©enio squeff. pietá, 2002 - 104x146 cm - óleo sobre tela
  
                                                                     
  

 

Dizem os biógrafos que uma das causas do suicídio de Santos Dumont foi que o avião, do qual ele tinha sido um dos inventores, estava sendo usado para bombardear cidades. A angústia do brasileiro mostrou-se mais ou menos igual a de um personagem que aparece na autobiografia de Elias Canetti simplesmente  como "Dr. Sonne" ("sol" em alemão). Canetti, Prêmio Nobel de Literatura, um dos grandes humanistas do século XX, conta que, quando morava em Viena, decidiu que tinha de achar um "homem bom". E viu concluída sua busca num dia, em que, a conversar com o tal Dr. Sonne, ouviu dele uma profecia que confirmava sua fama, não só de "bom", mas de "sábio". Estavam num café e alguém informou que um avião tinha jogado um obus numa cidade européia qualquer da Europa. Vivia-se a Primeira Grande Guerra e, ante a notícia, Canetti viu o Dr Sonne empalidecer, e exclamar: "Meu Deus, e as cidades, que será das cidades?"

 

A pergunta profética iria ser respondida pelos massacres das cidades que desde então passaram a ser bombardeadas por aviões, de Hiroshima a Beirute. Canetti, à  época, não precisou acrescentar muito à observação de Sonne mas no próprio livro ("Uma luz em meu ouvido") em que conta ter encontrado, por fim, o "homem bom" em Sonne (nome fictício de um judeu que seria, mais tarde, identificado em Israel), ele dá uma pista da dimensão desse tipo de crime, que é o bombardeio de cidades. Ao se referir a Berlim, por exemplo, ele afirmava que, antes da Segunda Guerra, a hoje capital alemã era uma das cidades mais cultas da Europa. E a razão segundo Canetti é que já na década de 30, "Todos em Berlim sabíamos que Gustav Mahler tinha sido um gênio". De fato, Mahler (1860-1911) só entrou como paradigma, digamos, "universal" da música de concerto, depois da Segunda Guerra. Berlim, destruída por ataques aéreos durante o conflito, seria "culta" por ter avalizado um juízo que só anos mais tarde acabaria confirmado por outras cidades.

 

Este é talvez o lado importante dos grandes centros urbanos. Se é neles que a brutalidade do homem se mostra mais cruel, é na sua realidade também que as artes resplendem na sua grandeza. O historiador húngaro Arnold Hauser, ao se referir sobre as cidades, adiantaria um elemento a mais: que é na arte que a cidade se mostra como tal, já que, no meio rural, o que realmente conta é o artesanato, e não a arte. Ao gerarem Miguelângelo e Villa-Lobos, Florença e Rio de Janeiro seriam, respectivamente, como que "incubadoras de gênios". Júlio César, séculos antes, prenunciava essa idéia também política, ao escrever que preferia ser o último na mais remota localidade do Império, a ser o segundo em Roma.

 

Centros urbanos já dizem muito de si, por serem, eles próprios, como cidades, "obras de arte".  O historiador de arte italiano Giulio Argan, que foi prefeito de Roma nos anos oitenta do século XX, sem delongas, defendia, precisamente, essa idéia. Não pensava, certamente, na parafernália de que mesmo a Roma de hoje é um exemplo acabado, mas naquilo que a "Cidade Eterna" tinha e mantinha como obras de seus grandes artistas. Não é preciso muito esforço, realmente, para concluirmos sobre São Paulo, que ela não é as suas marginais, ou a Favela do Buraco Quente, mas o monumento de Brecheret, no Ibirapuera, alguns prédios de Niemeyer e todo o resto que comemoramos dela do MASP à Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Concluir, por aí, que as cidades devam ser preservadas por serem, em qualquer circunstância, a história dos homens, talvez seja menos impositivo e é do que as vidas que nelas sobrevivem. Mas é também um preito a uma vivência de arte àquela com que nos identificamos como cidadãos. Pode parecer um palavrório algo inútil falarmos das cidades como patrimônio comum, por nela termos nossas casas ou nossos filhos. Pode parecer, mas não é. No poema "Paulicéia Desvairada" Mário de Andrade desfia num novelo sem fim, o que São Paulo era com seus desvãos e desvios. A Nova York e outras cidades que aparecem nas pinturas de Edward Hopper dizem bem do poético que sobressai das esquinas noturnas, dos becos e do homem solitário que avança com sua sombra pela avenida iluminada. Manuel Bandeira, no seu "Noturno do Recife", e o compositor húngaro Bela Bártok, no seu "Concerto para orquestra", enveredam ambos por esses mistérios que só as cidades ostentam de serem o ambiente, por excelência, dos homens desde a construção de Atenas. Ou de Nínive. Ou de Jerusalém. Algumas desapareceram e retornaram para chegarem até nós. Outras soçobraram para sempre. E outras, ainda, só existem justamente por terem quem as cantou um dia.

 

No "Cântico dos Cânticos", o conjunto de poemas eróticos atribuídos ao rei Salomão, da Bíblia, não existem menções explícitas a Beirute. O Líbano, como um todo, porém, seria o locus dos amantes. Ignora-se desde que cidade teria sido escrito o poema se em Jerusalém ou em outra cidade qualquer. É em terras libanesas, em todo o caso, que o poeta canta seus amores dele e da amada ("São pilares as coxas, mármores/ Em douradas andaduras ritmadas/ Como o Líbano é a sua forma/ É como o cedro que se apura", ou então: "Um poço de águas vivas/ Nascedouro dos jardins/ Além das fontes outras/ Que do Líbano dimanam"). Seria preciso recorrer à pungente exclamação do Dr. Sonne para cantar as misérias deste mundo que são quase sempre as das cidades a soçobrarem sob bombas e aviões,  que inventamos para a nossa autodestruição?

 

Perante Roma arrasada pelos bárbaros, Santo Agostinho recorreu à idéia de que as cidades não seriam deste mundo, mas aquelas que os homens constroem para Deus, dentro de si próprios. Sua "Cidade de Deus", porém, é a esperança de um crente. Não dos que vivenciam a destruição das cidades mesmo que pela TV.

 

 

 

 

agosto, 2006

 

 

 

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