CRESCEI E MULTIPLICAI-VOS

 

Eu vou fazer trinta e quatro anos, minha curva de fertilidade está em declínio, não quero morrer sem ser mãe, portanto eu quero que você me engravide, não, não quero casar contigo, não quero nem que você pague pensão para a criança, registro isso em cartório se for preciso, eu, Alexandra Romanova, dispenso Ronaldo Rasputin de qualquer obrigação pecuniária em relação a nosso filho, o referido é verdade e dou fé, testemunhas tais, tabelião tal, você sabe que dinheiro não é problema para mim, e eu sei que, com o perdão pela franqueza, dinheiro sempre vai ser problema para você, artistas não ganham muito e não são suficientemente ambiciosos para alcançar sequer a mínima estabilidade financeira.

 

Não sei o que a Alexandra quis dizer com artista e se tem uma coisa que eu não sou é desprendido de bens materiais.

 

Hum, eu disse.

 

Olha, aqui estão as guias para você fazer os exames, espermograma, sorologia para hiv, sífilis, hepatite, claro, eu confio em você, mas vamos fazer os exames só pra tirar qualquer dúvida, o.k.? Peguei vinte dias de férias, meu período fértil começa no final da semana que vem, nós vamos para um hotel fazenda em Indaiatuba, já fiz a reserva.

 

Não sei exatamente por que topei entrar nessa aventura maluca. Para passar vinte dias na vida mansa, indo à piscina, comendo do bom e do melhor e ainda por cima trepando com uma loira gostosa? Alexandra é minha amiga, mas sempre morri de vontade de ir para a cama com ela, acredito piamente naquela coisa de que uma mulher e um homem quando estão juntos estão sempre numa espécie de Éden às vésperas da queda.

 

Na semana seguinte, fomos para o tal hotel fazenda.

 

Foder Alexandra era melhor do que eu havia imaginado em minhas mais inspiradas e desvairadas fantasias. Dávamos pelo menos duas diárias, quando não três. Ela me dizia na cama coisas como, sou louca por você, sabia?, sempre quis sentir seu pau inteiro dentro de mim, não pare, não pare, Rasputin, eu te amo, mulher quando tá com tesão fala mesmo um monte, e eu dizia de volta, eu também te amo, Romanova, mas eu estava falando sério, eu estava apaixonado por ela, aqueles dias estavam sendo os dias mais felizes da minha vida e eu não queria que eles acabassem nunca.

 

Mas acabaram e voltamos para São Paulo.

 

Poucos dias depois Alexandra me escreveu um e-mail dizendo que havia feito um exame chamado beta hcg plasmático e que a contagem de não sei o que indicava que dali a nove meses solares, dez meses lunares, quarenta semanas ou duzentos e oitenta dias haveria um bebê a termo em seu ventre e ela daria à luz. E que o documento a ser registrado em cartório que me dispensaria de futuras obrigações pecuniárias em relação à criança já estava pronto, que eu apenas deveria ir a seu escritório assiná-lo.

 

Eu fiquei extremamente feliz como o fato de que iria ser pai, lembrei do meu próprio pai, de quando íamos ao Parque da Água Branca, de quando comprávamos pizza sábado à noite e ele sempre me dava uma caixinha de Mentex depois, dele tocando bateria, cigarro entre os dentes, acompanhando algum disco dos Beatles ou do Creedence Clearwater Revival, meu pai era chamado de Ringo Starr da Pompéia, crescite et multiplicamini et replete terram etc. Ademais, o que são meras formalidades jurídicas como procurações e o escambau comparado com a realidade insofismável de duas pessoas que se unem num ato de amor para gerar um ser humano? Alexandra me telefonou duas semanas depois e disse, Ronaldo, as coisas mudaram, me desculpa, eu encontrei o homem da minha vida e vou me casar com ele, não, não é você, lamento, gostaria que fosse, vou me mudar para Estocolmo, já comprei a passagem, pus meu apartamento à venda, não, não estou mais grávida, eu realmente lamento, obrigada por tudo, de coração, eu sei que poucos homens fariam por mim o que você fez e jamais vou me esquecer disso, adeus, ela desligou e fiquei com a orelha grudada no aparelho e fechei os olhos e fiquei assim, com os olhos fechados e a orelha apertada contra o aparelho de telefone, não sei por quanto tempo.

