Atribui-se ao marinheiro escandinavo Knut Amundsen, capitão do barco pesqueiro Oseborg, o fato singular de correr uma ou duas gotas de sangue negro baiano nas veias da população alvacenta da ilha de Bornholm, banhada, em todas as suas reentrâncias, pelas águas geladas do Báltico.

Em novembro de 1890 o famigerado Amundsen recrutou nas ruas da Bahia o ex-escravo Balbino de Oliveira para cozinheiro de seu barco, pelo fato de haver provado de seu tabuleiro umas moquecas muito gostosas. Aliciou mais gente na Jamaica, em Cuba e no Panamá, enquanto galgava as praias calorentas da América e enveredava pelo Canal com o barco repleto de chicanos.

Luterano de botas e cordéis, o capitão Amundsen ocupava as horas vagas doutrinando a tripulação segundo O Cativeiro da Babilônia, obra basilar do sempre reverenciado Martinho, mas não consta que fosse rígido a ponto de menosprezar, digamos, as exigências glandulares dos marinheiros.

Mostrava-se, nesse ponto, biblicamente compreensivo. E como nem por sombra admitisse mulheres no barco (homossexuais, nem pensar), concedia que os marinheiros depositassem seus humores em pequeno barris de carvalho que, depois de cheios, eram arrolhados e jogados ao mar. Os barris sobrenadavam as águas do Báltico ou do Mar do Norte, conforme a rota em curso, e em geral iam dar nos recifes ou nas geleiras eternas do Bótnia, aonde ninguém ia.

Em 1892, uma aldeia costeira de Bornholm foi assolada por um surto de gravidezes em massa. A comunidade, que vivia da pesca e do fabrico de utensílios de igreja, estava nessa altura entregue ao arbítrio das mulheres, como acontecia toda primavera, época em que os maridos rebocavam seus barcos para o Golfo da Finlândia, de onde só retornavam meses depois, cantando hinos pagãos e bebendo gengibre.

Pois desta vez, ao voltarem, tiveram um susto: encontraram prenhas mais de 50 mulheres, algumas na flor do climatério, outras ainda núbeis e tidas por intocadas. Estabeleceu-se o mistério, o interrogatório, a pancadaria. E o medo. Entre si os homens questionavam se não era o caso de terem feito jus aos chifres vikings que exibiam nas festividades locais. As mulheres continuavam jurando inocência. Estava-se a ponto de acreditar num novo milagre da Anunciação, desta vez coletivo, quando uma brecha de luz abriu-se a partir da confidência de uma parteira, mulher vivida e curtida em conversas de alcova.

Interrogada por uma comissão de maridos impacientes, a mulher acabou fornecendo a pista para o desvendamento do enigma:

— Um barril, sussurrou ela.

— Um barril? Que tem a ver?, perguntaram os homens intrigados.

Referia-se a um "barrilzinho de carvalho, fechadinho, bonitinho", que as mulheres haviam encontrado certa manhã, na praia. Ali mesmo o abriram, julgando que contivesse vinho ou gengibre. Mas tudo o que encontraram dentro dele foi cera, cera branca até a borda, a cera que escasseava nos depósitos da cooperativa.

— E o que fizeram da cera?

A mulher fez uma longa pausa antes de responder cabisbaixa:

— Velas. Fizemos velas.

 

 

 

 

 

 

De repente, num dia de abril que também era o dia da mentira, tornei-me comunista. No refeitório, quando eu disse que não tinha mais vontade de rezar por revolução nenhuma, descumprindo uma ordem que vinha do alto, Tarcisinho me indigitou:

— Comunista!

Aquilo soou esquisito, mas não me desagradou. Eu tinha ouvido dizer que os comunistas, embora fossem ateus e fechassem as igrejas, queriam justiça social. Havia uma certa nobreza naquilo e coragem também. E eu estava cansado de amealhar indulgências para escapar do inferno. Por isso, com raiva, resolvi chutar o balde para ver no que dava:

— Comunista, sim senhor! Pois eu sou comunista!

Pálido, Tarcisinho prometeu levar o assunto ao padre-reitor. Aquilo me deixou furioso. E quando ele gritou comigo e me chamou de "herege" e "comedor de criancinha", não suportei a afronta e atirei-lhe uma colherada de feijão quente na cara. Os colegas da mesa me olharam com um misto de assombro e admiração. Comunista! Pois sim, eu seria comunista! E ele, um dedo-duro, que levasse logo a informação adiante.  

