ORELHA FURADA

 

Dançar o nome com o braço  na palavra: como

em sua casa um maconde.

 

Dançar o nome pai dos deuses que  pode  tudo

neste mundo e suportar o lagarto querendo ser

bispo na sombra.

 

Dançar o nome miséria,  estrepe e tripa  que a

folha do livro é. E  se entender dono das letras

em sua cozinha.

 

Dançar o  nome  em sete sapatos limpos  para

domingo.

 

Dançar o nome  com a  mulher  nhora  dele: a

mulher no seu  coração tempestade e ciranda.

 

Dançar o nome  com o braço na palavra berço.

 

 

 

 

 

 

O BRUXO IDADE ZERO

 

Calendário do clã o velho reza e cabelo. Seleto

como os nascidos em Esmeraldas.

 

Terra de foles e raros guidons.

 

A casa do  velho  o sol  entrando nela.  Nome o

que recebo  muda  os bens em dias e rinhas so-

bre  o  mar.  Qual  lamparina  do  sangue,  o in-

cêndio das cãs revela o velho.

 

Mina de nova costela, suado caule e do rosário

vassauli.

 

O aprender o  velho demuda em reta sabedoria:

o calendário  como  pensando  o  velho argila e

flor.

 

Em sua casa seleto com as palavras     o velho

dos guidons.

 

 

 

 

 

 

O NO JARDIM DE SEO BIANO

 

O árvore glabro  monta lição de ossos: quando

o negra pássaro pousa é varanda.

 

Na presença  deles  o menino sabe o pião mas-

nunca o sapato que o  faz  parar.  Árvore verbi

nigra pássaro sobre o pião e  o menino rodador.

 

Se o  pássara  nigro  bandeia  o árvore varanda

com  vento só. O menino-pião  descobre  o ter-

reiro vazio a morte  nele:  e  o  carro  medonho

a caiar de fogo.

 

E a morte em guarda  escatungandém escatun-

gandém. A redonda voz da morte-mor.

 

E  o  menino infirmo na vó  lembrança do pássa-

ro glabro  em  árvore  negra  escapole à carniça

da  morte  mó. E  sabendo sua  graça  continua

menino. O que vai à festa maior.

 

 

 

 

 

 

NA CASA DA PALAVRA

 

os homens que  falam poeira  cadê  sua  miséria

comentam  o  motivo  de  falarem   poeira  cadê

sua miséria.

 

Poeira  cadê sua  miséria  não  é só poeira  cadê

sua miséria: mas o ovo de outras coisas.

 

Os homens que  falam poeira  cadê  sua  miséria

se vestem de  poeira cadê  sua miséria.  Eles se

conhecem  desde-o-ó-do-mundo   pela   música

que poeira cadê sua miséria faz neles.

 

O modo de  falar  poeira  cadê sua miséria deixa

a língua no sal.

 

Os homens que  falam  poeira  cadê sua  miséria

treinam de usá-la. E  nunca repetem o  que dis-

seram no camaleão poeira cadê sua miséria.

 

 

(Do livro O homem da orelha furada In: Casa da palavra: obra poética 3)

 

 

 

 

HISTÓRIA DA ARTE

 

O que  a  tempestade  nos  privou  de ler floresce  por

natureza. Nos dentes do  ancinho,  o   osso — semente  mine-

ral cevada  sem  testemunha.  Pouco  instiga,  branco rolando

entre os seixos.  Uma  fissura,  no  entanto, emite  o  som  de

clava  contra o braço. O  osso revela a carta extraviada. Uma

noite,  ao  fim  da  lavra,  o  levante.  Ira e zagaia escrevendo

rápido. A faca  o  bacamarte.  Depois, um jongo, um  minueto.

Outra revolta, um  alfabeto de revanches.  Súbito,  na  manhã

presente, tudo estanca ante o osso, metonímia de qual corpo?

 

 

 

 

 

 

CADERNO B

 

O reboco caiu,  nessa  fenda  a  história se desampara.