 

 

 

 

QUANDO O CHACRINHA MORRER

 

Estou numa sorveteria, rabiscando um guardanapo de papel: primeiro faço um pequeno círculo, depois começo a traçar diversas retas que tangenciam esse círculo. A coisa, aos poucos, vai ficando parecida com uma roda de motocicleta.

 

Faz um anoitecer chuvoso aqui na Vila Caiçara. A chuva cai fina, insistente, desesperadoramente monótona. Esse tempo costuma me fazer pensar que o fracasso tem alguma afinidade com as coisas úmidas: papel molhado que não presta mais para escrever nem tocar fogo, fósforos que não riscam, roupas que não dão pra vestir.

 

Paro de rabiscar o guardanapo.

 

Toni saiu do banheiro e vem vindo em minha direção, secando as mãos na parte lateral das calças. Caminha como se estivesse contra um vento de 90 km/h e duvidasse um pouco da própria capacidade de se manter a prumo.

 

Como se se escorasse em corrimões imaginários.

 

— Ripa na chulipa? — ele me diz.

 

Saímos do restaurante e caminhamos até seu Passat TS verde-oliva, que está do outro lado da calçada.

 

Hoje é dia 17 de julho de 1984. 

 

Vamos à Mongaguá encontrar umas amigas dele que estão numa colônia de férias da CESP.

 

Conheço Toni há dois anos. Ele é meu melhor amigo.

 

Ligo o rádio do carro, tento sintonizar alguma coisa, Toni diz que a antena está quebrada. Procuro alguma fita no porta-luvas, acho uma Basf velha em que está escrito "Cate Bush" com letra de fôrma.

 

— É com K o nome dela. — digo. — Kate Bush. 

 

— Eu sei.

 

— Então por que você escreveu com cê?

 

— Não fui eu que escrevi. 

 

— Quem foi que escreveu, então?

 

— O cara que me gravou a fita. O Cabeção.

 

Ponho a fita pra tocar. Chegamos num trecho não-asfaltado da Kennedy, mas não pegamos a estrada, já que Toni ainda não tem idade para ter carteira de motorista. Spending lot of my time, looking for the blue, the color of my room and my mood.

 

— Tá ruim o négocio, hem? — comento. O chão, por conta da chuva dos últimos dias, está cheio de poças e buracos, o que faz o carro sacudir demais. O toca-fitas, um Roadstar de gaveta, pára de funcionar. Toni dá uns trancos nele, sem resultado. Murmura um palavrão e desliga-o. 

 

Chegamos, enfim, em Mongaguá. A avenida volta a ser asfaltada. Passamos pelo Hotel Mongaguá Palace, que dizemos ser um asilo onde as mongas — aquelas mulheres que se transformam em macaco em circos ou parquinhos — vêm morar depois que se aposentam.

 

Chegamos na tal colônia de férias e descobrimos que as amigas do Toni não estão lá. Voltamos ao carro. Damos um rolê pelo centro e resolvemos parar num fliperama. Jogo duas partidas de Donkey Kong, enquanto Toni tenta passar o xaveco numa garota, sem maiores resultados. 

 

— Vamos embora. Não tem mais nada pra fazer aqui nessa merda. — ele diz, mal-humorado.

 

Pegamos a Kennedy de novo, esburacada e cheia de poças. Começo a assobiar a melodia de Kid cavaquinho.

 

— A Maria Alcina não quis saber, é? — pergunto, rindo, me segurando para não cair na gargalhada.

 

Toni dá um sorrisinho amarelo e me mostra o dedo anular. Diz:

 

— É, você não pode falar muito, também, que você catou aquela mina lá que parecia o Gilberto Gil, aquele dia lá no Boqueirão. 

 

Silêncio.

 

— Vai, pô, ela não era tão ruim assim. — digo.

 

— Nãããão, só era parecida com o Gilberto Gil. A cara. 

 

— Era nada.

 

Óia que foi só pegá no cavaquinho pra nego bater, mas se eu contar o que é que pode um cavaquinho os omi não vai crer.

 

Sem mais nem menos eu digo:

 

— Você sabia que o Chacrinha só tem um pulmão? 

 

— O Chacrinha? Pô, nunca soube disso. 