Ora, o padre-reitor tinha sido capelão do exército em Juiz de Fora. Por isso, no dia em que estourou a notícia do golpe militar, naquele primeiro de abril de 1964, ficou eufórico. Mandoureunir todo mundo na capela e, diante de 90 rostos atônitos, disse emocionado:

— O general Mourão Filho foi tocado pela mão de Deus. Neste momento ele marcha com suas tropas para o Rio de Janeiro. Vamos fazer uma vigília pelo sucesso da Revolução.

Cancelou as aulas daquele dia e mandou a gente se espalhar pelo pátio, em grupos de seis ou sete, com o terço na mão. Começamos a rezar com fervor e pavor, mais assustados que felizes, pois havia o fantasma da guerra civil. Enquanto isso o reitor mantinha-se encastelado em seu gabinete, de ouvido colado no rádio, os olhinhos acesos e os ouvidos atentos. Vez em quando vinha até o pátio para ver se as orações estavam bem encaminhadas. Aproveitava para nos pôr a par dos acontecimentos. O general tinha acabado de atravessar a ponte sobre o rio Paraibuna. Dali fizera um discurso candente que reboou por todo o país, fazendo tremer as pernas do governo comunista. Mesmo temerosos, nós nos torcíamos de comoção.

Logo enjoei daquilo. Todo aquele espetáculo me parecia um convite para nadar contra a corrente. Não queria mais participar de vigília nenhuma. Então, graças à provocação de Tarcisinho, me tornei comunista. De devoto da Virgem passei a discípulo de Stálin, um homem que sempre me metera medo. No pátio, minhas orelhas pegavam fogo. A notícia tinha se espalhado e já havia quem gritasse às minhas costas: "Comunista!". De repente me vi sozinho.

Descobri que ser comunista não era fácil. Exigia um ato de fé sobre-humana. Parecia que eu tinha mudado de religião e professava agora uma crença com um outro conjunto de profecias.

Quando soou a sineta, soube que a delação já havia sido feita. Esperei com angústia a convocação do padre. Demorou. Achei que a demora fazia parte do castigo que me seria aplicado. Na verdade eu já ansiava por isso, pois estava de coração doído. Me lembrava das palavras da Virgem às pastorinhas de Fátima, "Rezem pelas conversão da Rússia", e sentia que tinha traído a confiança dos céus. Que estúpido! Sem poder esperar mais, entrei de peito aberto no gabinete da autoridade. Recebeu-me sério, mas achei que ria por detrás da mão em concha:

— Que história é essa de comunista?

E como eu não dissesse nada:

— Logo você, um dos prediletos de Nossa Senhora!

Aquilo me tocou. Caí num choro convulso. "Não sou mais, não sou mais comunista", eu disse, chorando aos borbotões. Embora no fundo de mim uma voz autônoma ainda teimasse em sussurrar, "que covardia, que covardia", deixei de supetão a sala do padre e corri para a capela. Me ajoelhei diante da Virgem. Falei com ela como alguém fala a um amor injuriado:

— Deixei você, mas por pouco tempo. Voltei.

Fiz as contas: eu tinha sido comunista do meio-dia às três da tarde, isto é, por 180 minutos.

Não era muito. Se preciso, estava disposto a carregar o estigma de meu passado marxista como outros carregam um talismã pagão no pescoço. Ela seria capaz de me perdoar? E ao voltar os olhos para cima, para o lindo rosto dela, que sempre me causava uma certa perturbação, achei que tinha uma expressão ligeiramente galhofeira, e que também lutava para segurar o riso.

 

 

 

 

 

 

Tarza, não Tarzã. Assim se chamava o homem que chegara pela manhã ao Campo Alegre. Era o que nos explicavam os mais velhos, homens e mulheres, todos ali de pé na rua poeirenta, inclusive duas ou três galinhas ciscadoras. No meio do círculo, os bíceps distendidos, o homem que se dizia chamar Tarza. Tinha vindo de muito longe e sua vida era a caixa onde dizia guardar, enrodilhada, uma cobra. Andava de déu em déu com a caixa e a cobra. A farmacopéia estava numa maleta à parte.

