Lilith Liberta

 

Ela explode o bom senso necessário

...À vida em sociedade

Que se dane o bom senso — quero orgia —

...Quero Lilith liberta!

O sol se esconderá, eu bem prevejo...

...Quando Lilith surgir

Deusa fatal da lua enegrecida,

...A face que persiste

Nebulosa e notívaga e amante

...Corroendo as amarras

Flutuando febril o seu desejo...

...Quero Lilith liberta!

 

 

 

 

 

 

 

 

Oração de Amor a Afrodite

 

Peço às musas que inspirem minha mão.

Minha mente está 'berta ao vosso ofício.

P'ra que eu possa, entre os Deuses imortais,

Enaltecer da Deusa o coração,

Que altaneiro trouxera o filho ao Lácio

Para erigir impérios colossais.

Para Afrodite entrego meu destino

E a seu serviço, como um servo inclino.

 

Senhora que a natura aflora em festa,

Teu jugo é uma cadeia encantadora,

Gloriosa de incensos nos altares.

Meu peito o Teu domínio doce atesta.

Eis que Tu és, do amor, a protetora.

Amor que alastra luzes pelos ares.

Mãe boníssima, cubra-me de mel

Para Que perpetue o Teu céu.

 

Inunde o nosso leito de prazeres.

Que a amada goze todo instante em mim

O amar ensandecido das bacantes.

A Ti suplico, mãe cabal dos seres,

Que aceite este perfume de jasmim

Com o qual sirvo a Ti mais do que antes.

E que este nosso amor seja sem termo

Até que os corpos percam-se no ermo.

 

 

 

 

 

 

 

 

Relento

 

Um amor que se esconde na penumbra,

Covarde como um rato em retirada,

Não faz jus que de glórias se lhe cubra

A memória execranda e descarnada.

 

Eu amo como quem não tem mais nada,

E flerto com o abismo noite e dia.

Não sei se por loucura ou valentia

Expando a minha voz apaixonada.

 

Voltar eu já não posso, e em meio a tudo,

Receio não ter mais nenhum abrigo.

Mas sigo meu caminho, hirto e surdo,

 

Das vozes que me avisam do perigo.

Amor — morada lúbrica ao relento —

Tenho este céu por teto e por portento.

 

 

 

 

 

 

 

 

Álbum de Família

 

I

 

Atravessamos a vida

Como a atravessar um rio.

Nunca o faremos a sós,

Quem nos carrega é a família.

 

A família é como a balsa

Que nos leva em segurança

De uma margem para a outra

Presa por uma corrente...

 

II

 

Falemos de minha mãe:

Muito jovem concebera

Quatro filhos do marido

Em seu amado Sergipe

 

O marido, negro forte,

Era um homem de princípios.

Principiou com mamãe,

Mas logo se arrebatou

 

De sua doce empregada,

Consumando seu desejo

Por sobre as panelas sujas

Da cozinha do seu lar.

 

Mamãe, polindo as panelas,

Perdeu seu lugar na cama,

Perdeu o chão de Sergipe

E os quatro filhos infantes.

 

Ganhou a estrada, entretanto,

No desconsolo perdida,

Pobre, só e abandonada,

Fez sua morada co’ as putas

 

III

 

Era um coletivo cheio.

A vida em São Paulo ardia

E o sol lhe cegava a vista,

Animal noturno que era.

 

Quando conheceu meu pai,

Jovem folgazão patife,

Que amava as putas e a erva,

Encantou-se do malandro.

 

Herdeiro de velha estirpe

De alcoólatras vagabundos

Vindos de Minas Gerais,

Meio índio e meio preto.

 

Costumava enganar moças

Na Sorocaba natal.

Quando veio p’ra São Paulo

Trazia em si essa herança:

 

A lascívia das nações

Mais sensuais do país,

Sendo ao mesmo tempo vil

E ingênuo — meu pobre pai —

 

Minha mãe, que era mais velha,

Mentiu-lhe a idade e os filhos,

Que disse não ter, os tendo;

E que disse ser, não sendo...

 

Vai de prostituta à virgem;

De mãe, que era, à moça pura;

De pura à mãe novamente.

Eis a história em que nasci.

 

Filho do álcool e da injustiça

Jogado em meio à pobreza

Com o destino traçado

E traças no guarda-roupa.

