Lúcifer
(poema dramático de inspiração flamenga)
Entra Enoch
Pés de pluma em terra de sombras,
adentro — adepto — o templo
em visões já, me pedem em pulso
de idéias revele o dáimon, & eu digo:
"sílaba a sílaba vi sobre o livro
sintaxe angélica em sonho desperto
ir num desenho fluindo do braço,
gloriosa gloriosa ergue-o agora";
igitur, surge do alto o ‘splendor,
& com três línguas (o anjo) de um fogo
dourado moveu com sua mão
os tendões do meu braço, & sorveram
o papiro inscrições num’assinatura
calígrafa ímpar: dizia descendo
ao ouvido:
Entra o anjo
"Escuta a história, Enoch,
soando das hostes divinas, coortes
de anjos que influem aos homens
seu sêmen sagrado quand’inda domados
os Gigantes não ‘stavam".
Do hálito — um pouco — inefável suspenso,
prossegue o sussurro:
"Nem todos os anjos tornam ao Empíreo:
Lúcifer, belo impecável, da paradisíaca
— posto imperfeita — beleza de Lilith humana
enamora-se, concupiscente; & outros assim,
que vêem as mulheres de Ermon.
Temo por ele & o toco no braço,
"o que pensas fazer,
insensato?", mas num átimo quase me’sflora
a cútis, com ódio, sacando do aço."
Lúcifer
"Para trás, Gabriel, que prometo
não te poupar."
Gabriel
"Excedes tuas ordens,
conheço tua mente".
Lúcifer
"E tu, covarde, obedeces sem nunca
explorar o saber: volta pros campos do Empíreo,
tua ’spada sem brilho: baixa & guardada.
Afivela a dourada sandália depressa, divino,
e deixa-me em paz".
"Zombando ergue a espada,
& assim o deixei ao tornar entre o éter,
& então com ele os fiéis Grigorí",
Suave-brilhante sua voz s’entrecorta,
‘spero o ditado de volta, no transe,
c’os os olhos virados pra dentro,
& ele diz:
"Os pomos da Terra & o corpo delgado
de mulheres & homens jovens desfrutam,
sabem o salgado suor & o açúcar das frutas,
da prole ingente, Gigantes gerados,
sequer se dão conta".
Asas d’Hipérion vacilam
& a fronte, má — fissifólias pupilas s’inflamam
—, escurece:
"Cruor escorria
na Terra, ímpio, de mortes humanas,
cabeças sem corpo & membros dispersos
das vítimas; armaduras douradas,
precipitam-se grandes falanges de anjos:
eu líder devasso inimigos,
& a batalha agrilhoa os Gigantes num poço
fuliginoso.
Deus troa antigo,
fulmen crebrumque, & a queda decreta
no atro Sheol d’arcadas escuras
ao lúrido Lúcifer & Legião."
Escande o arcano seu canto,
faixas douradas eludem meu braço;
num’stante suspiro perplexo como
agulhas saíssem-me aos poros
& pânfobos todos se afastam;
se m’estendem cidades de céu
trás os olhos, traves de rijo torpor
se dissipam no aroma florido
do angélico amplexo: & torna
a m’enovelar sua voz,
"Pax, hera impermista,
recobre-me agora, & peço perdão:
a ira sagrada ‘inda turva,
retê-la impossível em tuas veias
humanas, veneno da mente.
Por Lúcifer meu grande amor
‘inda insta antes pois da expulsão
que lhe implore matar
tanto orgulho & luxúria.
Entre os ventos ao pé do Ermon
eu deslizo & o acho na gruta
com Lilith.
Lúcifer
Formoso Gabriel, a que devo
o prazer de meus olhos?
E que dores pungem-te a vista?
Ou indeciso te encontro a quereres juntar
a duas perfeições mais a tua?
Gabriel
Deixa o antro, te aviso & sei
o que digo. Teus filhos destroem a Terra,
és tu mesmo o imigo de ti tão cruel,
& tudo se perde.
Lilith
Sequer me diriges o olhar, doce amigo,
no entanto eis-me aqui,
& noto que sofres & noto teu nojo:
acaso faltarem-me as asas
congela-me em tanto desprezo?
Gabriel
Vim corrigir o engano,
não cumprimentá-lo.
Lilith
Certo ou errado, contigo não há mundo,
contigo não há movimento: és dourado
de fogo, mas frio como aço.
