Antônio Francisco Lisboa (1730-1814), o Aleijadinho, talvez não seja um dos maiores escultores de todos os tempos, como quis um crítico francês contemporâneo. Mas a exposição que está no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, "Fé, Engenho e Arte, Aleijadinho e seu tempo" revela não apenas o artista em todos os tempos, principalmente brasileiros, mas uma feição que quase sempre escapa ao espectador comum: Aleijadinho, com o perdão do truísmo, foi um escultor de aleijões. Quase todos os seus personagens esculpidos em pedra-sabão ou madeira — santos, profetas, virgens — ostentam um desequilíbrio que normalmente começa pelas pernas e estende-se aos membros superiores, das mãos aos ombros, numa espécie de deformidade compulsória. O historiador do maneirismo, Arnold Hauser nunca deve tê-lo visto, do contrário, certamente o incluiria, senão entre os maneiristas (movimento que designa o estilo que antecede o barroco e que deforma como princípio), pelo menos entre os barrocos mais intrigantes.
Não é um juízo unânime, naturalmente, nem mesmo uma idéia extensiva. O russo Fiódor Dostoievski e o brasileiro Machado de Assis foram ambos epiléticos — não consta que tenham imprimido a seus personagens quaisquer anomalias que não fossem as do gênero humano como um todo. Assim também com os músicos, ou os artistas plásticos, como o próprio Aleijadinho. Beethoven, de fato, só parece ter revelado uma certa insensibilidade típica, quem sabe, de um surdo, em algumas obras, onde certas notas prolongam-se, como no coral da sua nona sinfonia, há uma nota aguda que se prolonga por vários compassos, que é um sacrifício para os coralistas mantê-la incólume, livre de uma desafinação involuntária. Seria desse tipo, enfim, o preço que ele pagou à surdez. Mas Cézanne, ao ver algumas telas de Van Gogh, tendo o próprio à sua frente, não se furtou ao mau gosto de dizer "O senhor pinta como um louco!". Acertava na mosca, sem, contudo, desqualificá-lo: louco ou não, Van Gogh continua a ser um dos maiores gênios pictóricos de todos os tempos. O mesmo se pode dizer em relação aos tais aleijões de Aleijadinho.
Explicá-los como uma projeção do próprio artista parece uma primeira idéia até aproveitável — mas não explica o patético das figuras: o olhar quase tresloucado de Cristo em seu sofrimento fundamentalmente humano, a Virgem previamente conformada com o destino da criança que tem em seus braços. Até certo ponto, as coisas são explicáveis. O barroco católico parece ter exacerbado a idéia do sacrifício como corolário da existência, naquele momento, uma época em que o cristianismo se cindia definitivamente em guerras que a história registrou como "religiosas". Aleijadinho viveu esse momento, mas a isso se deve ajuntar o que foi decisivo para a sua enorme produção, inclusive como arquiteto — o ter vivenciado uma das épocas mais ensandecidas da busca de ouro num só país. Karl Marx chega a aludir, em "O Capital", à desvalorização do ouro provocada pela superprodução do metal provinda das minas do Brasil durante o século XVIII. Darcy Ribeiro não hesita em afirmar que dois terços do ouro do mundo foi extraído do Brasil nessa época. Ao contrário, porém, do que ocorreu algures (como no Brasil, em Carajás, no século XX, e na África do Sul, ou no tempo da URSS), o ouro de Minas Gerais desencadeou um momento civilizatório nunca visto no Brasil até então. Uma das principais igrejas criadas pelo arquiteto Aleijadinho nasceu do mecenato de um dos mais prósperos detentores de lavras de Minas Gerais. Os profetas que estão entre as obras mais expressivas do mestre nasceram justamente dessa encomenda. Não é preciso muito esforço para concluir que sucedeu assim com outras manifestações artísticas que floresceram na mesma época, em quase todas as cidades da região, como foi com a música de um Emerico Lobo de Mesquita, com a literatura de um Thomas Antônio Gonzaga e com a pintura de um mestre Athayde — companheiro de Aleijadinho em muitas empreitadas do tipo.
Que isso conta, afinal, para o Brasil, além da constatação de que não somos tão precários quanto nos encontramos em muitos momentos de nossa história? Sem achaques de auto-estima, ou, pelo contrário, autocríticas severas, os aleijões de Aleijadinho, como os corpos esfumados de El Grecco — que também sempre causaram estranheza, a ponto de alguém inquirir se ele não tinha uma visão deficiente — nos jogam num mundo de revelações pictóricas que a história do período ainda não decodificou.
O padre Vieira num sermão que, certa vez, fez aos negros escravos, perguntava-se onde é mesmo que reinava justiça no mundo de Deus, se alguns homens nasciam para serem escravos e outros para viverem livres. É claro que ele não tinha respostas. E talvez por isso, alguns anos mais tarde, Aleijadinho, ele próprio descendente de escravos, não encontrasse muitos motivos para ser "normal" num mundo em que se matavam escravos (e se morria) quase que só em função do ouro. E não deixa de ser extraordinariamente enriquecedor constatar que muitos artistas contemporâneos e patrícios de Aleijadinho não praticassem uma arte desequilibrada, rica em aleijões e sofrimentos, e que não a eles, mas a Aleijadinho é que dedicamos toda a nossa atenção e admiração.
Parece haver uma sabedoria insuspeita nos povos que se reconhecem nos artistas malditos.
novembro/dezembro, 2006