 

— É. Eu acho que ele teve tuberculose. Ou sei lá o quê. Só sei que um pulmão dele foi pras cucuias.

 

Toni dá uma risadinha e diz:

 

— O cara já é chato com um pulmão só. Imagina se tivesse dois. 

 

— Hum. Pode crer.

 

Imito a voz áspera do Chacrinha dizendo, "alôôôô-atenção!", e rio.

 

— Pô, às vezes eu fico pensando... — começo a dizer, mas empaco.

 

— Hum. Quê que você fica pensando?

 

— Não, nada. Besteira.

 

— Vai, diz. 

 

— Não, às vezes eu fico pensando quando o Chacrinha morrer, quem será que a Globo vai botar no lugar dele? 

 

Toni fica um tempinho em silêncio e então diz, numa entonação cuja ironia é quase imperceptível:

 

— Quem a Globo vai pôr no lugar do Chacrinha quando ele morrer. É, é uma boa pergunta.

 

Genésio, a mulher do vizinho, sustenta aquele vagabundo, veneno é com o meu cavaquinho, pois se eu tô com ele encaro todo mundo.

 

— É. Um dia o Chacrinha vai morrer. — digo. — Estranho pensar nisso. 

 

Silêncio.

 

— Todo mundo vai. — Toni diz

 

Chegamos à Vila Caiçara, entramos em nossa rua.

 

Toni pára em frente à minha casa e diz:

 

— Depois eu passo aí.

 

— Beleza.

 

Desço do carro e entro em casa. Dou um beijo na minha mãe e vou à cozinha procurar algo pra comer. Pego um pacote de salsicha no congelador. Vejo que sua data de validade venceu anteontem, hesito um pouco, mas mesmo boto três pra ferver. Se estiverem estragadas, acho que vou sentir pelo gosto.

 

 

 

 

 

 

 

ESFIHA DO HABIB'S REQUENTADA NO MICROONDAS

 

Eu andava cansado de ser o cara que tinha altos papos no messenger com a mulherada, só que na hora do vamos ver elas iam se esfregar no primeiro sujeito insolente, bonito e burro que encontravam em alguma danceteria, enquanto eu ficava em casa, comendo esfihas do Habib's requentadas no microondas. Um dia decidi parar de comer esfihas, emagreci oito quilos, comecei a malhar, branqueei meus dentes, fiz uma rapa no meu guarda-roupa. Minha aparência melhorou tanto que uma noite, no Charles Edward, uma loirinha chegou a me agarrar, assim, do nada, veio e me tascou um beijo na boca. Se tem um troço que a gente acaba aprendendo é que a vida é simples, muito simples — esteja você se fodendo ou sendo beneficiado por ela. 

 

O negócio é que quando uma pessoa foi durante tanto tempo um tipo qualquer nota fica com certos reflexos condicionados — é incapaz de cometer, por exemplo, qualquer gesto maior de ousadia ou transgressão. Que nem quando eu fui amasiado com uma dona, eu sabia que ela me metia chifre a dar com o porrete, eu não dizia nada nem dava um basta na coisa, na verdade eu estava tão desinteressado dela que pra mim não fazia diferença o que fosse ou o que deixasse de ser, eu também dava minhas voadinhas por fora e estávamos quites. Eu acho que as pessoas são soberanas quanto à escolha das cordas com que decidem se enforcar, embora eu saiba que soberania seja uma palavra meio estranha ao vocabulário feminino. Essa fulana, por exemplo, me largou por um desses tipos machões que mandam o tempo todo o recado: enlouqueça o quanto quiser, baby, eu tenho pulso forte pra te manter na linha. Ela me disse, ao partir, que queria um homem que fosse capaz de lhe fazer um filho, eu fiz vasectomia quando descobri que tinha genes recessivos de anão, não posso mesmo engravidar ninguém. Mas esse papo dela no fundo era cascata. Tudo o que as mulheres querem dos homens é a alternância entre —

 

Isso é um absurdo, Franziska me diz, rindo. É um comentário estúpido, primário e machista. Estou chocada contigo, Pedro. Sinceramente.

 

Franziska é minha namorada. Acabei de lhe dizer que as mulheres só se entregam de modo pleno a um homem que for capaz de protegê-las delas mesmas, de seu desvario e de sua insanidade autodevoradora. Protegê-las no muque, se for preciso. 