 

IV

 

Essa união dita estável

Marcou muito minha infância

Quando eu observava as sovas

Desferidas por meu pai

 

Na mulher que ele enganava

Co’ a Maria "Pantalona"

Mãe de meu meio irmão,

Aprisionado em Goiás.

 

Eduardo, meu irmão,

Perdeu a fibra e drogou-se

Por muitos anos, pipando

A esperança que não tinha.

 

Meu tio, por vinte anos bêbado;

Minha avó, morrendo em vida;

Meu primo que traficava,

E morreu antes dos trinta.

 

Minhas primas que são "primas"

Tudo isso eu vi na família

Tal como um fermento tóxico,

— Terra em que me enraizei —

 

V

 

Mal posso pensar em tudo,

Mas lembro de minha mãe

Costurando roupas novas;

Fazendo bolsas de couro.

 

De meu pai saltando empregos.

Dos parentes do nordeste,

Segredados para mim

Numa carta amarrotada.

 

Da operação de mamãe,

Da qual já não voltaria.

Da loucura de meu pai,

Ouvindo vozes ocultas.

 

Da respiração difícil

Do enfisema pulmonar,

Numa noite de agonia,

Pela avó que era fumante.

 

A irmã que amei em segredo.

As fantasias de incesto.

A culpa e o desejo mudos.

Tudo isso eu passei sozinho.

 

VI

 

Depois, o vestibular,

As mulheres que não tive,

E as que tive a contragosto.

Os empregos sem futuro...

 

O eterno querer morrer

E continuar vivendo.

Ah, quanto disso eu debito

No saldo familiar?

 

Quão devo a Nelson Rodrigues,

Ao pensamento de Nietzsche,

A Vinícius de Moraes,

Schopenhauer e Pessoa...?

 

Aos anos de metalúrgica,

E a todos os psiquiatras

Que por anos consultei

Nos convênios pela vida?

 

VII

 

Valham-me os familiares,

Impressos na carne viva.

Hoje eu os encarno em mim,

De onde melhor me seria

 

Ante as convulsões e crises,

Nos matizes e cegueiras,

Banhar-me na água turvada,

Singrando o caminho a nado.

 

 

 

 

 

 

 

 

Sede

 

O que faço de minhas mãos sedentas

Enquanto a tua pele elas não tocam?

Se em meu corpo o desejo não atentas,

No fogo que de fato em mim provocam

 

As reentrâncias da carne embevecida,

No fôlego ofegante aquele hálito,

Como a brisa a surgir do peito cálido,

Inflamando de amor a minha vida.

 

Eu te juro amor: — Nada em mim importa —,

Que me valha um segundo sem teu ventre

— O porto em que o desejo insano aporta —

 

Não bata, não vacile, apenas entre,

Que o meu amor não vai ficar contente

Se souber que me não és plenamente.

 

 

 

 

 

 

 

 

Meretrício

 

Meretrício I

 

Passando p’lo salão iluminado

Vejo a mulher morena.

Tudo lhe é indiferente agora.

Paguem-na. É o que quer.

Deixando em casa vosso coração

Que um dia entregarão

Para uma mulher enciumada

De um passado boêmio.

Ah! Eu amo a mulher que assim se entrega.

Que nunca será minha

E que minha será quando eu quiser.

Com amor tabelado,

O corpo desnudado de desejo,

E orgasmos ensaiados.

 

 

 

 

Meretrício II

 

No trajeto rumo ao chão os obstáculos não obstam mais.

Eu vi um céu cadente por sob meus pés puídos.

Eis que minha larga alameda não mais se estreitará.

Sou o canceriano sem lar ao léu e na lama,

A lamentar de lubricidade o que nunca terá:

Uma família feliz com crianças no quintal.

Vou ao puteiro, pobre e triste,

E o que vejo é o espelho da minha carência

Nos biquínis das putas.

 

 

 

 

 

 

 

 

Vermelho

 

De lívida em meio ao cenário agreste

Destaca-se o semblante da inocência.

A tez tímida vibra de inconteste

Nos cântaros gelados da decência.

 

Cora a face acanhada de me ouvir

Dizer em teu ouvido nomes feios.

Sou, na libertinagem, o Vizir.

Tens um fogo lascivo nos teus seios.

 

Mas não é de vergonha teu rubor

Que inflama a face de um leve carmim.