Reaparecem,  enfim,   os  membros  por  acidente  ou  tortura

Colados  à  parede. As tramas,  os  alicates,  as  ameaças  de

morte. A história  avança  detrás  da mesa, desce as escadas,

esgrima    fora  exausta  de  sua  única  face. Onde  presen-

ciou  um  homem   carregando   urina  e  fezes faz uma pausa,

planta ali outra flora em outro sotaque.

 

 

 

 

 

 

ITEQUES

 

O sentido  das  coisas se  rebela entre  a  boca  e  os

ouvidos.  Vez    por   outra,  a    forma   em   que  é possível

roçá-lo  pende  do pescoço: no   couro o  animal em fuga, na

madeira   esculpida  uma  floresta. O  sentido  escorrega para

as   coisas   que   retemos   e  nos  transformam  em  textos.

Quem tropeça, altera  uma frase,  se  cruza  o sinal vermelho

desespera   os   pais  da   história.   Por  decisão   ou   força

habitamos  alguma   paisagem,   até   que    as  fronteiras se

extingam,  as  cifras  percam  a  valia. E  reste  o  homem no

centro da cave, sem  favores, nem  mais  nem  menos  que a

crispação das árvores.

 

 

(Do livro Iteques In: Casa da palavra: obra poética 3)

 

 

 

 

O MAR

 

1/ FALÉSIAS DE SUMIDOURO

 

legado é imagem

campo em vez de névoa

esponja (sua árvore)

 

perene o cavalo

a noite no estribo

que viaja

 

e a lapa

para a qual migram

os ossos

 

à mesa do sol

nítido canto espera

 

as guelras porejam

na iluminura

das pedras

 

 

2/ CAVES DE LAGOA SANTA

 

na superfície do peixe

os deuses escreveram parca

biografia

 

a letra inscrita

é outra chave de outro

enigma

 

sob a memória

a areia constrói: qual

nome?

 

a lida transparente

é sombra (o amor

sub-reptício)

 

 

3/ CORTE DIAMANTINO

 

onde o azul

subterrânea lua

 

os cílios do calcáreo vigiam

 

e há mais procura

e desejo: do esperado

importa a espera

 

não o bojo

 

sob o azul tange

(que cobiça)

o fumo do instante

 

 

(Do livro Hipocampo In: As coisas arcas: obra poética 4)

 

 
 
 

TRÊS TIGRES

 

MIGUEL DAS LAGES    O  escrito é mais  silêncio,  quando  li-

do. Certos  livros  viram  camisas  europas  medalhas.

Nos fazem retratos,  vozes ditadas à  nossa voz. Sigi-

los sigilosos para nós. Que é feito de minha  frase que

a lavra de outra fala inventa?    

                           

ESTEBAN MONTEJO     E   de   meus  riscos,  que  ordenaram

dizendo  ser  meu  espelho? Palavra  ilha  armadilha, o

nunca  saber se o escrito é o dito. E,  no entanto, flo-

resce   literatura furta-cor.  Que  eu  mesmo, de tanto

esquecer, talvez, tenha inscrito.

 

CANDELARIO NAVARRO        Emprestei   meu  cavalo  se  falei

sobre ervas que  deram  em  letra. Umas não  é  outra.

Mil cabelos  se  a  minha  comida, feitura  difícil,  virou

escrito, o   esqueleto.  Eu  sabendo dizia o que não

é possível, a ver  se com  isso escreviam livro.

 

Miguel  Esteban  Candelario  das   Lages   Montejo   Navarro

escreve  alguém   no  delírio  de  pensar  haver-nos  escrito.

 

 

 

 

 

 

A GRÃO SECO

 

A José Araújo

 

O mundo ainda  não  começou. Chifres,  aranhas,

miolos são vírgulas  de um corpo que não se  mostrou. E

não sabemos quando arreará  as  garras. O que tem sido

mel e cinza em nossa língua não será nada.