— Vai soltar a cobra! Vai soltar a cobra! — os meninos se espalhavam aos berros e depois voltavam ao centro de interesse.

Tarza ameaçava abrir a tranca da caixa só para nos assustar. Dávamos corridinhas medrosas, andávamos de fasto, voltávamos envergonhados sob o desdém dos que não tinham arredado pé. Isto se repetiu uma porção de vezes, sempre com o mesmo efeito perverso. Mas a cobra nunca era solta de fato. Talvez nem houvesse cobra. O que Tarza queria mesmo era vender os remédios.

— Este aqui é para estancar sangria. Uma gotinha e o sangue coagula na hora.

Passeou o vidrinho com a tinta verde diante de trinta narizes crédulos. Anunciou que ia fazer uma demonstração. Houve caretas quando ele puxou uma gilete de uma gavetinha da caixa. Os que não gostavam de ver sangue deviam se afastar, disse. As moças esconderam o rosto com as mãos e ele gracejou com elas. Era um homem de barba desalinhada mas tinha bons dentes. Tirou a camisa, retesou o músculo e fez um pequeno corte no pulso direito. Exibiu a trilha de sangue e em seguida limpou-a com um pano sujo. Aplicou o ungüento e contou um minuto. Depois mostrou o braço a todo mundo, principalmente às moças. Não havia nem sinal do corte. Todos os que tinham dinheiro compraram um vidrinho, às vezes mais, e saíram satisfeitos e muito prosas de terem visto aquele espetáculo.

À noite improvisou-se uma cantoria em homenagem a Tarza em nossa casa. Levamos bancos para debaixo do caramanchão e meu pai distribuiu conhaque e cachaça. Tarza revelou-se bom bebedor. Tocava violão razoavelmente e fazia um bom dueto com meu irmão mais velho. Falou das cidades, vilas e fazendas por onde tinha andado, a tal ponto que já tinha esquecido a maioria, tantas eram. Narrou casos espantosos e aventuras de prender o fôlego. As pessoas consideraram um privilégio poder ouvir tudo aquilo. Ele foi dormir coberto de glória.

No dia seguinte teve início uma murmuração sobre onde e com quem ele havia dormido. Posso garantir que em nossa casa não foi. Mas o fato é que acordou demasiado risonho para ter dormido mal e só. Além disso não parava de beber e começou a dizer que o povo do povoado era pacóvio. Meu pai disse que talvez fôssemos mesmo, para acreditar no poder daqueles ungüentos. Isto incendiou a raiva das pessoas e a suspeita se alastrou junto com a vergonha. Valdecir, acarinhando o cabo da peixeira, falou em desonra.

Mais tarde um menino veio avisar que Tarza tinha trepado na torre da capela e fazia um discurso lá do alto. Todo mundo correu para ver. O mascate havia subido na torre com a ajuda de uns tambores. Era uma torre de madeira muito baixinha, levantada do lado de fora da capela. Gesticulava lá de cima e estava agora falando bem do lugar e do povo do lugar.

— Desce daí, disseram.

— Desço porra nenhuma, respondeu.

— Essa madeira tá podre.

— Se estivesse podre não agüentava este baita sino.

— Desce.

— Então vem me tirar daqui.               

E deu uma badalada no sino. O som viajou longe, rachado, e fez muitas cabeças se levantarem, cismadas, de seus lerdos afazeres. Muita gente saiu para fora dos botecos.

— Desgraçado, disse Valdecir. Vamos arrancar esse cabra de lá.

E subiram e fizeram baixar o poderoso Tarza, que nem mesmo reagiu. No chão, deram-lhe com os pés, com os punhos e com um pedaço de madeira. Depois o amarraram num velho cruzeiro sem braços. Sangrava na cabeça e no ombro direito. Zombando dele, fizeram-lhe a barba de um lado só com a ajuda de um canivete cego. Quando começou a chover, e choveu forte durante duas horas, deixaram-no estendido na porta da igreja e foram para casa.

Quando anoiteceu, ele tinha ido embora. Para trás, como um rastro de estrelas no céu despejado e claro, tinham ficado, mortas, as histórias dos lugares fantásticos que jamais conheceríamos.

