava na rua 22. Milagrosamente, me lembrei como dizer "vinte e dois" em japonês, para este homem vestido com o tradicional terno escuro, pasta na mão, obviamente com pressa. Mas ele me escutou pacientemente enquanto eu repetia "ni-ju-ni, ni-ju-ni". Ele então me disse, em português tão estropiado como o meu japonês, "eu não aprendó português". Ao longe, eu via que minhas duas amigas tentavam conseguir informações em uma loja. Um sentimento de completa confusão caiu sobre mim. Tentei caminhar em direção a elas, mas me pareceu mais fácil voar. Na loja, ninguém entendia absolutamente nada do que tentávamos falar.

 

Acordei.

 

Durante o dia, fiquei pensando por que o número vinte e dois foi repetido tantas vezes, e o que teriam minhas companheiras do colegial a ver comigo, perdida em Tóquio. Estive naquela cidade várias vezes, e jamais me perdi. Tóquio é uma cidade muito internacional, e qualquer um pode se virar extremamente bem em inglês, desde que não se aventure por uma das cidadezinhas mais longínquas da grande metrópole. E eu sei suficiente japonês pra não me perder em lugar nenhum. Mas o sentimento de medo de estar perdida em um lugar estranho me acompanha o dia inteiro.

 

Por que, no sonho, eu volvei a um número, 22, dois patinhos na lagoa? Aos vinte e dois anos, eu tinha terminado a faculdade em Maringá e já estava lecionando inglês na Faculdade de Ciências Econômicas de Apucarana. Estava, naquele tempo, começando a me sentir completamente confortável numa língua estrangeira, a fazer do ensino e do estudo desta língua o meu projeto profissional de vida. Então, talvez seja isso que o número representa: aquele primeiro momento em que a pessoa se encontra completamente vulnerável dentro de uma língua estrangeira. Incapaz de recuperar o momento em que era monolingüe, e ainda não tendo fluência na nova língua.

 

Comentei o sonho com uma amiga que leciona alemão e russo na minha universidade, e ela me disse que teve sonhos semelhantes, e um deles a trazia de volta à sua cidadezinha natal na Pensilvânia e ela não conseguia falar com os próprios pais, porque não sabia a língua deles.

 

Este deve ser um medo primordial que segue marcado na psique de todos nós, seres humanos, que nascemos sem saber falar nenhuma língua a não ser a do choro pra indicar as emoções e necessidades mais primitivas da fome, da cólica, do frio e da sede. Alguns psicólogos dizem que só nascemos com dois medos: de cair, e de sons fortes. Aos poucos, vamos acrescentando outros, entre eles o de estar perdidos numa cidade desconhecida.

 

Mesmo que a cidade desconhecida seja Tóquio, que é famosa pela segurança, ausência quase total de roubos ou assassinatos. O medo continua. Embora tenhamos aquela informação racional sobre a quase inexistente taxa de crime (especialmente comparada à do Brasil), a nossa parte emocional pode entrar em pânico quando nos defrontamos com uma cidade de tantos milhões de habitantes, com um sistema tão complexo quanto desconhecido para nós.

 

Seria este o mesmo medo que temos da morte? Que sabemos nós da língua que teremos que falar depois da morte, se houver um depois da morte? E se a cidade ou cidades do outro lado estiverem cheias de placas de ruas em uma língua que não conhecemos? E se tivermos que seguir repetindo um número qualquer, ou uma palavra qualquer, nossa única maneira de entrar nesta nova língua, nesta nova situação para a qual estamos minimamente preparados? Será que morrer é o mesmo que nascer, passando pelo túnel escuro, chegando ao outro lado nus, ignorantes, analfabetos, incapazes de falar, e ao mesmo tempo acabrunhados pelo muito que aprendemos e sofremos deste lado e que não vai nos servir para nada?

 

Quanto menos sabemos, menos reconhecemos nossa ignorância. Talvez seja por isto que quanto mais jovens somos, menos temos medo de morrer. 

 

 

 

junho, 2005
 
 
 
Eva Paulino Bueno: Nasci no Paraná, onde, de acordo com o lema que aparecia escrito nas placas nos anos setenta, "se trabalha". Ou, como um gaiato sempre escrevia embaixo, "mas não se recebe". Ou adicionava um "va" e então tínhamos o comentário de que em outros tempos as coisas eram diferentes, porque no Paraná "se trabalhava". Saí do Paraná há muitos anos, o que talvez explique porque, de acordo com os parâmetros de lá, não trabalho. Virei um bocado de mundo, vi gentes, vi lugares, mas sempre me lembro que Machado de Assis nunca saiu do Brasil, e é o nosso maior escritor e um dos pensadores mais originais que já tivemos.
 
Logicamente eu trabalho: sou professora. Também escrevo-livros e ensaios acadêmicos para engordar o sempre faminto currículo e para manter minha cabeça mais ou menos em ordem. No Brasil publiquei um livro sobre a obra de Amácio Mazzaropi (EDUEM, 2000). Publiquei outros livros nos Estados Unidos e Japão (uma busca no Google dá uma idéia). Faz três anos sou colunista da Revista Espaço Acadêmico, que me dá muito prazer e me coloca em contato com muita gente. Nas horas que posso me dar ao luxo, escrevo contos e poemas. No restinho de tempo que sobra, pinto e faço colchas, duas atividades que se parecem muito com a arte de contar histórias. A vantagem especial destes dois últimos meios é que não carecem de palavras, então nunca tenho que traduzir.