©van gogh, bosch, brueghel
 
  
                                                                     
  

 

Talvez não haja muita pertinência, nem bom gosto,  recordar, exatamente durante o carnaval, que a emergência da palavra "ressaca" lhe é correlata como uma espécie de corolário maldito. Nos anos 50, alguém teve a idéia de exorcizá-la com uma marchinha que dizia da ressaca entrar primeiro "pelos olhos", e depois subir "para a cabeça". Não aludia ao remorso de se beber demais — um sentimento de culpa incompatível com a aparente irresponsabilidade do carnaval. Muito menos relevava o pior: a promessa, quase nunca cumprida, de não se repetir a dose — ou antes,  as doses.  Fala-se sobre o "porre homérico" e realmente a dimensão pode ser a mesma que acometeu o gigante Polifemo — aquele personagem mitológico que foi derrotado por Ulisses depois de beber muito vinho. E que não amargou apenas uma tremenda ressaca, mas a dor de ter seu único olho perfurado pelo chuço em brasa que Ulisses e seus companheiros lhe aplicaram, como castigo, por seu mau hábito de devorar homens.

         A expressão "porre homérico" deve ter advindo daí: o que não fica muito clara é a origem do tal corolário, que acomete aos que abusam do álcool e que é a malfadada ressaca. Em princípio, como diz Houaiss, ela adviria do espanhol e significaria o refluxo do mar, as ondas a girar sobre si mesmas o que daria no seu sucedâneo, em nosso organismo, quando, como se sabe, o álcool teima em refluir por onde entrou, com as conseqüências que Deus, ou melhor, nós mesmos que o invocamos, sabemos bem quais são. Por ser, porém, comum aos mortais e é sob a ressaca que temos consciência da nossa mortalidade são inúmeras as obras de arte que, direta ou indiretamente a consagraram. E não apenas nas pinturas de Bosch, de Brueghel, onde os camponeses bebem e desbebem o vinho e a cerveja, mas principalmente, dentre outros, em Van Gogh, Toulouse Lautrec e Picasso: é notável como eles a expressaram simplesmente nos olhos das mulheres e dos homens, que têm a sua frente um cálice de absinto. Dá-se o mesmo  com a literatura. Norman Mailer em seu "Os Machões não dançam" descreve a contrafação da bebedeira "homérica" da noite anterior, contando as agruras da ressaca de seu personagem, a começar pela confissão feita logo no primeiro capítulo que ele tem a certeza de ter matado a própria mulher. A história que se segue faz jus ao constante estado etílico do personagem e, ao longo do romance, vai se saber que, afinal, as coisas não são como pensam os bêbados. Mas não há como se deslindar do enredo, tampouco deixar de se solidarizar com o personagem como fazem alguns bêbados entre si.

Norman Mailer, ele mesmo um alcoólatra, sabia perfeitamente dessas histórias de bebedeiras. Foi algumas vezes preso por agredir suas ex-mulheres — quando bêbado naturalmente — e devia achar resolutamente correta a idéia expressa pelo antigo "Pasquim", o jornal humorístico de resistência ao regime militar brasileiro, que tinha como lema que "intelectual não vai à praia, intelectual bebe". Sem querer fazer a gênese dos intelectuais e dos artistas, o "Pasquim" alertava que foi quase sempre assim em todas as épocas. Toulouse Lautrec, Beethoven, e Baudelaire morreram previsivelmente de cirrose hepática. Ao que parece, na ausência de uma maior repressão social à droga que mais mata no mundo — que é justamente o álcool — à incompatibilidade com seu mundo, os intelectuais e artistas opuseram não só sua arte — mas seu comportamento heterodoxo, embalado justamente pelos eflúvios do álcool. Ao qual sempre se segue o seu correlato, que é a ressaca, e que, na verdade, poucas vezes entra na história.

Realmente, ao contrário, de Norman Mailer, quase todos os artistas contam menos das ressacas do que das bebedeiras. A consideração do ator Humphrey Bogard  ("Casablanca") de que a humanidade ficava melhor "dois dedos acima" , referindo-se ao copo de uísque, sempre encontrou adeptos não apenas durante o carnaval. Conta Ricardo Ramos, filho de Graciliano, que seu pai nunca se sentava à mesa, para escrever seus romances, sem um cigarro na boca e um copo de pinga na escrivaninha. O grande compositor russo Modest Mussorgsky que compôs "Uma Noite no Monte Calvo" em que é descrita uma cena sabática, antes da Semana Santa (portanto durante o carnaval), morreu jovem, na clinica em que tentava se recuperar do alcoolismo, depois de ingerir uma garrafa inteira de vodka  só que ao ar livre, na noite gelada do inverno russo de 1881. Claro que nenhum de seus companheiros de noitadas deixaram de beber "à sua saúde" no dia seguinte ao seu enterro. No frigir dos ovos, mesmo os russos, educados nos ritos da igreja ortodoxa, não deveriam levar muito em conta como certamente fazem os intelectuais ainda hoje que na missa come-se o pão mas bebe-se o vinho. Por isso, como se sabe, a já referida relação de Cristo com o deus Dionísio ou Baco: não há, realmente, como explicar as libações do mistério da missa, sem o referencial dos mistérios dionisíacos da Grécia e da Roma antigas, em que se bebia como forma de se chegar ao sagrado. Nada contra a missa por favor, mas apenas a consciência de resto referendada por alguns exegetas católicos de que muitos ritos pagãos foram perfeitamente assimilados pelos cristãos. Como se sabe não são apenas as religiões, ditas afro-brasileiras, que se sincretizam: o cristianismo com o paganismo também. E vice-versa.

Mas e o carnaval? É um quase lugar–comum que depois do carnaval todos nos ressentimos das ressacas mas há o estímulo da bebida em si. Parece não ter sido no carnaval, a propósito, que aconteceu um incidente ainda hoje lembrado por muitos contemporâneos do jornal "Pasquim" já mencionado. Tinha havido um incidente, em plena redação, entre o jornalista e cartunista Jaguar e o diretor do jornal, o também jornalista Tarso de Castro. A coisa chegou a uma tal gravidade, que Tarso teria prometido literalmente "matar" Jaguar. Como eram duas figuras conhecidas e queridas no Rio de Janeiro, houve todo um empenho dos amigos comuns de evitarem que os dois se encontrassem. Foi assim até o dia em que aconteceu o inevitável. Eis que numa de suas andanças pelas noites cariocas, Tarso de Castro avista Jaguar na mesa de um bar da moda. Susto geral: o confronto era inevitável. E Tarso de Castro, de fato, ao avistar seu desafeto rumou direto para a mesa e foi logo desafiando:

"Escolha as armas!"

Jaguar, ao que consta, não hesitou:

"Conhaque".

Ao que Tarso de Castro, também sem titubear:

"Aceito".

Não se sabe se foi neste dia que Tarso de Castro arruinou em definitivo seu fígado: ele morreu de cirrose tempos depois. Há, em todo o caso, quem garanta que foi então que Jaguar deixou de beber tanto. Na verdade, a grande inquirição fica para a história e gira em torno da ressaca. Duelos a conhaque são inéditos, mas podem redundar em ressacas mortais. No carnaval ou ora dele.

 

 

 

 

março, 2007