 

 

 

 

 

 

Sem obrigações pela frente, sem vontade de ler, escrever, ouvir música ou ver televisão, sentei-me à mesa da cozinha (uma mesa redonda, de madeira crua) e me pus a rabiscar repetidamente numa folha de papel o mesmo desenho. Nunca fui bom em desenho, mas o que eu desenhava era bem simples. Um rabisco bobo, uma espécie de laço de fita sem nenhum refinamento, na verdade o número 8 deitado. Não punha consciência nem propósito no que fazia, mas vagamente me lembrava de que aquele traço tinha um nome (lemniscata) e uma definição no dicionário: "Lemniscata — Lugar geométrico dos pontos de um plano cujas distâncias a dois pontos fixos desse plano são constantes". Ou: "Quártica cujo ponto duplo é o ponto médio de (FF')".

Guimarães Rosa fechou o seu Grande Sertão: Veredas com o coleio gráfico de uma lemniscata. Vladimir Nabokov menciona-a de passagem num dos verbetes de Fogo Pálido. Por que tal obsessão por um simples grafismo? Por causa do fascínio de sua órbita interminável. Sendo assim, representa o infinito, pois não acaba nunca.

Quanto a mim, não pensava em nada disso sentado ali na mesa da cozinha. Na verdade me aborrecia um pouquinho: reconhecia um daqueles instantes em que, sem causa aparente, cai o vazio sobre a alma. Era a nausée de Sartre, a noia de Moravia, talvez o spleen de Baudelaire. Antes que aquilo se transformasse em raiva e depois em ódio, e depois sabe-se lá em quê, saltei para o corredor e dali para a rua. Errei pelo bairro bem uma meia hora, talvez uma hora inteira, parando aqui e ali para apaziguar uns estranhos pensamentos que me tomavam. Poucos desconfiam, mas sou homem de natureza hiperbólica. O sol pálido de maio colaborava para esse estado de espírito, apesar de não haver, nessa tarde, uma única nuvem no céu. Havia, sim, glicínias sobre alguns muros.

Dei por mim numa rua estreita e de casario baixo, com telhados de outros tempos, em parte dourados pelo sol, em parte mergulhados na sombra. Creio que era a Rua Ferreira Penteado. Parei frente a um portão de ferro enegrecido pelo tempo, atraído pelo desenho que se formava na parte central do treliçado de ferro. Fiquei perplexo: as barras oxidadas formavam, no centro, uma lemniscata.

Intrigado, destravei o portão e entrei. Subi uma escadinha de madeira, empurrei uma porta e vi um salão, um salão maior do que a casa permitia imaginar, vista da rua. Havia gente lá dentro, alguns rostos se voltaram quando entrei, mas ninguém se mostrou particularmente surpreso com minha presença. Velavam um morto num canto do aposento. O caixão brilhava à luz difusa de um lustre e as labaredas de duas velas tiravam revérberos das cantoneiras de metal. Aproximei-me para ver quem era e estremeci quando notei a semelhança que tinha comigo: das linhas do rosto ao gris do cabelo (que depois comecei a pintar), passando pela ligeira desproporção das almofadas nasais (um desvio de septo que nunca tive coragem de operar), a cicatriz acima da sobrancelha esquerda (fruto de uma queda durante um misterioso desmaio há muitos anos) e a idade de uns 50 anos redondos não pareciam deixar muito espaço para dúvidas: ou se tratava de um êmulo meu, vindo da tal dimensão onde dizem viver os duplos, ou era eu mesmo que ali estava, esticado, lavado e pronto para a maior das viagens.

Cuidei de dissipar a confusão. Perguntei pela identidade do morto. Meu nome foi pronunciado com espantosa clareza. Lembro-me que a resposta, dita num tom apressado e natural, quase com indiferença, partiu de uma anciã de idade indefinida. Fixei nela um olhar que devia traduzir toda a minha dor de cadáver inconsciente.

— Quem, a senhora disse?

— Eustáquio Gomes, ela repetiu.

Morto, então, eu? Ora, eu não me sentia nem um pouco apartado do mundo dos vivos. Via-me, antes, no interior de um conto sinistro — um conto de Edgar Allan Poe. Pouco a pouco, o espanto se transmutou em picante curiosidade.

— Se esse aí deitado sou eu, exclamei, então a morte não existe.

A mulher tombou o rosto sobre o ombro, como se falasse a uma criança ingênua, e disse com voz de falsete:

— Claro que não existe!