 

Você realmente acredita nessa baboseira? Você no fundo acha que toda mulher é uma puta que anseia por um gigolô?, ela me pergunta, se levantando da cama e caminhando até o banheiro.

 

Bom, há exceções à regra. Claro que há. 

 

Pois eu ficaria muito grata se você incluísse minha modesta pessoa entre as exceções, o.k.? 

 

Hum. 

 

Eu nunca me submeti aos homens, Pedro. Você sabe disso.

 

Lilith foi a primeira mulher de Adão. Ela, que não admitia ser submetida na hora de trepar, acabou sendo expulsa do Éden e foi transformada por Deus num demônio, demônio este a quem se costuma atribuir a culpa pelo sufocamento de bebês no berço e pela polução noturna nos marmanjos. Foi por conhecer coisas assim que acabei fazendo sucesso no messenger, as mulheres gostam de conversar com sujeitos que se interessem por elas e que lhes digam coisas inteligentes, eu sou técnico em informática mas tenho muita leitura, li Freud, Lacan, Nelson Rodrigues (toda mulher gosta de apanhar, menos as neuróticas), John Cheever, Céline, Balzac, Tchekov, Maupassant, Tennessee Williams, A Streetcar Named Desire, Cat on a Hot Tin Roof, etc. Fiquei chocado quando a Stella Kovalski, grávida, depois de levar umas bifas do marido, só faltou se desmanchar em languidez quando ele começou a gritar debaixo de sua janela, Stella!, Stella!, implorando por seu perdão. Franziska não tem porque se preocupar, não há nada, rigorosamente nada a ser desvendado entre nós. Ela sabe que tipo de homem eu sou.

 

 

Vi um ator da Globo dizer outro dia que começou a malhar porque não queria acabar se especializando em papéis de corno. A televisão realmente vive de estereótipos, o gordo ou é o bobalhão ou o boa-praça, o magrinho é o nerd, o Flávio Migliaccio é o desvalido, a Vera Fischer é não sei o que, o Tony Ramos é o carente, a Claudia Raia é a gostosa, a Marisa Orth é a burra engraçada. O keylogger é um programa que registra tudo o que é digitado em um computador. É muito usado por crackers que roubam senhas ou números de cartão de crédito. O keylogger geralmente é instalado no micro da vítima quando ela clica em um link malicioso que vem num tipo de e-mail chamado de phishing: seu computador está sendo usado para propagar fotografias contendo pedofilia, clique nesse link para reportar-se às autoridades competentes, departamento de polícia federal. Eu, porém, não precisei usar phishing com a Franziska, ela me pediu para eu ver seu micro, a máquina andava lenta, o Windows travando toda hora, etc. Agora eu recebo a cada vinte e quatro horas um arquivo contendo tudo o que ela digitou em seu computador, e-mails, conversas de messenger, tudo.

 

No arquivo que me chegou hoje, por exemplo, ela diz ao Ronaldo que já está com os mísseis. Ronaldo é um gordo nojento, proprietário de uma Maserati, com quem ela anda trepando. Mísseis são os supositórios de cocaína que ela enfia no cu do cara, depois de lambê-lo bastante. Eu nunca me submeti aos homens, Pedro. Você sabe disso. Ah, ah. Talvez eu devesse chegar nela numas de Jece Valadão, chamá-la de piranha, dá-lhe umas bolachas. Mas preferi simplesmente fazer uma denúncia anônima ao Denarc: amanhã, horário tal, hotel tal, abordem uma moça assim, assado, etc. No fundo eu acho que continuo sendo o mesmo sujeito qualquer nota de sempre, comedor de esfihas requentadas do Habib's, incapaz de botar o pau na mesa mesmo quando é preciso. Reflexos condicionados. Ah, ah.

 

(imagens ©gavin reece)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eduardo Haak (São Paulo-SP, 1971). Colunista da Revista Ouse! (São Paulo: Editora Símbolo), foi o roteirista do curta-metragem Rita Madalena, em parceria com Adriana Brunstein. Recebeu alguns prêmios, destacando-se o do concurso promovido pela Folha de S.Paulo, "O Leitor Faz a Revista", em 1999. Estreou em livro na antologia Em suma, da Escola de Escritores, em 1997. Mais em seu site, clicando aqui.