É por mim. Diga que é por mim, querida!

 

Que o teu corpo se insurge num clamor,

E Oxum, gloriosa, adorna-te assim,

Matiz sanguínea do amor e da vida.

 

 

 

 

 

 

 

 

Os Peitos

 

Sob a pele aveludada a insígnia:

"Um coração pulsante"

Lateralmente às narinas enfermas,

De pressentir a volúpia,

Os olhos lançam adagas.

Não é mais bela como antes.

Antepondo-se a visão,

Um muro de sentimentos rubros:

Paixão, ódio, desejo e tristeza

Embaçam as pupilas em escrutínio.

Como se morta fosse para mim,

Guardo a lembrança dos delírios

Que um dia orquestrei na alma.

Amo-a como se ama o filho morto

Nas suas possibilidades irrealizadas.

Querendo guardar esse momento

Fotografo o estático coração,

No que se me revela não um espírito,

Mas apenas um par de peitos.

 

 

 

 

 

 

 

 

Cadáver

 

Os poderosos se erguem sobre torres de cadáveres.

Quanto a mim, sou só mais um na coluna de corpos.

 

O tempo de sonhar se acabou.

Os sinos das igrejas tocam uma balada fúnebre

Pelos homens autômatos;

Pelas horas inúteis perdidas em escritórios mofados;

Pelas crianças que nascerão sob o signo do açoite.

E por todos que oferecem a cabeça à foice,

E ao trato dos algozes.

Mas sem lamúria. Tudo é necessário.

Sabemos bem da sede de poder no flanco da miséria,

É a mesma argamassa que ergue esse edifício

— Do subsolo a cobertura —

Somos todos vampiros numa dança macabra,

Eternizando nosso espetáculo de crueldade.

 

Sou pessimista, soturno?

— Talvez. Mas talvez esse grito de desconsolo,

Resvale apenas levemente a realidade.

E talvez nem a mulher amada dê conta do abismo

— Abismo que é —

Nem os programas televisivos de domingo.

 

Há um zumbido ininterrupto em meus ouvidos

Enquanto o ouço sei que estou vivo.

Será a vida não mais que um zumbido?

Um ruído desagradável na face silenciosa do universo?

 

Quero gozar imediatamente,

Fazer do gozo o dolo da vida.

Quero conceber. — o parto é sempre uma dor —

E só parir assenta sentidos e,

Salvaguardadas as proporções,

Também pari meus mundos.

 

 

 

 

 

 

 

 

Dinheiro

 

"O dinheiro compra até amor verdadeiro"

                               Nelson Rodrigues

 

I

 

De tudo aquilo que existe no mundo,

E circula na mente de quem pensa,

Reflitamos apenas um segundo,

Para darmos então nossa sentença.

 

Dinheiro, sacrifício do vivente,

Compram-se carros, casas, palacetes,

Compram-se almas, amores e coquetes.

Tudo aqui é nada e pago se sente!

 

Mas sem choro! Talvez, nalgum lugar...

(E a viagem é custosa, por avião,

Praia da Polinésia, ou Dacar),

 

Em que se viva sem nenhum tostão,

E em que se morra sem se lamentar.

Um lugar longe, para além do mar...

 

II

 

Um lugar ermo, com toda certeza,

Com matas nativas e ribeirões,

Mas ao chegar lá, pasmo de surpresa:

Eis que um Shopping banal ganha milhões!?

 

Desiludido, farto, parto as compras,

Pra matar minha gana consumista,

E peço ao atendente que me assista,

Quando chego, já tenho as malas prontas.

 

Meu cartão estourou, pedirei grana

Ao Banco e pago suaves prestações.

Perdi dinheiro, o auditor me engana,

 

Minha mulher me engana aos borbotões

Quero o divórcio, já não posso mais,

Parto o patrimônio em partes iguais.

 

III

 

Quero escrever bem simples, que o dinheiro

Não merece de mim nenhum capricho.

Denuncio sua face de embusteiro

E salto no sistema como um bicho.

 

Minha alma numeral, escriturada,

Não quer mais ser resíduo capital,

Falar-se infeliz não basta e afinal

Vale pouco e de fato é quase nada.

 

Mas eu devo escrever sobre o dinheiro,

De maneira a expurgar de mim a chaga,

Banco o escravo e o sou quase por inteiro,

 

Um infeliz que a sorte vil afaga.

