Suores. Gotículas formando-se no alto da testa a qualquer instante, nas têmporas, no pescoço. Sobre os lábios a umidade acumulada causa uma coceira incômoda que eu tento aliviar passando os dedos como se alisasse os cantos de um bigode. O calor. Os trópicos caem como uma pedra de ar quente nas cabeças mortais. Só alguns escolhidos vêm ao mundo preparados para suportar temperaturas acima dos trinta e cinco graus, provavelmente um erro da seleção natural, eu deveria ter nascido em Helsinque, na Sibéria, no Alasca.

 

Se ao menos algumas nuvens, um mormaço, indícios de tempestade. Misteriosamente há semanas que não chove nesta cidade, o céu azul fosforescente, cortante, cegando quem o encarasse. Mas se chove em todos os lugares do mundo. Nos fiordes nórdicos, nos confins da Patagônia, nas cavernas subterrâneas da Amazônia, nos Alpes suíços, no Saara, até no Atacama, no mais entranhado do deserto do Atacama, chove. E surgem flores estranhíssimas, flores extintas, flores pré-históricas. Só aqui é que não chove, há milhões e milhões de anos, os cactos armazenando-se no parapeito das janelas.
 
Piso sem querer num cartão postal, preto e branco, desses que a gente encontra em livrarias e papelarias da moda: duas mulheres num café, anos vinte, sapatos de tiras, chapéus grudados à cabeça, uma delas escreve concentrada, a outra lê um livro qualquer, sobre a pequena mesa duas xícaras de café, no verso uma letra conhecida e ilegível sugere um encontro no mesmo lugar da última vez, romântico, uma quarta-feira à tarde, um domingo, um anel cor-de-rosa. Guardo o cartão dentro da bolsa.
 
Pelo menos não tenho que me preocupar mais com a infiltração, o teto, agora, se cair já não é mais da minha conta, que se exploda, que desabe o prédio inteiro. Tudo por causa das fotos, um catálogo de telefones celulares. Antenas, baterias, vivas-vozes. Não tem que ser perfeito, que eles nem estão te pagando pra isso, mas dá uma caprichada que o teu último trabalho foi bem mais ou menos e depois os caras vêm reclamar é comigo. Desta vez até material o Marco Antônio tinha arranjado, mas vê se entrega no prazo, claro, mal cheguei a começar, juro que não sei por quê, eu até que queria, você sabe que eu preciso do dinheiro, mas não sei o que aconteceu. Passei a semana inteira contemplando aqueles apetrechos, eu que nem sabia o que era um viva-voz, e o catálogo ali berrando, batendo na porta da consciência, mas cérebro é uma máquina cheia de truques, depois do café eu começo, depois do almoço, depois, depois esqueço, tem a formiga carregando um caroço de feijão, o barulho do elevador, alguém me chamando do outro lado da rua.
 
Fazer o quê agora? posso dar um passeio pela praia, sentar-me num café, escrever um cartão postal, o Cristo Redentor de um lado e do outro eu, dizendo, é, você tinha razão, o tempo todo, agora bem feito, tinha aquele café onde, com a bebida, serviam pequenos tabletes de chocolate, cortesia da casa, vinham embrulhados em papel dourado com algum aforismo inscrito em azul: Sêneca explicando que não é o tempo que é pouco, mas o tempo que não utilizamos que é muito, ou um tal de N. V. Peale aconselhando a não se negar a aceitar o negativo, mas a recusar-se a submeter-se a ele, tudo muito sábio. E eu ia lá todas as tardes por causa do chocolate, esperando naquelas frases uma revelação, um sinal, instruções de uso, notas de rodapé. Sempre tive uma atração irresistível por aforismos, todo o conhecimento da humanidade concentrado em uma só frase. Antigamente eram os biscoitos da sorte, a gente comprava na banca de jornal, vinha um bilhetinho mimeografado, quase a mesma coisa.
 
Posso também visitar a Diná no salão. Costumava aparecer por lá com freqüência, só para poder ler aquelas revistas de televisão, as últimas fofocas da novela, o novo casamento da atriz tal, a plástica da modelo tal, a namorada do filho da princesa de Mônaco tem ou não celulite. A distração, apesar da tristeza difusa que essa mania me causava. Diná reclamava um pouco, você não tem nada mais pra fazer não? mas acabava esquecendo de me expulsar, deixa ela, isso dona Diná pra mim é feitiço, dizia Odete enquanto envolvia a cabeça de uma cliente com papel laminado, que feitiço que nada Odete, é vagabundagem pura, diz que é fotógrafa, nunca vi fotografar coisa nenhuma, a gente dando um duro danado e ela ali, que nem madame, lendo revista, e eu sorrindo para os cabelos alaranjados da Odete.
 
Sentada no chão, a mala fechada à minha frente, as paredes sem as reproduções baratas de Beckmanns e Klees; o quarto parece ainda mais estranho. Levanto, abro as janelas, o prédio vizinho e seus moradores, cortinas estampadas, casais em crise, gatos pretos. Decido ir embora o antes possível. Saio arrastando a mala que se mostra muito mais pesada do que eu imaginara, a sala de estar como sempre fechada, escura. Jogo a chave sobre a mesa, a última vez aquela sala, mas antes de sair, vou até a cômoda perto da janela, as fotos: tios, avós, bisavós da proprietária. A velha de turbante, mistura de Simone de Beauvoir e encantador de serpentes. Como todas as donas de pensão, sempre gordas e mal-humoradas, sempre um cigarro pendurado numa boca sem lábios, as olheiras, a maquiagem borrada. Todas iguais. Aquela era magra e não fumava, fazia a permanente a cada quinze dias e pintava o cabelo de vermelho-rubi. Numa das fotos, um homem de bigode vestido com farda militar, meu avô explicara ela um dia, lutou da guerra do Paraguai, foi condecorado, um herói, é. Parece um príncipe, não é? é. Duas meninas vestidas de anjo, eu e minha irmã no carnaval, na matinê infantil do clube, íamos todos os anos, nós adorávamos, você nem imagina, também o carnaval naquela época era tão diferente, já esta outra, está vendo, estou sim, essa sou eu pouco antes do casamento, novinha, olha como eu era bonita, magrinha, todos me achavam linda, você não imagina quantos homens se apaixonaram por mim, claro, imagino sim, teve até um barão húngaro, um homem finíssimo, queria porque queria casar comigo e que a gente fosse morar no castelo da família dele, lá na Hungria. é mesmo? É, só que eu não quis, ficar longe da família nunca, pra mim foi sempre assim, a família em primeiro lugar, sabe, educação tradicional, sei. E eu imaginava histórias inventadas, fotos esquecidas, jogadas no lixo, nas calçadas. Eu gostava.
 
Fico alguns instantes ali parada, pensando que bem que eu podia levar algumas comigo. Retratos de passaporte, férias na praia, primeira comunhão com dedicatória. Levo escondido, digo que achei, depois faço colagem, séries, possíveis performances, instalações, compro uma boina e digo que é arte. Ou escolho uma única foto, ponho num porta-retrato ao lado da cama e explico que sou eu, quando estive na guerra do Paraguai, ou quando dançava "Bandeira branca" fantasiada de colombina. Porém, mudo de idéia. Tiro o cartão-postal das duas mulheres num café de dentro da bolsa, leio por última vez as palavras escritas no verso e o coloco junto às outras fotos da coleção, logo ao lado do príncipe.
 
 
 

 

 

 

 

 

Carola Saavedra publicou em 2005 o livro de contos Do lado de fora pela editora 7Letras (Coleção Rocinante).