Pensei num professor de meu círculo, um químico que me assegurou certa vez que a morte não existe, e pensei também no médico que em outra ocasião me garantiu a mesma coisa. Então ambos tinham razão! Fui tomado de uma alegria doida e saí para a rua aos gritos:

— A morte não existe! A morte não existe!

Apenas, quando olhei de novo para o portãozinho de ferro, a lemniscata tinha sumido.

 

 

 

 

 

 

Que espécie de bicho é uma mulher nua? Como é, de fato e à vera, uma fêmea sem plumas? De repente aquilo passou a ser uma questão crucial para nós. Havia um grave déficit em nosso conhecimento do mundo. As informações eram desencontradas, as descrições, suspeitas. Doca tinha visto uma prima lavar-se no córrego, mas era incapaz de dar detalhes precisos. A mãe de Lúcio despira a blusa bem na sua frente, sem que fosse visto, mas aquilo era pouco, e na opinião de Pedro, abominável. "Mãe não vale", argumentou. "Nem irmã", disse Lucas, que tinha várias. Uma delas, Telma, tinha-se deixado bolinar atrás da capela. Mas nudez mesmo, só o fulgor de suas coxas alvas.

Não sei como urdiu-se em mim a idéia do espetáculo de nudez, se ao sopro da leitura de Alencar (que descoberta!) ou se durante a expedição ao bosquinho de pés-de-embira, onde abrimos uma clareira, e nela, o espaço para um lugar de maravilhas. "Para cantar e dançar", eu disse. Mas logo: "Não, para um espetáculo com índios". E em seguida, numa iluminação: "Vamos encenar Iracema".

Foi agradável descobrir que, aberta a clareira, o bosquinho fez curvar amorosamente suas copas e seus liames sobre a terra fofa, dando à sombra um aconchego de alcova. De uma forquilha a outra estendemos caules flexíveis e sobre eles, ao longo e ao largo, folhas de buriti. Ao rés do chão, tábuas sobre pedras chatas trazidas da beira do riacho: o auditório. No entretempo, minhas mãos sujas de seiva tinham preparado uma espécie de texto, uns quantos diálogos e uma dança indígena sacrílega e sensual. Durante os ensaios, eu passeava autoritário a minha borduna de peroba, um feixe de penas em torno da cintura, um cocar na cabeça.

No dia da estréia soubemos que o segredo, o pacto de silêncio que havíamos selado tinha-se rompido em algum ponto. No povoado já se comentava a coisa com ar de mistério. Isto explica por que o público tomou todos os lugares e desbordou para as galerias. Dois lampiões iluminavam a cena.

O espetáculo começou, seguiu adiante e ganhou impulso com o diálogo entre os guerreiros. "Tupã deu à grande nação tabajara toda esta terra", disse o guerreiro-chefe. "O gavião paira nos ares", respondeu o jovem guerreiro. "Iracema!", bradou o guerreiro-chefe. Aplausos. Deu-se então o inaudito, o mágico, o miraculoso. Iracema, a virgem dos lábios de mel, irrompeu no palco. Telma em carne e osso. Nada de plumas, penas, tanga. Nada. Inteiramente nua. As pernas longas, lisas, terminavam no triângulo escuro, selvagem, púbere. O umbigo era uma flor dilacerada contrastando com os seios pequenos. Mas o conjunto, no todo, era harmonioso.

A platéia veio abaixo. Os guerreiros congelaram-se no centro do palco. Gritos, assobios, até palavrões ouvi. E viu-se quando, de um salto, Lucas avançou para o proscênio e baixou o pano, que era um lençol corrido de uma ponta a outra. E depois, pelos fundos, matagal adentro, arrastou Telma para casa, onde ele e o pai, segundo se soube, a cobriram de pancadas.

 

 

                                                                                                                  (imagem ©guy bourdin)

 
 

 

Eustáquio Gomes, jornalista e escritor, nasceu em 1952. Trabalhou em jornais de Campinas e colaborou com jornais como O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e com a Agência Estado. Atuou também em serviços de imprensa de empresas como Robert Bosch e White Martins. É autor de dez livros, entre ficção e ensaios, destacando-se os romances A Febre Amorosa, Jonas Blau e O Mapa da Austrália. Há 22 anos é coordenador de imprensa da Universidade Estadual de Campinas — Unicamp, e há 15 assina uma crônica semanal no Correio Popular. Mais aqui.