Talvez queira culpar a sociedade,

Mas nada no contexto me persuade.

 

IV

 

Desqualificação não ter dinheiro.

Cavalgo a vida ou sou pobre cavalo,

Encilhado, contido por inteiro?

Paro um pouco, reflito e então me calo.

 

Meu vizinho, que é rico e fã de Volpi,

Solicita-me que faça um soneto.

Faço um verso fabril – discurso reto,

Onde o lirismo já não se me esculpi.

 

Recebo um pagamento generoso,

Como operário que sou das palavras,

Que o dinheiro me mostre um céu lustroso!

 

E que eu goze o sulcar de minhas lavras!

O dever monetário é visceral,

E entrego-me de vez ao capital.

 

Puto, baixo, vendido, vivo confortavelmente. Compro carros, mulheres, amigos; reconcilio-me com o mercado. Fico romântico, simpático, bem-sucedido. E que a poesia me perdoe, eu quero ser Paulo Coelho.

 

 

 

 

 

 

 

 

Versos Lúbricos

 

Cada dobra do teu corpo impassível

É divisa do desejo carnal

Indolente erguer sonâmbulo véu

Em que surge a minha sôfrega nau

 

Amor meu, tu me tornaste viril,

E o teu sexo foi nascente frugal.

Arrebata-me. Leva a boca ao pau,

Que me chupas como nunca se viu.

 

Ai querida, tudo em ti é ambição,

Pois procuro os peitos para apertá-los

Contra a face quero ter outonais,

 

Maturando, nos meus lábios estão

Os teus frutos orgulhosos nos halos.

E masturbo no chão quando te vais.

 

 

 

 

 

 

 

 

Meu enterro

 

Meu enterro terá muitas florzinhas

A visita de parentes e fadas

Terá músicas tocando baixinhas

E volúpias de moças extremadas

 

Meu enterro será só mansidão

Os amigos contarão anedotas

Lembrarão minhas virtudes já rotas

Gozadores contumazes que são

 

Que se faça a procissão da agonia

E enterrada esta carcaça onerosa

Que o lamento não perdure, e se ria

 

Ressequidos o perfume da rosa

E a lembrança lutuosa de mim

Sepultura terá meu corpo enfim.

 

 

 

 

 

 

 

 

Carta a Socióloga

 

Eu deixarei de próprio punho à mesa

Uma carta à Roberta Soromenho,

Escrita a sangue, fí-la de mão tesa

Que a mão suicida é tudo que ora tenho

 

Direi assim: "Caríssima Roberta,

Que o sociólogo tenha esclarecido,

Você me convenceu e é coisa certa

Estatística sendo, sou olvido,

 

Que os números não hão de ser lembrados

Também meu versejar será esquecido

No universo dos poetas degredados

 

Mas antes, de você tivesse ouvido,

Não a sociologia de Durkheim,

E sim, a boca junto a mim: Je T’Aime"

 

 

 

 

 

 

 

 

Puta no Porto

 

I

 

Fosses tu uma puta no porto

Com grande prazer pagava tua lida

E te pregava as palmas no horto

Para ver-te a face padecida

 

Fosses tu uma puta no porto

Com que pudor enxugava teu pranto

Velava-te como se vela um morto

E chorava tua morte num canto

 

Fosses tu uma puta no porto

A quem me dava com aura de santo

Perdoava-te os pecados, e no entanto

 

Reiterava-os a cada momento

Uma puta, mas minha entretanto

Com a paga régia do esquecimento

 

II

 

Mas se tudo coubesse num soneto

Morte amor essa puta saudade

Em quatorze versos de sentimento

Seria preciso certa maldade

 

Embora fosses uma puta no porto

Em excelsa luz e claridade

Se o teu vadiar fosse vaidade

E se me amasse assim, meio torto

 

Diria que vivo tua vida de puta

Sou puta em ti conjuntamente

Vítima do teu desejo inclemente

 

Voluntário, encampei tua luta

Sangro de morte constantemente

Pregado na cruz de tua gruta

 

 

 

 

(imagens ©a. obolenski)

 

 

 

 

 

 

Edivan (Henrique) Nunes. Paulistano, 35, é bacharelando em Filosofia, com licenciatura plena pela USP.