 

Também  somos  rascunhos. Vai-se o dia  em que

aliciamos as  delícias. Os  dias  durariam  se durássemos.

Passou  por  mim o cordão. Uma duas  sanhas. A  prenda

no precipício. Quero dizer o nome.

 

O  nome  inscrito  na   cisterna.  O  nome  que  os

martelos trepidaram. Passou  o  cordão  de sangue. Ficou

depois de  minha sede.  Vejo   sua  miragem. A  família  o

elege, ele se curva mas se foi desde que chegara.

 

O rio sumiu  a  ponte, cinzas  tomam  a  cidade. A

noiva deserta. O  verbo  que foi  esterco dispersa. Passou

por mim, me  entardeceu. Talvez a  fome, talvez a  peste.

Se me exilam, mais deslindo os reveses.

 

Me querem  os  que  me rendem. Passa o  terceiro

carro. O quarto  para  lavar  os cabelos. Estamos  saindo,

apesar do medo. Ao  meio da praça, o grande carro. Pas-

sou por nós, encardimos por ele.

 

 

(Do livro Sete selado In: As coisas arcas: obra poética 4)

 

 

 

 

PASEOS

 

juan mauricio  rugendas capturó  escenas

que  acercan  río  de  janeiro  a   lima. no  

por  la  textura  de  bosques  y montañas.

 

el verde                                    el azul

 

entrañados en  sus cuadros son  parte de

otra  mirada. aquélla  del  ojo armado que

dibujó lo humano, su  afecto e infortunio.

 

los negros                             los negros

 

ocupados  bajo  la   violencia reposan  en

la pintura. las realidades  del  cuadro y de

la  historia   hacen trabajar nuestros ojos.

 

el blanco                             de la pared

 

intensifica  dramas  que  uno  sólo adivina

cara  a cara.  ¿en  qué  tiempo  están  las   

escenas   de   juan   mauricio  rugendas?

 

 

 

 

 

 

ORFEO

 

BENY MORÉ

 

está em  el recinto el que va alquilar con

pasión  sin  compasión sus oídos.  prepá-

rate, pues el  pez no  tiene  escamas. su

ley  es  anti-silencio. antes  de mí  el son

se murió por  estas sillas. ahora  sea uno

mi movimiento,  seguido  de  otros diez.

   

 

BOLA DE NIEVE

 

hay  dos  maneras  de cantar.  para  mi

estilo reclamo un  largo  piano, mientras

tanto estrecho como la huelga. es decir

que puedo decir  todo con una sola voz. 

un  piano  como un  pavo  real  lanzado

de su  soledad hacia la gente y  el  bar.

 

 

JOHN LEE HOOKER

 

el mississipi es  viejo,  más vieja la hora

del son. con el  son  seco  el  mississipi

aún corre en  las curvas de mis arrugas.

desposé el blues, y  aunque  me  muera

no lo dejaré. así es el ferry-boat que se

aleja del servicio pero  del agua  jamás.

 

 

(Do livro Signo cimarrón)

 

 

 

 

(imagens ©rosim | justysiek | meeneque)

 

 

 

 

 

Edimilson de Almeida Pereira é professor na Faculdade de Letras da UFJF. Publicou, em co-autoria, dentre outros, os livros de ensaio Ardis da imagem: exclusão étnica e violência nos discursos da cultura brasileira (2001), Flor do não esquecimento: cultura popular e processos de transformação (2002). Em 2005 publicou Os tambores estão frios: herança cultural e sincretismo religioso no ritual de Candombe. Sua obra poética reunida saiu nos volumes Zeosório blues (2002), Lugares ares (2003), Casa da palavra (2003) e As coisas arcas (2003). Editou, em 2005, Signo cimarrón. Em literatura infantil se destacam, dentre outros, Os reizinhos de Congo (2004, prosa poética), Histórias trazidas por um cavalo marinho (2005, prosa).