Perderei o encanto, hei de morrer,
mas é infinita a doçura
do meu pouco tempo: viver condenado
transforma o espaço,
e dá a medida do vento.
Deslizas no ar & o desprezas;
se não te podem ferir em fraquezas,
rígido estás como a rígida morte.
Gabriel
Esta é a verdade que vês, como o inimigo
um homem não vê na armadura feroz.
Impassível diante de ti, quem dirá
o que contempla meu ‘spírito antigo?
Ou quando torno ao abrigo de luz?
Não sabes, nem estimas, as luzes & as
trevas que presenciei.
Lúcifer
Plaudite, plaudite! Em todo caso,
teu vício de luz me aborrece
& a grandiloqüência me esfria.
Que ordens te dão a comunicar?
Gabriel
Prerrogativas perdidas, esfaz-se
o direito que é teu ao Empíreo;
Terei de cumprir — & lamento —
a sentença que lança, a ti & aos teus
ao sulfúreo Sheol.
Te imploro: retorna & humilha-te
em nome da Luz.
Lúcifer
Perdi o privilégio &
perdeste teu tempo. Entende:
o fado cumprimos da própria
razão de haver, & não sou-lha contrário,
antes, piedoso, me prostro à vontade
que assim como é me formou.
Vai-te daqui & traz teus soldados,
veremos quem fere melhor,
quem na violência é o mais refinado."
Anjos: intactos de tempo, & entanto,
o relato o curvou, & o vi — como os velhos
se curvam à mesa cansados, ou a cavalo
por vezes impedem o passo — distante de si,
memória voraz a engoli-lo.
"Como negar-lhe razão?
Voltei-lhes as costas num raio
& eis-me de volta à ‘sfera
onde concentram-se as tropas: trombetas,
espadas & escudos, hastes de sombra comprida
empunhamos, à beira-batalha.
Formas corriam, de nuvens, as altas colinas,
as rodas do tempo se apressam:
dia ou noite, os olhos se tingem
de escuro vermelho, das lágrimas
que então não ousamos chorar:
nem bem fendemos a flor do ar terrestre,
o contraste nos vem de imediato.
À fúria do ímpeto oposto,
aplicamos o ardor do dever,
soprando as trombetas divinas
de onde o som se ‘spalhava: tremendo
estrondo abalava o solo da Terra.
Derrama-se a luz como fonte infinita
por trás de minhas tropas, cegando o inimigo;
Tinindo as espadas no embate empurramos
os caros irmãos, face a face.
Lúcifer tenho diante do escudo,
& lembra-me o amor que nos une,
apenas um instante, pois em terrível
surpresa, eis que transforma-se:
"É este o desígnio, cruel?", vocifera
um réptil demônio cinzento,
onde antes o anjo belíssimo houvera.
Torno meu rosto aos lados
& aos serafins do alto Empíreo
dão combate criaturas imundas:
anfíbios disformes em arneses;
o tronco truncado de um anjo
irrompe da cauda de inseto
& os braços de lado trocados;
lagartos com facas nos dentes,
peixes com pernas & feras atrozes
atacam, desordenadamente;
um porco-espinho expele insetos
de dentro do ânus, & o rosto
que fora o de um anjo, em terror,
desespera diante do ventre
de feia caligem que gera um ovo
repleto de vermes; aves com elmos
esticam minúsculas mãos sob as penas;
tocam instrumentos compostos
& desafinados, assaltam
os próprios colegas, devoram
os corpos que medram: a queda começa.
Num longo gemido, parecendo parir,
árvores caem & abre-se a fenda na terrra
que nada expectora, mas recebe & prende,
sob seu solo, os caídos — que amarga
colheita aguarda os dias
adiante? — inquiria.
Executo os gestos & digo as palavras arcanas
que selam para sempre esse solo.
Olho à volta & o silêncio dos lagos
doto d’um vago murmúrio perene,
homenagem ao pranto que todos vertemos,
os anjos, do evento nefando."
Nada mais diz. Sinto o eflúvio suave
subir de minha pele, & sou Enoch somente,
enfim outra vez.
Ergo-me então, fecho meu livro,
& deixo no templo as palavras
que não me pertencem.
[Poemas Inéditos]
Imagens
Demônio mercurial, ilustração do livro Della transmutatione metallica,
de Giovanni Battista Nazari, impresso em Brescia, 1589;
Queda dos anjos rebeldes, de Pieter Brueghel (Bruxelas, 1567).